quinta-feira, setembro 29, 2016

Exposição fotográfica (XLIX)

Atenas, Setembro de 2016

Túmulo do soldado desconhecido, Praça Sintagma

Academia de Atenas

Túmulo do soldado desconhecido, Praça Sintagma

Av. Vasilissis Sofias

Túmulo do soldado desconhecido, Praça Sintagma

Museu da Acrópole

Av. Vasilissis Sofias

Praça Lycabettus

Av. Elefteros Venizelou

Parlamento

Universidade de Atenas

Sócrates na Academia de Atenas

Praça Sintagma

Av. Elefteros Venizelou

sábado, setembro 10, 2016

Urinol e urinola vão à festa



Mataspeak regressou de banhos. Este ano não apenas de banhos metafóricos, já que as condições climatéricas na costa vicentina aproximaram-se das que se verificam na face de Mercúrio virada para o sol. Tal permitiu-me molhar o pé e ocasionalmente o resto todo, evento que requer umas boas centenas de graus centígrados e possui a raridade das aparições da Virgem em cima de azinheiras.

Em férias, um dos prazeres que mais prezo consiste no calmo folheamento do Público do dia enquanto mandibulo lentamente uma espessa sandes de pão de Porto Covo, prazer que em Lisboa precludem a corrida do rato e a qualidade medíocre da massa do padeiro da rua. Enquanto a casa vai acordando, salto as estatísticas aterradoras dos fogos florestais e das braçadas do Phelps para me deter demoradamente nas pequenas parvoíces que a falta de notícias de Agosto traz às páginas dos jornais supostos sérios, notícias muitas vezes intituladas com alarido “cientistas descobrem que ... uma coisa qualquer”. O que os cientistas vão descobrindo permanentemente nas caixas dos jornais permite-nos descobrir a nós como vai a literacia científica da nossa classe periodista, que simplesmente não vai.


Mas este ano o “silliest of the silly season award” calha indubitavelmente a novas de outra frente, às reportagens que o Público fez do acampamento de Verão da juventude do Bloco de Esquerda, apelidado de “Liberdade” com a modéstia a que o Bloco já nos habituou. E o “silliest of silliest special award” vai para o detalhe dos lavabos do acampamento não estarem divididos no habitual “homens e mulheres”, essas categorias tão subjectivas, mas sim num mais factual “com urinol e sem urinol”. Isto lembra-me uma caricatura numa revista Mad dos anos setenta, onde os lavabos de uma comunidade “hippie”, em vez das tradicionais duas portas “his” and “hers”, tinham sete: “his”, “hers”, “ours”, “theirs”, “somebody’s”, “anybody’s” e “everybody’s”.

Em 1917, Marcel Duchamp trouxe o urinol para o domínio da arte quando propôs sob pseudónimo uma destas peças para exposição pela Society of Indepent Artists nova-iorquina. Foi recusada, a obra original acabou por se perder e se calhar está a funcionar numa parede qualquer de Manhattan. Quase um século depois, a rapaziada bloqueira traz o urinol para o domínio da filosofia política, ao garantir que a separação com e sem urinol é um passo intercalar na direcção da casa de banho unificada que consagrará o fim da dicotomia homem/mulher, “extremamente redutora” segundo os organizadores do acampamento.

Na reportagem saída em 31 de Julho, a jornalista, embevecida, sub-titula que “a política também passa pelo WC”. Tantas vezes, diria eu, e em queda livre. Só que neste caso é a sério: o organizador Ricardo Gouveia quer “chegar um dia e poder dizer que vamos tornar isto misto, porque queremos mesmo desafiar os limites do género e os papéis do género e os pudores”. Ora aqui temos vanguarda a sério. Como é que Lenine não se lembrou de uma coisa destas? Se tivesse pensado, talvez a revolução ainda sobrevivesse, embora na União das Repúblicas das Sanitas Solidárias.

Tentando levar a coisa à prática, em edições anteriores do encontro a juventude bloquista ainda experimentou retretes e duches mistos, mas deparou-se com misteriosas dificuldades: conta Gouveia que uma rapariga, certamente de matriz reaccionária, “se sentiu desconfortável com rapazes que usaram esta experiência para olhar para elas”. Que surpresa! Vá-se lá saber porquê! Provavelmente não leram Trotsky.

Nos meus tempos de liceu, a dicotomia homem/mulher não só não era “extremamente redutora” como me parecia, a mim e aos meus colegas, mais central na explicação do sentido da vida que qualquer conceito filosófico ou religioso que nos tivesse aparecido pela frente. Fiéis a esta inquietação, assim que chegávamos da aula de ginástica amontoavamo-nos sobre a pesada dupla porta que separava o balneário dos rapazes do das raparigas. A porta encontrava-se claro está trancada – o Liceu Francês era tido por liberal nos costumes, mas não tanto como a juventude do Bloco – mas tinha um buraco no sítio do entretanto desaparecido manípulo que dava para um ângulo morto do lado feminino. As miúdas conheciam aliás perfeitamente o buraco e evitavam ir para esse lado, pelo que o pessoal, contrariamente aos sortudos da juventude bloquista, não via nada.

Ainda assim a tradição instituiu-se e em cada fim de aula a metade masculina de cada turma amontoava-se com grande alarido contra a porta para uma vã espreitadela. Até que um dia os materiais do trinco, menos infatigáveis que nós, acabaram por ceder e as portas do paraíso escancararam-se de par em par. No chão do balneário feminino ficou um amontoado de uns trinta miúdos imberbes nos seus treze anos, um dos quais era eu, enquanto elas gritavam e corriam a esconder-se nos duches. Em consequência deste sucesso, todos os rapazes do ano levaram um castigo colectivo, os que caíram e viram, os que não caíram mas viram e até os que não estavam lá mas que certamente haveriam de querer ter estado, o que pareceu justo a toda gente. Quanto a mim, no meio daquela confusão ainda consegui aperceber-me da minha colega IG em cuecas e sutiã, visão que preencheu a minha vida de sol até pelo menos às férias grandes e me valeu nos dias seguintes vários reparos professorais sobre o meu ar desligado das matérias que estavam no quadro.

Hoje já não ando propriamente a arrombar portas em grupo, mas para mim redutora continua a ser a espécie química que perde electrões para um oxidante, e nunca a dicotomia homem/mulher, uma das melhores invenções do processo evolucionário. Deu-me esta dicotomia excelentes momentos de vida – não o que estais a pensar, seus torpes! – como por exemplo o fazer crescer dois filhos com o auxílio de duas perspectivas tão essencialmente diferentes. E inspirou momentos da maior beleza para usufruto de todos: não estou a imaginar rasgos como Mme. Bovary, O beijo ou Annie Hall, saídos da visão aplainada de um Gouveia do Bloco.

Esta panca bloquista com retretes monocórdicas até poderia vir de um ou outro charrito mais bem servido, já que a juventude bloquista estereotipadamente inala, aliás com o beneplácito da cúpula organizativa porque o cheiro a ganza também cheira a fracturante. Mas veremos que não, que é mesmo assim, já que os organizadores estão desertos para falar à jornalista “de política”, já que “tudo é política, até a intimidade e as experiências que se partilham em espaços de conversa como o feminista e o LGBTQIA+”. Estou a citar, claro, porque eu não sei o que é o LGBTQIA+. Ou melhor, sei até ao T, mas desconheço o que serão o Q, o I, o A e o +: calculo que sejam uma curte e agradeço a quem souber que me esclareça.


Sinceramente, engalinha-me a obsessão bloquista com a temática sexual e as setenta mil formas de diversidade sexual. Para que conste, sou um daquele chatos heterossexuais e monogâmicos. Mas não julgo os outros nem positiva nem negativamente e mais: estou-me violentamente nas tintas para o que o resto da população mundial adulta faz entre quatro paredes, de sexos opostos, do mesmo, sozinhos, aos pares, aos trios, aos batalhões, lenta ou acrobaticamente, de pé ou deitado, com chapéu de aviador, aipo molhado e batedeira de ovos, com voos do alto do guarda-fato, tudo o que quiserem, desde que seja livremente praticado e consentido. E nem é uma questão de tolerância, palavra que acho horrorosa já que o que se tolera é o cheiro a peixe na praça ou o som da televisão do vizinho de cima. Em relação às escolhas sexuais dos outros, não reconheço nem a mim, nem a ninguém, o direito sequer de opinar. E neste particular, passe a imodéstia, se todos fossem como eu o mundo seria um lugar melhor.

Claro que o Bloco tem um pequeno problema, que tenta exorcizar com esta folestria pseudo-libertária: é que a corrente política e os partidos que formaram o Bloco (e que não desapareceram de todo, ainda lá andam) sempre foram tradicionalmente algo, muito ou extremamente reaccionários no que toca a moral sexual, consoante as épocas e os locais. O “homem novo” do marxismo-leninismo era muito homem e não tinha vícios nem degenerescências burguesas, não havia espaço para grandes variedades e muito menos para o L, o G, o B, o T e o resto do alfabeto. Há portanto aqui um pecado original para expiar.

Como um moralista, no pior sentido da palavra, dificilmente deixa de o ser, os bloquistas continuam nestas matérias a meter o nariz onde não são chamados. Enquanto os avós ideológicos dos meninos e meninas deste acampamento Liberdade reprovavam e, tendo o poder, reprimiam os homossexuais, os netos continuam a querer impor comportamentos e acham que isso é que é liberdade. Atentem neste pedaço de reportagem: “Quanto aos jogos, há um em que duas pessoas do mesmo género (binário ou não) trocam uma laranja com o pescoço. Normalmente cai. É um desastre sempre, mas é divertido, porque colocamos as pessoas a interagir fisicamente muitas vezes com pessoas do mesmo género e isso pode ser algo a que não estão habituadas”. Ou este: “Também fazem um comboio de massagens – as pessoas têm de fazer massagens nas costas das outras ou na cintura. São, diz Ricardo Gouveia, mais uma vez, gestos muitas vezes sexualizados, que se evitam dentro do mesmo género, mas que ali conseguem, de forma pacífica e sem obrigar ninguém a nada, desconstruir algumas ideias”.

Apetece-me dizer: vai mas é tu, ó Gouveia. Este rapaz, a jornalista que o entrevista e a turba saltitante que vota no Bloco não percebem a linha ténue que há entre uma força política reprimir a homossexualidade ou promovê-la. Em ambos os casos há uma suposta vanguarda bem-pensante que se acha no direito de achar o que os outros têm que fazer. E isso é perigoso e é retrógrado: não será novidade porque para mim o Bloco de Esquerda é um partido perigoso e retrógrado. Em matéria sexual, a única responsabilidade do Estado, ou do colectivo, é garantir que o espaço de liberdade privado existe e não é molestado. É pôr lá a arena. Depois cada um faz a tourada que quiser. Só que este conceito já é libertário de mais para os Gouveias desta vida.

O socialista Álvaro Beleza, chateado com o PS quando António Costa montou a chamada geringonça, referiu publicamente que o Bloco de Esquerda era um partido adolescente. Só em parte tem razão. O Bloco é o partido “hippie chique” da política portuguesa. E a parte “hippie” é de facto adolescente no sentido mais pateta da palavra, com as suas festas em que acham que evitam o sexismo e o machismo com mulheres transgénero a pôr música – uma vez mais, “Gouveia dixit”. Mas verdadeiramente tenebrosos são os mais velhos, a parte chique do partido, com as suas camisas Façonnable. Durante estas mesmas férias acabei o livro “Os burgueses”, da autoria de Francisco Louçã, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, três pesos-pesados do partido. Com estes já é política a sério, não há cá LGBTQIA+, nem sequer -. Sobre o que lá li, que não achei simpático, conto deixar-vos um “post” muito em breve.


Como palavra final: estas cenas fracturantes promovidas pelo BE acabaram por ser um bom golpe de “marketing” para capturar uma certa franja do eleitorado que sente necessidade de se achar moderno, ou lá o que acham que isto é. Mas quando oiço estes Gouveias, ou a Catarina Martins com a sua permanente certeza de superioridade moral, vêm-me umas saudades danadas do Américo Duarte, deputado único da UDP à Assembleia Constituinte de 1975. Aquilo era barba cerrada, blusão de ganga, boas tiradas sobre o patronato e um ar inequívoco a cintura industrial de Lisboa, tudo aquilo de que hoje a imagem pop do Bloco foge a sete pés. Só tinha 1% dos votos, mas era genuíno e por isso eu gostava dele.