sábado, novembro 14, 2015

14 de Novembro

Ontem, mais uma vez a peste acordou os seus ratos e mandou-os morrer na cidade feliz, como escreveu Camus.

Este é talvez um momento demasiado emotivo para dizer qualquer coisa, mas por outro lado há momentos em que a comoção pode ajudar à lucidez. A decisão sobre o que fazer não pode estar desligada do horror pela matança de ontem, nem da angústia dos pais e amigos que procuram pelo Twitter um sorriso de vinte anos que não voltou a casa.

Por isso talvez seja o momento certo para dizer que o “jihadismo” é um novo nazismo e terá que ter a resposta que teve o nazismo do passado. E é melhor que essa resposta seja dada por democracias na plena força da suas convicções do que por democracias minadas pelo extremismo e pelo medo.

Os assassinatos no Charlie Hebdo ainda se poderiam “explicar” como uma resposta bárbara e tresloucada à “provocação” de uns cartonistas que tocaram num assunto tabu para os sectários. Foram um ataque à nossa liberdade de expressão, o que não é coisa de somenos.

A carnificina de ontem vai um passo mais longe. O que ontem metralharam foi a nossa aspiração a ser felizes, a “pursuit of happiness” de que falavam Jefferson e Hamilton, o direito a jantar com os amigos, a ir à bola, a ouvir música, a estar na nossa.


Os homens que ontem perpetraram os seus crimes, ou pelo menos os seus mentores, querem impor uma sociedade à medida das suas curtas vistas, em que não se pode ouvir música, nem ir à praia, nem jogar vólei, nem rir alto, nem tomar um copo, nem escrever um livro, nem lê-lo. Uma sociedade em que uma rapariga bonita não possa ter o gosto de partilhar um sorriso. Uma sociedade que não pode aspirar a um futuro nem inspirar-se no passado. Estas sociedades existem: no leste da Síria e no norte do Iraque ocupados pelo Daesh, no Afeganistão e no Paquistão dos talibãs, no norte da Nigéria flagelado pelo Boko Haram.

Acho que estamos em boa altura de perceber que as coisas simples e boas da vida não são garantidas. Foram-nos legadas por uma longa linhagem de avós que tiveram que lutar por elas no passado. Também tivemos, no Ocidente, os nossos Daeshes e com muita dor e sangue conseguimo-nos livrar deles, alguns não há tanto tempo assim. As coisas simples e boas da vida podem ter que ser defendidas e aparentemente chegou a altura de serem defendidas.

Talvez um primeiro passo seja entender que a menos que nos queiramos limitar a ser entes meramente termodinâmicos – e nesse caso tudo seria indiferente, a vida como a morte – então temos que ver que há um Bem e um Mal, e que neste momento da História o Ocidente é o Bem e o “jihadismo” é o Mal.

Uso a expressão “Ocidente” como conceito e não como local geográfico. Na luta contra o "jihadismo" ajudará o orgulhar-nos de ser “ocidentais”, o fustigar-nos com menor frequência, o embevecer-nos um pouco menos com a mediania das sabedorias exóticas. Afinal, foi neste Ocidente, em cujas esplanadas bebemos uma cerveja enquanto folheamos o livro que livremente nos apeteceu comprar, que houve espaço para as liberdades que hoje temos por garantidas, embora sejam frágeis. Estas liberdades definiram um perímetro de criatividade onde se descobriram as vacinas, a máquina a vapor, o fio eléctrico, o algoritmo de computador. Estas descobertas geraram a afluência que levou a vidas mais longas, com menos privações e com mais oportunidades para uma fracção cada vez mais alargada da sociedade. E ao mesmo tempo, tal como a afluência e a liberdade de Atenas se traduziram no Parténon, a afluência e a liberdade do Ocidente deram frutos como Shakespeare ou Picasso.

É contra estas liberdades que os esbirros do Daesh disparam e em particular contra a liberdade de não ser obrigatório viver como eles querem. Não tenhamos por isso medo de nos sentir superiores a eles e não cometamos o equívoco de confundir os nossos erros com as razões deles. O Ocidente errou muito. Cometeu ao longo dos séculos muita injustiça e muita barbárie, primeiro com os seus e depois com terceiros. Provavelmente fará no futuro outros erros porque vivemos num planeta chamado Terra onde nada é perfeito e tudo é arriscado. Mas apesar dos muitos erros algo o Ocidente evoluiu. Sobretudo, o seu propósito não está na morte do outrem e na degola dos inocentes e esta verdade, mais do que uma diferença, constitui uma superioridade.

Infelizmente, e tal resulta da natureza das coisas, só a autoridade moral não chegará. O “jihadismo” islâmico terá que ser aniquilado por todos os meios incluindo os militares, tal como o nazismo o foi: com um foco total. A luta do Ocidente contra o nazismo e os seus aliados não foi um passeio, foi uma sucessão de horrores para vencer o Horror, uns necessários, outros que hoje nos parecem erróneos como Dresden. Esperemos que sobre o Daesh a vitória seja possível com menos sofrimento inocente, mas não nos iludamos: algum ocorrerá.

Para manter o foco, haverá aliados improváveis. Tal como Churchill e Roosevelt levaram até às últimas consequências a aliança com Estaline porque precisavam dele para ganhar, talvez tenhamos que reabilitar os senhores Putin e até Assad como companheiros necessários. Não é simpático mas mais uma vez relembro que isto se passa no planeta Terra, uma rocha dura feita de oxigénio, silício, alumínio, ferro e fria realidade das coisas.

Finalmente, nesta luta devemos não perder a alma. Tal como os ingleses mantiveram uma democracia parlamentar a funcionar debaixo das bombas de Hitler, o Ocidente terá que fazer o mesmo. Mais uma vez, uma questão de foco: a batalha trava-se contra o “jihadismo” ou o integralismo muçulmano ou que lhe quisermos chamar, não contra os muçulmanos vistos colectiva ou individualmente. Não nos esqueçamos que a larga, larguíssima, maioria das vítimas dos integristas são outros muçulmanos. Perguntarão alguns: mas não há muito tipo nas comunidades muçulmanas que tem posições dúbias ou mesmo de satisfação pelas acções dos terroristas? Há. Em qualquer conjunto de seres humanos há sempre uma percentagem significativa de imbecis. Que isso não nos distraia. Se dúvidas nos assaltarem, recorramos à leitura de Péricles e ao seu discurso fúnebre aos mortos da guerra do Peloponeso, onde a natureza da democracia vem bem explicada.

Ontem à noite o meu primeiro pensamento foi para o meu sobrinho que estuda em Paris, depois para alguns amigos dos meus filhos, que em pequenos correram pela nossa casa, que também lá vivem. Pessoalmente fui só tocado pelo medo e não pela tragédia, mas penso nos pais como eu e nos filhos como os meus que não tiveram a nossa sorte. Hoje, 14 de Novembro de 2015, não me consigo abstrair de que o Liceu Francês Charles Lepierre foi, juntamente com o terceiro esquerdo do número 39 da Avenida do Uruguai, a minha escola de Liberdade. Não consigo esquecer que em Paris há uma cabina telefónica no Trocadéro de onde aos dezoito anos telefonei a uma namorada com os últimos francos que chocalhavam no bolso e há uma pequeno parque infantil de rua ao pé do Hotel Salé onde os meus filhos brincaram com pequenos franceses enquanto nós descansávamos as pernas e há um restaurante na ilha de Saint Louis onde matámos a fome a horas tardias num fim-de-semana com bons amigos e há aquele pato que nadou quase meia hora ao nosso lado enquanto eu e a minha mãe e a memória de meu pai passeávamos ao longo do canal de Saint Martin. Sei por isto que, enquanto escrevo, “je suis”, mesmo “beaucoup”, Paris.