Este é talvez um momento demasiado emotivo para dizer qualquer coisa, mas por outro lado há momentos em que a comoção pode ajudar à lucidez. A decisão sobre o que fazer não pode estar desligada do horror pela matança de ontem, nem da angústia dos pais e amigos que procuram pelo Twitter um sorriso de vinte anos que não voltou a casa.
Por isso talvez seja o momento certo para dizer que o “jihadismo”
é um novo nazismo e terá que ter a resposta que teve o nazismo do passado. E é
melhor que essa resposta seja dada por democracias na plena força da suas
convicções do que por democracias minadas pelo extremismo e pelo medo.
Os assassinatos no Charlie Hebdo ainda se poderiam “explicar” como uma resposta bárbara e tresloucada à “provocação” de uns cartonistas que tocaram num assunto tabu para os sectários. Foram um ataque à nossa liberdade de expressão, o que não é coisa de somenos.
Os assassinatos no Charlie Hebdo ainda se poderiam “explicar” como uma resposta bárbara e tresloucada à “provocação” de uns cartonistas que tocaram num assunto tabu para os sectários. Foram um ataque à nossa liberdade de expressão, o que não é coisa de somenos.
A carnificina de ontem vai um passo mais longe. O que ontem
metralharam foi a nossa aspiração a ser felizes, a “pursuit of happiness” de que
falavam Jefferson e Hamilton, o direito a jantar com os amigos, a ir à bola, a
ouvir música, a estar na nossa.
Os homens que ontem perpetraram os seus crimes, ou pelo
menos os seus mentores, querem impor uma sociedade à medida das suas curtas
vistas, em que não se pode ouvir música, nem ir à praia, nem jogar vólei, nem
rir alto, nem tomar um copo, nem escrever um livro, nem lê-lo. Uma sociedade em
que uma rapariga bonita não possa ter o gosto de partilhar um sorriso. Uma
sociedade que não pode aspirar a um futuro nem inspirar-se no passado. Estas
sociedades existem: no leste da Síria e no norte do Iraque ocupados pelo Daesh,
no Afeganistão e no Paquistão dos talibãs, no norte da Nigéria flagelado pelo
Boko Haram.
Acho que estamos em boa altura de perceber que as coisas
simples e boas da vida não são garantidas. Foram-nos legadas por uma longa
linhagem de avós que tiveram que lutar por elas no passado. Também tivemos, no
Ocidente, os nossos Daeshes e com muita dor e sangue conseguimo-nos livrar
deles, alguns não há tanto tempo assim. As coisas simples e boas da vida podem
ter que ser defendidas e aparentemente chegou a altura de serem defendidas.
Talvez um primeiro passo seja entender que a menos que nos
queiramos limitar a ser entes meramente termodinâmicos – e nesse caso tudo
seria indiferente, a vida como a morte – então temos que ver que há um Bem e um
Mal, e que neste momento da História o Ocidente é o Bem e o “jihadismo” é o
Mal.
Uso a expressão “Ocidente” como conceito e não como local
geográfico. Na luta contra o "jihadismo" ajudará o orgulhar-nos de ser “ocidentais”, o fustigar-nos com menor frequência, o embevecer-nos um pouco menos com a
mediania das sabedorias exóticas. Afinal, foi neste Ocidente, em cujas
esplanadas bebemos uma cerveja enquanto folheamos o livro que livremente nos
apeteceu comprar, que houve espaço para as liberdades que hoje temos por
garantidas, embora sejam frágeis. Estas liberdades definiram um perímetro de
criatividade onde se descobriram as vacinas, a máquina a vapor, o fio
eléctrico, o algoritmo de computador. Estas descobertas geraram a afluência que
levou a vidas mais longas, com menos privações e com mais oportunidades para
uma fracção cada vez mais alargada da sociedade. E ao mesmo tempo, tal como a
afluência e a liberdade de Atenas se traduziram no Parténon, a afluência e a
liberdade do Ocidente deram frutos como Shakespeare ou Picasso.
É contra estas liberdades que os esbirros do Daesh disparam
e em particular contra a liberdade de não ser obrigatório viver como eles
querem. Não tenhamos por isso medo de nos sentir superiores a eles e não
cometamos o equívoco de confundir os nossos erros com as razões deles. O Ocidente
errou muito. Cometeu ao longo dos séculos muita injustiça e muita barbárie,
primeiro com os seus e depois com terceiros. Provavelmente fará no futuro outros erros porque vivemos num planeta chamado Terra onde nada é perfeito e tudo é
arriscado. Mas apesar dos muitos erros algo o Ocidente evoluiu. Sobretudo, o seu
propósito não está na morte do outrem e na degola dos inocentes e esta verdade,
mais do que uma diferença, constitui uma superioridade.
Infelizmente, e tal resulta da natureza das coisas, só a
autoridade moral não chegará. O “jihadismo” islâmico terá que ser aniquilado
por todos os meios incluindo os militares, tal como o nazismo o foi: com um
foco total. A luta do Ocidente contra o nazismo e os seus aliados não foi um
passeio, foi uma sucessão de horrores para vencer o Horror, uns necessários,
outros que hoje nos parecem erróneos como Dresden. Esperemos que sobre o Daesh
a vitória seja possível com menos sofrimento inocente, mas não nos iludamos:
algum ocorrerá.
Para manter o foco, haverá aliados improváveis. Tal como
Churchill e Roosevelt levaram até às últimas consequências a aliança com
Estaline porque precisavam dele para ganhar, talvez tenhamos que reabilitar os
senhores Putin e até Assad como companheiros necessários. Não é simpático mas
mais uma vez relembro que isto se passa no planeta Terra, uma rocha dura feita
de oxigénio, silício, alumínio, ferro e fria realidade das coisas.
Finalmente, nesta luta devemos não perder a alma. Tal como
os ingleses mantiveram uma democracia parlamentar a funcionar debaixo das
bombas de Hitler, o Ocidente terá que fazer o mesmo. Mais uma vez, uma questão
de foco: a batalha trava-se contra o “jihadismo” ou o integralismo muçulmano ou
que lhe quisermos chamar, não contra os muçulmanos vistos colectiva ou
individualmente. Não nos esqueçamos que a larga, larguíssima, maioria das
vítimas dos integristas são outros muçulmanos. Perguntarão alguns: mas não há
muito tipo nas comunidades muçulmanas que tem posições dúbias ou mesmo de
satisfação pelas acções dos terroristas? Há. Em qualquer conjunto de seres
humanos há sempre uma percentagem significativa de imbecis. Que isso não nos
distraia. Se dúvidas nos assaltarem, recorramos à leitura de Péricles e ao seu
discurso fúnebre aos mortos da guerra do Peloponeso, onde a natureza da
democracia vem bem explicada.
Ontem à noite o meu primeiro pensamento foi para o meu
sobrinho que estuda em Paris, depois para alguns amigos dos meus filhos, que em
pequenos correram pela nossa casa, que também lá vivem. Pessoalmente fui só
tocado pelo medo e não pela tragédia, mas penso nos pais como eu e nos filhos como os meus que não tiveram a nossa sorte. Hoje, 14 de Novembro de 2015, não me consigo
abstrair de que o Liceu Francês Charles Lepierre foi, juntamente com o terceiro
esquerdo do número 39 da Avenida do Uruguai, a minha escola de Liberdade. Não
consigo esquecer que em Paris há uma cabina telefónica no Trocadéro de onde aos
dezoito anos telefonei a uma namorada com os últimos francos que chocalhavam no
bolso e há uma pequeno parque infantil de rua ao pé do Hotel Salé onde os meus
filhos brincaram com pequenos franceses enquanto nós descansávamos as pernas e
há um restaurante na ilha de Saint Louis onde matámos a fome a horas tardias
num fim-de-semana com bons amigos e há aquele pato que nadou quase meia hora ao
nosso lado enquanto eu e a minha mãe e a memória de meu pai passeávamos ao
longo do canal de Saint Martin. Sei por isto que, enquanto escrevo, “je suis”,
mesmo “beaucoup”, Paris.
1 comentário:
Falta aqui um botão de like... não tenho palavras.
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