Aproveitando mais uma atilada iniciativa da Medeia Filmes, durante
um mês desloquei-me várias vezes ao Nimas, território cinematográfico livre de
pipocas, para ver no sítio certo uma dezena de filmes de Roberto Rossellini.
Assistir em tão curto espaço de tempo a tantos filmes do
mesmo autor permite-nos aceder a uma compreensão superior à do visionamento de
cada fita por si, exactamente como na pintura: não é o mesmo admirar um quadro
isolado ou percorrer uma retrospectiva do pintor. No primeiro caso limitamo-nos
à peça e no segundo chegamos à obra, com o correspondente acréscimo de clareza
e complexidade. Com alguma sorte, com a obra vislumbraremos até o homem ou a
mulher que espreita de trás dela. É outra riqueza, convenhamos.

Assim aconteceu comigo nesta mostra de Rossellini. Antes,
quando o único filme que vira dele fora o “Roma cidade aberta”, eu diria que ele
era um cineasta neo-realista italiano do pós-guerra. Hoje, vinte horas de
preto-e-branco depois, Rossellini já só é um cineasta, por sinal bem bom. A
anterior descrição que eu dele fazia parece-me agora tosca e redutora. Claro
que navegou a vaga neo-realista, como se pode constatar nas passagens quase
documentais (como a belíssima e agreste cena de pesca do atum em “Stromboli” ou
as de devoção popular em “Viagem em Itália” e em “A máquina de matar pessoas
más”), na utilização de actores não-profissionais interpretando-se no fundo a
si próprios e na inquietude com as classes mais desfavorecidas da sociedade.
Mas não mostra a carga ideológica de um Sica ou de um Visconti e do conjunto da
obra percebe-se que são outras as perguntas que o perturbam e as respostas que
lhe ocorrem. Ademais, sendo indubitavelmente italiano na alma, Rossellini é um
cosmopolita e não procura só uma visão local. A sua câmara percorre outros
sítios como a Alemanha, primeiro destruída em “Alemanha ano zero” e depois a
erguer-se renovada dos escombros em “O medo”. A sua reflexão sobre o que no
íntimo lhe interessa resulta muitas vezes do olhar de personagens (e actores)
estrangeiros sobre a Itália profunda e o choque que daí resulta. Assim é em
“Paisá – Libertação”, “Stromboli”, “Europa 51” e “Viagem em Itália”, um
razoável núcleo duro da sua obra. Finalmente, tendo vivido e filmado no
pós-guerra, por vezes com um ano apenas de intervalo para os acontecimentos que
o inspiraram, a sua reflexão continua tão actual que seria quase castrante
deixá-lo encaixado numa determinada época. Rossellini é intemporal e
universal, muito mais do que “italiano do pós-guerra”, e como todos os grandes
pode ajudar-nos a entender as agruras do nosso mundo presente.
Há um conjunto de temas que interessam a Rossellini e que
ele filma. Alguns poderão ter uma origem mais íntima, como o amor e a traição
entre homem e mulher (foi casado – ou próximo disso – cinco vezes e o duplo
adultério com que começou a sua relação com Ingrid Bergman causou grande
escândalo à época) ou o sofrimento e a solidão das crianças (perdeu um filho
pequeno e terá sofrido o consequente sentimento de culpa). Outros são mais
conceptuais, como os três choques que atravessam muita da sua obra e que em
Rossellini ocorrem por regra em simultâneo: entre modernidade e tradição, entre
a visão da “elite” e a do “povo” e entre a frieza norte-europeia e a latinidade
sul-europeia – quase que poderíamos dizer entre a predestinação protestante e o
livre-arbítrio católico. Esta referência ao catolicismo justifica-se tanto mais
que muitos conceitos que estão no imo da religião católica são centrais no
cinema de Rossellini: “Viagem em Itália” é a história de um milagre, “Europa
51” mostra-nos uma santa diante dos ímpios, “Stromboli” pode ser um conto de
tentação e redenção, a Francesca de “Paisá” vive a mesma iluminação que Maria
Madalena, a Nanni de “O amor” representa a inocência por oposição ao pecado e o
Celestino de “A máquina de matar pessoas más” debate-se com a sua incapacidade
de juízo final, porque é simplesmente um homem e não Deus.
Rossellini não era um homem religioso, mas sentia-se encantado
por uma certa pureza da religiosidade – encantamento que muito se nota nos seus
filmes. Admirava a ética do ensinamento católico e valorizava o efeito positivo
dos valores cristãos num mundo moderno. Nisto, sinto-me próximo dele. Apesar de
ateu, vivo como meus muitos valores que acarto de pequeno, que me apareceram em
casa, pela rua, numa leitura, talvez até nos meus cinco anos da catequese e que
culturalmente associamos ao Cristo do Novo Testamento. Interessam-me hoje questões
como o perdão, o bem e o mal, a essência e a aparência, o livre arbítrio e
nesse bom livro (com simples letra minúscula) encontrei sobre tudo isto alguma
matéria sobre a qual pensar. E também concordo com Rossellini que alguma da
ética dita católica poderia neste mundo meu contemporâneo, tão maquilhado, todo
de superficialidades, dar jeito em substituição da não-ética ou da microética
que reverbera através das fibras ópticas e das redes “wireless”. Sinto-me um
católico sem Deus ou um ateu cristão ou coisa que o valha.

Mas voltemos ao triplo choque entre modernidade e tradição, entre
“elite” e “povo” e entre a frieza norte-europeia e a latinidade sul-europeia,
que acima mencionei. Que nos traz Rossellini? Que lições podemos retirar para o
filme em que estamos todos malfadadamente metidos, o “Europa 15”, uma história
melancólica de regressão política, económica, social e ética, com novas derivas
totalitárias, novos proletariados, novas hipocrisias, novos ódios, novas
inequidades, novos mas não tão diferentes dos velhos que prenunciaram as
tragédia da Europa do século que ele filma?
Rossellini aborda as dicotomias que referi de fora para
dentro do povo (o que podemos interpretar como uma viagem do acessório ao
essencial, ou do erro à verdade). Começa com a perspectiva do estrangeiro: do
soldado americano em terras derrotadas, da família de classe alta horrorizada
com as pretensões e o contacto da plebe, do inglês perplexo com os maus hábitos
napolitanos, da mulher educada caída no meio do machismo ignorante. Rossellini
filma o povo sem filtros, de forma realista: uma massa que grita, que se
aglomera em bairros miseráveis, de lata ou pendurados nas escarpas sorrentinas,
que se reproduz a taxas terceiro-mundistas, que se dilui endomingada e alienada
num dia de procissão, de mulheres submissas aos maridos ou caídas na vida, mas
nunca livres, de homens animalescos e misóginos e também nada livres. As
pessoas parecem formigas após uma pisadela no carreiro, correndo pela vida
quando passa um cardume ou um vulcão acorda. Sobre esta amálgama, a visão da
“elite” oscila entre o divertido, o enfadado e o horrorizado, mas é sempre uma
visão de classe sobre um outro diferente e inferior.
No entanto, à medida que as narrativas fluem, Rossellini vai
equilibrando o encontro. Primeiro, porque a superioridade dos modernos, da elite, dos nórdicos, não impede a existência de um vazio nas suas vidas. E esse
vazio, primeiro adivinhado, depois visível, vai crescendo e começa a ocupar o espaço
central do filme. Aí, numa segunda fase, Rossellini arranja maneira de o
contraste com a tradição, o povo ou a latinidade levar à “vitória” destas e criar
as condições de superação desse vazio. Fá-lo de formas diversas: pelo sentido
trágico do destino, em “Stromboli”, com um inesperado milagre em “Viagem a
Itália”, com uma sublimação em “Europa 51”, pela revelação, mais de uma vez, em
“Paisá”.

Ocorre, em todos
estes filmes de Rossellini, uma subtil inversão de valores: é no caos mais do
que na ordem, na pobreza mais do que no fausto, na incerteza mais do que na
segurança que a vida se torna frutífera e ganha sentido e tem um futuro. Seja
de um povo, seja de um casal, seja de um indivíduo. Poder-se-ia levantar uma
voz crítica contra Rossellini, dizendo que é sempre fácil um elogio da pobreza
feito desde o conforto de uma vida burguesa. Seria uma crítica aparentemente
com alguma pertinência, mas que julgo na realidade algo injusta. O que
Rossellini visa combater com a sua análise não é a riqueza ou a ordem, mas a
cegueira, seja ela fruto da ignorância ou da hipocrisia. E o que Rossellini
procura enaltecer não é a pobreza, mas a genuinidade, a bondade e mesmo uma
certa grandeza que só o tempo confere aos povos e que está bem patente na cena
do museu em “Viagem a Itália”.
Daqui se poderiam retirar algumas ideias para os dias de
hoje, em que voltou à Europa um cisma geográfico entre uma perspectiva
supostamente racional, trabalhadora e incontornável dos do norte e uma pretensa
anarquia, abusadora, preguiçosa e parasita dos do sul, sejam eles portugueses
ou gregos, tanto faz, que para o finlandês ou checo médio é tudo a mesma ralé.
Por isso, toca de castigá-los, que como é para eles claro só o castigo educa. É
exactamente esta a lógica em “Europa 51” dos parentes de Irene e da estrutura de classe
(polícias, psiquiatras, juízes) que os ampara: podem sacrificar-se os laços de
sangue (hoje, os laços entre os povos), mas não as estruturas de poder da
sociedade (hoje, as estruturas do poder económico). Irene saiu da sua normal via
e por isso merece punição. A esta lógica, Rossellini com a sua câmara contrapõe a
cena final em que Irene está em paz, porque escolheu o lado certo e termina o
filme por cima, em “contre-plongée”, enquanto os seus parentes, reféns da sua
racionalidade mas indubitavelmente sofredores, saem pela esquerda baixa, como
Caim fugindo do olhar de Abel.
Também no filme “Europa 15”, em que todos somos figurantes,
é possível que a irrepreensível lógica dos “credores”, de que não há
alternativas (que de facto não são permitidas aos alegados “devedores”),
se justifique num primeiro momento mas que se revele vazia e estéril num segundo tempo, e que no final resulte num desmembrar da União
Europeia que já se cheira a alguma distância. E este desmembrar poderá ser
simplesmente uma separação rumo a um enfraquecimento e a um empobrecimento
colectivos, ou poderá dar guerra a sério – esta última foi aliás a normal
história da Europa, não esqueçamos.
Para Rossellini há uma virtude transcendente na
irracionalidade: por vezes, só momentos de irracionalidade permitem a vitória do
Bem ou da Grandeza do Homem, e a perenidade destes valores. Tal é muito visível
em “Paisá - Libertação”: não é racional ser um “partigiano” e lutar com caçadeiras
contra os obuses e caças-bombardeiros do exército nazi; não é racional procurar
um amigo ferido no lado alemão de uma cidade do tamanho de Florença, durante a
sua reconquista pelos aliados, correndo perigo de vida de cada vez que se corre
de uma esquina para outra; não é racional acender um fósforo numa noite de
desembarque em zona alemã, para se ser simpático e se mostrar uma fotografia a
uma rapariga cuja língua não se fala. Em todo esses casos, é provável que se
leve um tiro. No entanto, são essas coisas ilógicas que as pessoas boas fazem e
é isso que faz delas pessoas boas, diria mesmo pessoas superiores.
Nos Evangelhos encontramos muitas vezes esta intrigante
irracionalidade, em que se faz o que está certo e não o que dá jeito, por
exemplo quando Mateus larga um excelente e bem remunerado emprego como
publicano para seguir à borla um revolucionário guedelhudo sem futuro aparente.
E cada vez mais sinto que é esta descomprometida loucura que tanta falta faz à
Europa de 2015.
Um “post-scriptum” cinematográfico, aliás dois, daqueles de leigo irresponsabilizável: i)
Rossellini não tem o enquadramento ou a fotografia de um Antonioni, mas
compensa com um notável lirismo, que comove com naturalidade; o olhar de Joe, o
soldado negro norte-americano do segundo episódio de “Paisá - Libertação”, quando
descobre a pobreza maior que a sua em que vivem as crianças de Nápoles, é
disto um supremo exemplo; ii) Anna Magnani é certamente uma das maiores
actrizes de sempre, batendo por “knock-out” ao primeiro assalto a larga maioria
das pavoneantes na passadeira vermelha do Dolby Theatre.