Uma das marcas d'água do complexo de inferioridade nacional é o uso e abuso, quase sempre desnecessário e quase sempre saloio, de palavras e expressões em língua inglesa.
É uma praga que invadiu a maior parte dos jargões profissionais (em particular o económico-empresarial), que alastrou por essas modernas traseiras da sociedade que são as redes sociais, e que salpicou até a oralidade do dia-a-dia. E para tal não me ocorre outra explicação que não seja uma irreprimível vontade colectiva de armar aos cucos, naquela linha de "ó pa mim que falo inglês". Traduz uma percepção míope e paradoxalmente paroquial do que é a dimensão nacional, tendo-a como menor quando não a é. Integra por isso um conjunto de atitudes bacocas como o endeusamento de cada drible do Cristiano Ronaldo, a necessidade permanente de noticiar que somos os melhores do mundo numa treta qualquer, nem que seja em arremesso de caroços de azeitona, o orgasmo mediático sempre que qualquer pasquim lá de fora se lembra de nos brindar com um elogio a uma praia ou a um hotel, e a mais recente pancada que consiste em querer espetar com qualquer cadáver ilustre no Panteão, como se a nossa História fossem dois dias.
Ora Portugal não é tão pequenino que justifique estes comportamentos, nem com eles cresce - mau seria! Temos coisas boas e coisas más, como qualquer povo, e por isso não precisamos de nos estar permanentemente a pôr em bicos dos pés para atingir uma prateleira que na realidade está mais junto ao chão do que se julga. E entre as coisas boas que colectivamente temos para nos gabar, certamente uma das melhores será a nossa língua. A este facto adiante voltarei.
Regressando às inglesices, quero fazer notar que nada me move contra a língua inglesa. É uma língua muito prática quando precisamos de falar com um inglês, embora quase sempre dispensável se for para conversar com um português. Possui uma literatura rica, uma edição notável, uma plasticidade que a presta bem à rima, uma musicalidade que se aloja no ouvido. As vicissitudes da História transformaram-na na moderna língua franca, ocupando um espaço que já foi do grego na Antiguidade, do latim nos tempos medievos, ou do francês na era moderna. As suas características intrínsecas a isso ajudaram: a gramática é simples, as palavras mais frequentes são curtas e sonoras, consegue resistir mantendo-se compreensível perante taxas de erro elevadas. Tem por isso e muito bem um lugar privilegiado no mundo e na cultura contemporâneos. Mas continua a ser uma língua estrangeira, que não a nossa.
Também não tenho nada contra a utilização pontual de certos vocábulos ou
locuções estrangeiras no meio de uma conversa ou texto em português, quando tal
trouxer um significado específico que não encontre equivalente directo na nossa
língua. As palavras são amálgamas de significados e algumas há que se universalizaram
para ajudar qualquer discurso, tornando-se de certa forma parte integrante de
todas as línguas. Um termo como o francês "parti-pris", por exemplo,
não encontra tradução imediata em português: não é igual a
"preconceito" (que em francês será "préjugé"), é mais
suave, menos ancorado, talvez até mais humanamente compreensível. A utilização
do italiano "aggiornamento" ou do alemão "lebensraum",
pelas suas cargas históricas, remetem logo para contextos e sentidos
particulares que não serão automaticamente os mesmos que as suas traduções
"actualização" ou "espaço vital". Qualquer língua, e a
nossa também, é uma mãe generosa disposta a acolher no seu seio novos filhos.
Como em tudo, será uma questão de peso e de medida.
Vejamos então alguns dos dislates actuais. Nas empresas, a parolice corre
solta. Já não falo de termos ou siglas muito técnicos como EBITDA ou ROE, ou de
palavras universais como "marketing" ou "software", o que
aceito perfeitamente. Só que deu uma loucura no pessoal e passámos do resultado
líquido para o "bottom line", das tecnologias de informação para os
"ITs", de investimento para "capex", de pessoas para
"Full Time Equivalents", de taxa de rentabilidade para
"RoR", de custos para "opex", de indicadores e objectivos
para "key performance indicators", da administração para o
"board", de delimitação para "ringfencing", da demonstração
de resultados para “P&L”, de arranque para “go-live” e podia continuar
durante vinte páginas. Quando toda esta anglofilia se junta numa mesma
conversa, o resultado é o depoimento do Zeinal Bava na comissão parlamentar de
inquérito ao caso BES: uma salganhada sem sentido repartida por duas línguas
que deixa um sentimento de tentativa falhada de impressionar o burguês, para
não dizer "épater le bourgeois", o que neste momento já não me ficaria
bem escrever.
Se no caso do BES aparentemente ninguém é culpado, no desta invasão pela
anglofonia do nosso discurso empresarial há suspeitos evidentes. Os consultores
das McKinseys, AT Kearneys e BCGs da vida, cujas apresentações são o mais das
vezes um aglomerado de termos e siglas inglesas unidos por setas, em bonitas
cores, com o provável propósito de dissimular o deserto de ideias num trabalho
que custou uma fortuna ao cliente. Recordo um que há uns anos me vinha, numa
análise de alternativas a um projecto, com um cenário "plain
vanilla". Inquirindo, explicou-me que se tratava do "cenário
base". Pensei que finalmente tinha encontrado um consultor de estratégia
com sensibilidade poética, mas não: a partir dai comecei a ver o "plain
vanilla" em tudo o que era relatório. Nestas empresas, que têm escritórios
em todo o mundo e em que o mesmo trabalho é revendido vinte vezes em países
diferentes, este género de expressões, provavelmente com origem no avô rural do
Kentucky de um dos sócios do escritório de Nova Iorque, espalham-se que nem
viroses e a certo momento já andam por cá na boca dos directores financeiros e,
pior, dos professores de economia, contagiando os alunos que depois irão
espalhar a maleita.
De uma forma lamentável, esta queda pelo inglês acaba por se estender ao
próprio discurso publicitário das empresas, que usa e abusa de tiradas e termos
de pinta norte-americana, do festival "NOS Alive" ao cartão
"GALP fast woman". Entro ao acaso, neste momento em que escrevo, na
página do Pingo Doce e a primeira coisa que leio é "today is the
day". La Palisse não diria melhor, só que em francês. Não estou com isto a
criticar os publicitários. Eles sabem o que fazem: o papel da publicidade consiste
em explorar de forma inteligente as múltiplas facetas da estupidez humana, para
melhor vender. E se eles põem lá a frase em inglês é porque sabem que o povo se
sente fino a ler em inglês.
Com efeito, se usarmos as redes sociais como amostragem, vemos que a vontade
nacional de armar ao pingarelho no idioma de Sua Majestade é mais do que muita.
No Facebook, se alguém põe na sua página uma fotografia sua a passear o cão com
probabilidade acrescentará como comentário "Walking the dog!". Se fôr
um pôr-do-sol na página da Maria Joaquina de Alguidares de Baixo, ficaremos na
dúvida de se a fotografia não terá sido tirada na Cornualha, porque quase de
certeza que virá legendada com um "beautiful sunset". Qualquer imagem
de dois pombinhos abraçados arrasta uma torrente de comentários emocionados dos
"amigos" em que metade serão "cute"s, "love you"s
e "nice"s. "Cute"? Porque não "nzuri"? É o mesmo
que "cute" mas em swahili: sempre traz algum exotismo africano.
Esta necessidade de mostrar mundo fugindo àquela que é a nossa língua-mãe não é
de hoje, nem só deste nosso cantinho. Quando Tolstoi nos mostra, no
"Guerra e Paz", as classes nobres russas a falar entre si em francês,
julgando-se requintadas, está-nos a mostrar o mesmo fenómeno e fá-lo com óbvia
ironia porque o que é foleiro no Portugal deste início de século já o era na
Rússia de meados do século XIX. E para além de foleiro revela esquizofrenia,
porque a nossa língua materna é estruturante de quem somos: nós, os falantes em
português, pensamos em português e até sonhamos em português. Por muito que
estudemos outra língua, nunca seremos nela tão proficientes como em português. Enquanto
seres culturais, a língua em que primeiro balbuciamos e a época em que nascemos
e vivemos são os factores que mais fundamentalmente nos definem. Por isso,
quando vejo usar-se o inglês para dar pinta do que não se é, faz-me lembrar o
Michael Jackson a automutilar-se para parecer branco: não acabou nem preto nem
branco, acabou mal.
Ainda por cima, se há coisa de que nós, portugueses, nos podemos orgulhar é do
nosso idioma. É uma das primeiras línguas mais faladas do mundo, à frente do
francês, do alemão ou do russo. É uma língua que permeou outras: quando os
portugueses foram os primeiros cidadãos do mundo, indo por aí fora a procurar a
vida ou a fugir à morte, deixaram por onde andaram cair palavras que medraram
nos falares dos sítios que os acolheram, por longínquos que fossem, como o
turco, o japonês ou o iraniano. E é uma língua na qual se escreveram linhas
belíssimas, do melhor que há, e que só a nós, lusófonos, nos foi dada a graça
de poder apreciar em todo o seu esplendor. Peguemos no "Estatuário"
do Padre António Vieira. Um estrangeiro que tenho estudado a nossa língua, ou
que leia a melhor das traduções, conseguirá eventualmente apreciar o humanismo
intemporal desse texto, e talvez parte da beleza formal, e do ritmo, e da cor.
Mas não captará a plenitude do que Vieira deixou no papel. Esse é um privilégio
que só a nós está reservado.
O meu pai, que percebeu e viveu como poucos que eu conheça o verso de Pessoa "a minha pátria é a língua portuguesa", sentindo a morte chegar, escreveu-o na folha de rosto de um livro de Camilo e ofereceu-o no último dos Natais a um dos seus netos, acrescentando em rodapé "aprende tu também a amá-la através deste belo livro". Mais uma vez viu o que muito se esquece: que à nossa língua há que amá-la, como a uma mulher ou a um filho (ou a um pai), e não fugi-la como a um parente que envergonhe. Que diria ele diante da proliferação de "nice"s e "cute"s? Com o seu humor, talvez respondesse em inglês, língua que dominava e lia com prazer: "if they went all to the oak tree without the vee". Se calhar não, porque a sua educação não lho permitia. Mas faço-o eu.