domingo, novembro 02, 2014

Exposição fotográfica (XLVI)

 Veneza, Outubro de 2014

Galeria do Hotel Stucky Molino, uma antiga fábrica de farinha, na ilha dos judeus, a Giudecca

 Cais na ilha de Giudecca

Canal na zona de San Giorgio dei Greci

Janela do Cá d'Oro

Palácio dos Doges

Praça de São Marcos

 Torre do Arsenal

Estátua da Virtude atribuída a Cristoforo Solari, no Cá d'Oro

 Pátio em San Pietro di Castello

 O canal de Cannaregio visto da Ponte dos Três Arcos, a única das muitas de Veneza

 Leão no pátio do Cá d'Oro

 Na igreja de San Maurizio

Após o trabalho na vidraria New Murano Gallery

Orientalismos

Este Outubro andei por acaso um pouco mais a Oriente nas cadeiras da leitura e do cinema.

Terminei o livro "Istambul" de Orhan Pamuk, escritor turco que não tinha ainda lido e prémio Nobel há não muitos anos, prémio que no caso dele não saiu na Farinha Amparo, já que Pamuk é daqueles que mal tocam na bola se vê logo que são craques. Há grandes escritores que têm que ser desbravados até à última página para só então nos darmos conta, com surpreendente surpresa, que nos brindaram com um excelente livro. Aconteceu-me com Hemingway, Remarque ou Cardoso Pires. E outros há que não precisam que viremos uma folha para nos convencerem pela fluidez e pela diferença da sua escrita, gostemos mais ou menos da história. Nos meus últimos anos, destes, os casos de Mann, Joyce ou Mahfouz, e também deste Pamuk.

Em "Istambul", Pamuk fala-nos sobre três coisas em simultâneo e simultâneas, como se a uma santíssima trindade pertencessem: a sua infância e juventude até ao momento em que decide ser escritor, as casas, ruas e vistas da cidade de Istambul e um certo "spleen" nacional turco, feito de pessimismo fatalista, nostalgia da grandeza otomana, consciência da decadência e um recalcamento surdo e complexado diante de um Ocidente idealizado. Este sentimento até poderia lembrar a nossa, portuguesa, relação esquizofrénica com o passado dos Descobrimentos e o actual e hipotético eldorado europeu, não fossemos nós mais marialvas , a espreitar permanentemente uma oportunidade de nos afirmarmos como número um mundial numa treta qualquer para daí tirarmos um absurdo consolo.

No cinema Nimas, vi os seis filmes de um ciclo dedicado ao realizador indiano Satyajit Ray, que também desconhecia, facto que evidencia que por muito que façamos somos sempre ignorantes. Ray é sem dúvida um realizador fantástico, no enquadramento dos planos, na utilização da profundidade de campo, no uso da luz, na humanidade comovente dos dilemas que se põem aos seus personagens. Gostei muito dos seis que vi, mas sobretudo do "A grande cidade", um grande filme sobre o Bem, sobre as nossas capacidades de superação perante a adversidade e de defesa da nossa dignidade perante o abuso do poder.

Com a vantagem adicional de o Nimas ser o paraíso na Terra feito sala de cinema: arrumamos o carro na rua, compramos bilhete à antiga em menos de trinta segundos e sentamos logo, não apanhamos com o "trailer" da Lusomundo a dizer para desligar o telemóvel, pôr o lixo no lixo e lavar as mãos antes de ir para a mesa, e não temos que gramar com os ruminantes das pipocas porque simplesmente não há pipocas. Comer pipocas no cinema é das poucas coisas que vai abalando a minha forte posição de princípio contra a pena de morte. Quando são miúdos da idade dos meus ainda condescendo paternalmente, mas quando apanho ao meu lado com um gajo cinquentão como eu pendurado num balde de cinco litros de pipoca, tenho que me conter com todas as forças para não lhe dizer que já devia ter ou juízo ou níveis de glicémia suficientes para não vir gargarejar ruidosamente pipoca para cima do meu espaço vital.


Por coincidência, também há dias o telejornal da RTP se aventurou a Oriente, numa reportagem sobre a procura que os portugueses cada vez mais fariam da "sabedoria oriental", por exemplo sob a forma de ioga. Pelo menos era o que dizia o "trailer" que ia passando entre notícias sobre o Estado Islâmico ou sobre o estado da nossa economia, porque quando chegou a suposta reportagem era uma peça desenxabida sobre uma beta da linha que deixou um lugar de directora de "marketing" para fazer surfe pela manhã e ioga pela tarde. Tivemos direito a fotografias da senhora em frente ao Taj Mahal e ao lado de uns bonzos, a dois ou três "asanas" não muito acrobáticos filmados num jardim público com a senhora de calça de ganga e túnica daquelas usadas pelos ecologistas quando vão queimar milho transgénico ao terreno de um velhinho, e a meia-dúzia de inevitáveis considerações sobre a supremacia da felicidade oriental sobre a "rat race" que torturadamente sofremos entre reuniões para discutir a margem do terceiro trimestre e jantares no Bairro Alto.

Já perdi há muito a ilusão de que poderia ser informado por telejornais, mas esta peça jornalística abusava, mais parecendo um frete feito a uma amiga por alguém da RTP, por acaso com dinheiro dos meus impostos mas é assim a vida. Serviu no entanto para exemplificar uma tendência que de facto tenho encontrado por vezes no meu círculo de amigos e conhecidos, de um certo orientalismo. Um orientalismo reverente mais do que curioso, que assume uma superioridade mística e arcana provinda algures da Índia ou do Tibete que guia súbditos felizes e obedientes num caminho em que só podem ir até meio do caminho.

A curiosidade orientalista tem séculos de existência no que se refere à apetência pelo exótico. Esteve forte no século XVIII quando Montesquieu a aproveitou nas Cartas Persas para pôr o persa a dizer da França o que ele próprio não poderia dizer sem se entalar; esteve forte no século XIX quando o vapor e os hotéis já permitiam ao endinheirado a sua volta pelo Cairo, Beirute, Damasco, Constantinopla e Atenas, em razoável conforto e segurança (relativa já que Flaubert regressou sifilítico); esteve forte nos anos "hippies" do século passado quando Katmandu era o destino idílico de quem queria apanhar grandes mocas com algum sossego; regressou forte neste início de milénio, juntando à demanda pelo exotismo uma costela hermética e mística.

Roendo um pouco essa costela, encontraremos o que é habitual no hermético e no místico. Diante de um mundo complicado, é sempre tranquilizador o conforto das mensagens simples: basta acreditarmos numa sabedoria antiga e indiscutível, oculta mas acessível através da inevitável nomenclatura dos iluminados, e o sossego parece de novo possível mesmo que seja fora da realidade. Quando descobrimos com pasmo que a dor e a doença existem e nos esperam lá mais à frente, e que a ciência que julgávamos divina afinal tem as suas limitações, reconforta-nos a voz da sereia que nos garante existir uma medicina não apenas diferente mas superior, porque baseada em conhecimentos anteriores e irrefutáveis, que a moderna medicina critica apenas por despeito diante deste rival sereno e imbatível na sua "espiritualidade", palavra que dá para tudo menos para aquilo que realmente significa. Isto apesar dos números falarem por si no que toca às boas coisas que a medicina moderna nos trouxe, seja em menos crianças que morreram, seja em mais e melhores anos que os velhos viveram, nas doenças que desapareceram e por aí fora. Mas isto já é realidade e diante da vida real, que tem tanto de porreira como de tramada, o místico e o hermético fogem a sete pés. Para contrapor aos factos, há sempre uma inalcançável prima da tia da sobrinha do senhor da outra rua que tomou uma qualquer mezinha e ficou sem metástases.

Juntando a esta salada o exotismo oriental, é só misturar com vigor e temos o produto final em que a sapiência mística e hermética ganha contornos territoriais e étnicos, em que a cor de pele e a pertença a um sítio trazem só por si felicidade e autoridade. Eu na minha ignorância chamaria a isto um discreto racismo mas dizem-me que não, que é - adivinhem - "espiritualidade". E assim os habitantes do Butão são os mais felizes do mundo, apesar da posição 136 no índice de desenvolvimento da ONU, e todo o saber ocidental já tinha sido descoberto na Índia no quinto milénio antes de Cristo. Consequências de uma diferença e de uma superioridade inatas e indiscutíveis, já que resultam - adivinhem outra vez - de uma maior "espiritualidade".

 
Que diriam os Orientais de tudo isto? Que nos contam Pamuk ou Ray sobre a sua oriental superioridade? Contam-nos exactamente o contrário. Que de superioridade, nada. Pamuk ou Ray mostram-nos uma Turquia ou uma Índia onde as mulheres e os homens se deparam essencialmente com os mesmos sonhos e angústias que os de Oslo, Sevilha ou Vancouver: a amizade e o amor, o sucesso, a dignidade, a liberdade, a felicidade e a infelicidade, a aparência e a essência, o destino, a morte e a imortalidade. Os habitantes dos mundos de Pamuk e Ray são na sua diversidade contextual e cultural incrivelmente próximos de nós, são vizinhos de patamar e primos de almoço de Páscoa com quem podemos comungar risos e choros, são irmãos de sangue. Têm as mesmas grandezas e as mesmas fraquezas e as deles ajudam-nos a melhor perceber e resolver as nossas, e suponho que vice-versa. E como como nós têm defeitos, sofrem por vezes de ocidentalismo como nós de orientalismo: um ocidentalismo que Pamuk aborda explicitamente, como estruturante da mentalidade turca nas classes altas, e Ray discreta e ironicamente, através dos tiques britânicos dos seus personagens.

O gosto pelo exotismo não tem em si nada de negativo. O prefixo "exo" refere-se ao exterior e a melhor maneira de crescermos é olhar para fora, aprender e interiorizar. Mas devemos fazê-lo para enriquecer as nossas vidas e não para substituí-las por outras ou pelas de outros. Por isso, a Oriente, rogo aos meus amigos orientalistas que procurem mais os Pamukes e os Rays, e descurem gurus e rimpochés.