Como explicação para tal razia, ouvi aqui e ali que o
Inverno fora rigoroso como nunca se vira,
como se os anos ou vá lá as décadas de memória de uma pessoa tivessem
alguma coisa a ver com o “nunca” ou com o “sempre”. Escutei que o mar revolto
tinha “levado a areia” e “destruído a praia”, ali e por toda a costa. Uns,
convictos, garantiam que a areia fora para não mais voltar e se depositara em
parte incerta, mas certamente longe. Outros, tão convictos como os primeiros,
que não, que estava ali mais à frente, debaixo das águas e que no próximo ano
regressaria. Uns culpavam a natureza, por cada vez pior. Outros a perfídia do homem,
por construir espigões, quebra-mares, casas ou estradas demasiado próximas. Ao
ouvi-los, fiquei sem perceber: todos me pareceram afirmar mais com boca de
falar do que com olhos de ver, quanto mais de saber sabido. Não me parece que a
natureza ou o mar destruam, antes moldam à vontade deles. O mar já cá estava
quando nós chegámos e continuará quando nós partirmos, desenhando e
redesenhando: é ele o artista e nós meramente temos o privilégio de assistir à
exposição, entrando e saindo em passo apressado, compreendendo melhor ou pior o
segredo da obra. Quanto à perfídia do homem, será muita presunção nossa. Mais
um geocentrismo de pacote.
Durante o ano que precedeu este Verão, o mar da minha vida
também se agitou, pedindo meças, entre o bravio e o revolto. Quando as águas
amainaram, a minha praia também estava diferente só que aqui, secretamente
sei-o, de forma definitiva. Areias foram à vida delas, deixando seixos rolados
à vista. Flutuaram ao sabor das correntes e depositaram-se em enseadas novas, longínquas,
onde as esperam vidas de mãos dadas a quem fazem mais falta do que a mim e onde
testemunharão risos novos e novos suspiros. E eu por cá me quedei, procurando
entre calhaus um fofo para plantar o meu chapéu-de-sol.
Felizmente, nos Aivados como na minha vida, areias foram,
mas muito fica. Na praia de Agosto há menos espaço e mais seixo, mas continua
aquele por-do-sol visto do caminho nas dunas com a sua promessa de raio verde,
sempre esperada e nunca cumprida, e sempre a presença cálida dos amigos de
sempre, com uma ou outra nova ruga a testemunhar que há coisas que não mudam.
Na da minha vida, sobram-me os gestos repetidos de muitos anos, que são votos diariamente
renovados de felicidade: o livro aberto que se retira com cuidado de mãos que
adormeceram, a porta que bate a meio da noite soltando-nos para um sono mais
tranquilo, a carta batida na mesa com entusiasmo precedendo o corte inesperado
ou a conversa que flutua sobre um cálice onde marina um fundo de bom vinho
tinto. Certo que havia sons que ecoavam pelas paredes da casa que agora já só
reverberam na minha memória, quotidianamente. Mas ganhei em contrapartida uma
deliciosa saudade, que sabe ao salgado da lágrima e ao doce do reencontro.
E quanto aos espigões, planos, quebra-mares, controlos e
outras construções de areia, o mar e a vida estão-se nas tintas para eles,
passando-lhes por cima, rindo-se da prosápia de quem atravessa insignificâncias
no seu caminho e fazendo o que bem lhes apetece. Por isso, àqueles que acham
que riscamos alguma coisa, deixo-lhes abaixo um provocador de excelente qualidade.