Este Outubro andei por acaso um pouco mais a Oriente nas cadeiras da leitura e do cinema.
Terminei o livro "Istambul" de Orhan Pamuk, escritor turco que não tinha
ainda lido e prémio Nobel há não muitos anos, prémio que no caso dele
não saiu na Farinha Amparo, já que Pamuk é daqueles que mal tocam na bola
se vê logo que são craques. Há grandes escritores que têm que ser
desbravados até à última página para só então nos darmos conta, com
surpreendente surpresa, que nos brindaram com um excelente livro.
Aconteceu-me com Hemingway, Remarque ou Cardoso Pires. E outros há que
não precisam que viremos uma folha para nos convencerem pela fluidez e
pela diferença da sua escrita, gostemos mais ou menos da história. Nos
meus últimos anos, destes, os casos de Mann, Joyce ou Mahfouz, e também
deste Pamuk.

Em "Istambul", Pamuk fala-nos sobre três coisas em simultâneo e
simultâneas, como se a uma santíssima trindade pertencessem: a sua
infância e juventude até ao momento em que decide ser escritor, as
casas, ruas e vistas da cidade de Istambul e um certo "spleen" nacional
turco, feito de pessimismo fatalista, nostalgia da grandeza otomana,
consciência da decadência e um recalcamento surdo e complexado diante de
um Ocidente idealizado. Este sentimento até poderia lembrar a nossa,
portuguesa, relação esquizofrénica com o passado dos Descobrimentos e o
actual e hipotético eldorado europeu, não fossemos nós mais marialvas , a
espreitar permanentemente uma oportunidade de nos afirmarmos como
número um mundial numa treta qualquer para daí tirarmos um absurdo
consolo.
No cinema Nimas, vi os seis filmes de um ciclo dedicado ao realizador
indiano Satyajit Ray, que também desconhecia, facto que evidencia que
por muito que façamos somos sempre ignorantes. Ray é sem dúvida um
realizador fantástico, no enquadramento dos planos, na utilização da
profundidade de campo, no uso da luz, na humanidade comovente dos
dilemas que se põem aos seus personagens. Gostei muito dos seis que vi,
mas sobretudo do "A grande cidade", um grande filme sobre o Bem, sobre
as nossas capacidades de superação perante a adversidade e de defesa da
nossa dignidade perante o abuso do poder.
Com a vantagem adicional de o Nimas ser o paraíso na Terra feito sala de
cinema: arrumamos o carro na rua, compramos bilhete à antiga em menos
de trinta segundos e sentamos logo, não apanhamos com o "trailer" da
Lusomundo a dizer para desligar o telemóvel, pôr o lixo no lixo e lavar
as mãos antes de ir para a mesa, e não temos que gramar com os
ruminantes das pipocas porque simplesmente não há pipocas. Comer pipocas
no cinema é das poucas coisas que vai abalando a minha forte posição de
princípio contra a pena de morte. Quando são miúdos da idade dos meus
ainda condescendo paternalmente, mas quando apanho ao meu lado com um
gajo cinquentão como eu pendurado num balde de cinco litros de pipoca,
tenho que me conter com todas as forças para não lhe dizer que já devia
ter ou juízo ou níveis de glicémia suficientes para não vir gargarejar
ruidosamente pipoca para cima do meu espaço vital.

Por coincidência, também há dias o telejornal da RTP se aventurou a
Oriente, numa reportagem sobre a procura que os portugueses cada vez
mais fariam da "sabedoria oriental", por exemplo sob a forma de ioga.
Pelo menos era o que dizia o "trailer" que ia passando entre notícias
sobre o Estado Islâmico ou sobre o estado da nossa economia, porque
quando chegou a suposta reportagem era uma peça desenxabida sobre uma
beta da linha que deixou um lugar de directora de "marketing" para fazer
surfe pela manhã e ioga pela tarde. Tivemos direito a fotografias da
senhora em frente ao Taj Mahal e ao lado de uns bonzos, a dois ou três
"asanas" não muito acrobáticos filmados num jardim público com a senhora
de calça de ganga e túnica daquelas usadas pelos ecologistas quando vão
queimar milho transgénico ao terreno de um velhinho, e a meia-dúzia de
inevitáveis considerações sobre a supremacia da felicidade oriental
sobre a "rat race" que torturadamente sofremos entre reuniões para
discutir a margem do terceiro trimestre e jantares no Bairro Alto.
Já perdi há muito a ilusão de que poderia ser informado por telejornais,
mas esta peça jornalística abusava, mais parecendo um frete feito a uma
amiga por alguém da RTP, por acaso com dinheiro dos meus impostos mas é
assim a vida. Serviu no entanto para exemplificar uma tendência que de
facto tenho encontrado por vezes no meu círculo de amigos e conhecidos,
de um certo orientalismo. Um orientalismo reverente mais do que curioso,
que assume uma superioridade mística e arcana provinda algures da Índia
ou do Tibete que guia súbditos felizes e obedientes num caminho em que
só podem ir até meio do caminho.
A curiosidade orientalista tem séculos de existência no que se refere à
apetência pelo exótico. Esteve forte no século XVIII quando Montesquieu a
aproveitou nas Cartas Persas para pôr o persa a dizer da França o que
ele próprio não poderia dizer sem se entalar; esteve forte no século XIX
quando o vapor e os hotéis já permitiam ao endinheirado a sua volta
pelo Cairo, Beirute, Damasco, Constantinopla e Atenas, em razoável
conforto e segurança (relativa já que Flaubert regressou sifilítico);
esteve forte nos anos "hippies" do século passado quando Katmandu era o
destino idílico de quem queria apanhar grandes mocas com algum sossego;
regressou forte neste início de milénio, juntando à demanda pelo
exotismo uma costela hermética e mística.
Roendo um pouco essa costela, encontraremos o que é habitual no
hermético e no místico. Diante de um mundo complicado, é sempre
tranquilizador o conforto das mensagens simples: basta acreditarmos numa
sabedoria antiga e indiscutível, oculta mas acessível através da
inevitável nomenclatura dos iluminados, e o sossego parece de novo
possível mesmo que seja fora da realidade. Quando descobrimos com pasmo
que a dor e a doença existem e nos esperam lá mais à frente, e que a
ciência que julgávamos divina afinal tem as suas limitações,
reconforta-nos a voz da sereia que nos garante existir uma medicina não
apenas diferente mas superior, porque baseada em conhecimentos
anteriores e irrefutáveis, que a moderna medicina critica apenas por
despeito diante deste rival sereno e imbatível na sua "espiritualidade",
palavra que dá para tudo menos para aquilo que realmente significa.
Isto apesar dos números falarem por si no que toca às boas coisas que a
medicina moderna nos trouxe, seja em menos crianças que morreram, seja
em mais e melhores anos que os velhos viveram, nas doenças que
desapareceram e por aí fora. Mas isto já é realidade e diante da vida
real, que tem tanto de porreira como de tramada, o místico e o hermético
fogem a sete pés. Para contrapor aos factos, há sempre uma inalcançável
prima da tia da sobrinha do senhor da outra rua que tomou uma qualquer mezinha e ficou sem metástases.
Juntando a esta salada o exotismo oriental, é só misturar com vigor e
temos o produto final em que a sapiência mística e hermética ganha
contornos territoriais e étnicos, em que a cor de pele e a pertença a um
sítio trazem só por si felicidade e autoridade. Eu na minha ignorância
chamaria a isto um discreto racismo mas dizem-me que não, que é -
adivinhem - "espiritualidade". E assim os habitantes do Butão são os
mais felizes do mundo, apesar da posição 136 no índice de
desenvolvimento da ONU, e todo o saber ocidental já tinha sido
descoberto na Índia no quinto milénio antes de Cristo. Consequências de
uma diferença e de uma superioridade inatas e indiscutíveis, já que
resultam - adivinhem outra vez - de uma maior "espiritualidade".

Que diriam os Orientais de tudo isto? Que nos contam Pamuk ou Ray sobre a
sua oriental superioridade? Contam-nos exactamente o contrário. Que de
superioridade, nada. Pamuk ou Ray mostram-nos uma Turquia ou uma Índia
onde as mulheres e os homens se deparam essencialmente com os mesmos sonhos
e angústias que os de Oslo, Sevilha ou Vancouver: a amizade e o amor, o
sucesso, a dignidade, a liberdade, a felicidade e a infelicidade, a
aparência e a essência, o destino, a morte e a imortalidade. Os
habitantes dos mundos de Pamuk e Ray são na sua diversidade contextual e
cultural incrivelmente próximos de nós, são vizinhos de patamar e
primos de almoço de Páscoa com quem podemos comungar risos e choros, são
irmãos de sangue. Têm as mesmas grandezas e as mesmas fraquezas e as
deles ajudam-nos a melhor perceber e resolver as nossas, e suponho que
vice-versa. E como como nós têm defeitos, sofrem por vezes de
ocidentalismo como nós de orientalismo: um ocidentalismo que Pamuk
aborda explicitamente, como estruturante da mentalidade turca nas
classes altas, e Ray discreta e ironicamente, através dos tiques
britânicos dos seus personagens.
O gosto pelo exotismo não tem em si nada de negativo. O prefixo "exo"
refere-se ao exterior e a melhor maneira de crescermos é olhar para
fora, aprender e interiorizar. Mas devemos fazê-lo para enriquecer as
nossas vidas e não para substituí-las por outras ou pelas de outros. Por
isso, a Oriente, rogo aos meus amigos orientalistas que procurem mais
os Pamukes e os Rays, e descurem gurus e rimpochés.