domingo, outubro 27, 2013

Personalidades populares



Talvez por ser fim-de-semana e eu estar a descomprimir de uma frenética semana de trabalho, deu-me uma vontade urgente, daquelas de grávida, de zurzir um pouco na nossa mísera classe jornalística. Também é actividade que nunca se dá por perdida, porque basta abrir a televisão num canal de notícias para aparecer logo um lombo de repórter a pedir e a merecer cajado. Desta feita será a propósito de uma dicotomia que já há tempos que pede umas linhas: a das personalidades e dos populares.

Quando o jornalista nacional se quer referir às pessoas que protestam contra o fecho de um centro de saúde em Tondela, ou tentam salvar os seus bens de uma enxurrada na Ribeira de Frades, ou se juntam para ajudar os bombeiros a combater um incêndio de mato, ou assistem a um concerto do Toni Carreira, então usa o termo “popular”, por regra no plural: “populares testemunharam a fuga dos encapuçados que assaltaram a dependência do Crédito Agrícola de Mourão”. Os populares, para o jornalista português, são todos aqueles que não possuem estatuto social e cultural para se poder com eles usar a palavra “pessoas”. Os populares têm todos os defeitos que perturbam os queques que se acotovelam nas redacções munidos de um contrato a termo certo: são do campo e não da cidade, ou pelo menos do subúrbio; tendem a ser velhos, mais do que novos; são pobres ou eram-no e malandros deixaram de o ser; protestam ruidosamente em vez de serem submissos discretos; lêem o Record ou a Nova Gente e não o Peixoto na Visão; e acorrem com alvoroço a salvar um afogado na Costa da Caparica em vez de ir almoçar recatadamente um robalo escalado numa esplanada neo-rústica da Comporta.

Os populares vêm do povo e logo por cima do povo português, um povo sem graça, que não tem o carisma “pop” do povo maubere ou o destino trágico do povo palestiniano e que por isso merece ser tratado de popular para baixo. Em suma, o popular é na óptica editorial uma espécie de “untermensch” do Lavradio, de lesma pisável na base da escala evolucionária, fuçando no húmus dos arredores de Barrancos sem direito ao respeito ou à dignidade de um nome: poderemos assistir a uma entrevista no telejornal a um popular com uma tarja na parte de baixo do ecrã a dizer “Hélio-vizinho” ou “José-testemunha”. Certamente não imaginam uma entrevista a um presidente de um banco sub-titulada com “Ricardo-dono” ou a um primeiro-ministro com “Pedro-chefe”.


Nos antípodas conceptuais do “popular” encontramos a “personalidade”. Uma personalidade, para um jornalista, é toda aquela pessoa que detenha uma ou mais das seguintes três características: i) notoriedade pública, presente ou passada, em qualquer grau e por qualquer motivo, excepto talvez genocídio e outros crimes contra a humanidade; ii) uma profissão ligada às artes e letras, ainda que vagamente; iii) ser também jornalista ou aparentado. As personalidades, subentende-se, encontram-se acima da restante maralha, sendo mais do que meras pessoas, luzindo o brilho de uma visibilidade que as ascende acima do comum dos mortais. As personalidades surgem nos relatos noticiosos para dar, pela sua presença, importância e legitimidade a eventos como manifestações, abaixo-assinados ou encontros culturais. O jornalista escreverá que “o manifesto para rever a lei que regula a acidez do azeite foi já subscrito por várias personalidades”, com isso querendo significar que a iniciativa é coisa séria, ou boa, e isto mesmo que as ditas várias personalidades sejam uma salada russa que de azeite sabe pouco ou nada, composta pelo político que teve a ideia, um pintor de nível médio, uma actriz de novela com mais dotes físicos que declamatórios, o Boaventura Sousa Santos, um capitão de Abril e um desportista de topo já reformado, provavelmente a Rosa Mota se o lançamento for no Porto.  Quando no fio da narrativa se reclama para uma ideia o suporte de inúmeras personalidades, poderemos suspeitar que com alguma probabilidade a ideia não se vale por si própria e estamos perante um recurso publicitário daqueles mais reles, como quando se associa um futebolista ou uma cantora da moda a um champô ou a um depósito a prazo.

Tanto o modo como os jornalistas se referem às personalidades, como os critérios com que atribuem essa “distinção”, como a autoridade que lhes conferem, revelam-nos uma psicologia de tribo, tribo que partilha as ideias “certas” e não nasceu nos meios “errados”. Uma psicologia adulatória, inconscientemente submissa diante dos notáveis, que tem na aparência a medida de todas as coisas. Note-se que os jornalistas poderiam em relação às ditas personalidades usar com toda a objectividade a expressão “figura pública”. Mas isso não lhes permitiria diferenciá-las das outras pessoas e elevá-las diante destas.

Um paradigma desta apologia patética e pateta das personalidades encontra-se na rádio TSF, por sinal um exemplo acabado do jornalismo feito de ideias feitas. Não há reportagem sobre Angola que não comece com uns cantares em quimbundo ou em Trás-os montes com uma ladainha de uma velhota. Pois a TSF tem agora um programa chamado “Playlist” em que “todos os dias pede a uma personalidade” que escolha as músicas que se vão ouvir. Por regra as personalidades escolhedoras provêm dos meios artístico ou político, embora possam ser relativamente obscuras, caso em que a TSF tem que esclarecer: “hoje com o artista plástico José Marmeleiro”. Ninguém conhece o José Marmeleiro e por isso a TSF tem que nos dar parte que o senhor não repara canos, mas pinta uns quadros, o que o alcandora ao estatuto de personalidade e lhe confere portanto uma sapiência estética e cultural acima da média para efeitos de escolha de cinco ficheiros “mp3”.


Quando um repórter (ou outro tipo qualquer) usa os vocábulos “personalidades” e “populares” com menos de cinquenta anos de intervalo entre si, não está a fazer uma mera descrição sociológica. Contrariamente ao que julgará, está a afirmar uma ideologia, provavelmente sem pensar, porque pensar dá algum trabalho. Uma ideologia que configura uma sociedade de desiguais, escadeada, de castas como na Índia. Uma sociedade onde a notoriedade confere respeito e a falta dela retira direitos. Onde a notoriedade advêm da visibilidade à luz dos holofotes ou até na penumbra dos bastidores mas não da essência. Uma notoriedade que se ganha nas vaidades acetinadas da Caras, nas rodas de copos do Bairro, nos palcos das declamações subsidiadas e nas concelhias dos partidos. Uma notoriedade pequena de país pequeno mas suficiente para aliciar outras pequenezes, as de quem lá no fundo se consola colocando-se na orla entre as personalidades e os  demais.

Quando um jornalista usa no mesmo discurso os vocábulos “personalidades” e “populares”, lembra-me o Portugal dos anos quarenta e cinquenta que os meus pais e avós me contaram, de vilas e pequenas cidades com sociedades estratificadas, onde cada um tinha o seu lugar que o berço lhe ditava, na escola ou na falta dela, na profissão a que aspirava, no casamento que se tolerava e sobretudo no respeito que merecia. Impressionante como Salazar continua a andar por aí, morto mas mal enterrado, nas mentes que se julgam mundanas.

É por estas e por outras que o Jacques Rancière, filósofo com quem discordo muito mas que não deixa de ser fino observador, diz que a democracia só é verdadeira quando todos os lugares são tirados à sorte entre todos.