De repente, vejo e leio muitos senhores engravatados, de
vidas tranquilas à sombra do arco do poder, a agradecer-lhe o pacifismo, a
descrevê-lo como um anjo baixado à terra e a tratá-lo por Madiba como se fossem íntimos de algum lado. Alguns desses que agora se posicionam tu cá-tu lá
com a memória indefesa de Mandela são uns de entre muitos que em 1990 se
inquietavam com os riscos para o equilíbrio da África Austral de libertar um
turra.
Mandela foi de facto
um homem notável, mas para sorte dele e nossa por mais razões e outras razões do
que aquelas que a hagiografia oficiosa agora repete até à exaustão.
Se atentarmos nos passos da sua vida encontramos um
personagem complexo, fruto de muitas vivências e influências, com humores e
paixões, com erros como todos. Podemos pois ficar mais sossegados: Mandela era
um ser humano e não um extra-terrestre. E também mais consolados: as suas qualidades
mostram o melhor que o Homem tem para dar e que secretamente está ao alcance de
cada um de nós. Mandela construiu muita da sua vida a golpes de ousadia e
resiliência, virtudes que admiramos nos nossos maiores. Só que tão admirável nos
deve parecer o presidente triunfante que procura a unidade dos seus povos e não
a vingança, como o jovem que estudava Direito em condições paupérrimas, à luz
de uma candeia. Tão espectacular é a serenidade com que sai de três décadas de
cárcere e se senta à mesa de negociação com os carcereiros, como o é a força de
vontade que o faz ser o único estudante negro da Universidade de Witwaterstand,
enfrentando o racismo de colegas e sociedade.
Hoje, há quem se compraza com oportuno esquecimento a
descrever Mandela como o último dos pacifistas, como uma pomba arredia do conflito.
Não me parece. Mandela era provavelmente pacifista como a maioria de nós o
somos: temos por evidente que a paz é preferível à guerra. E foi efectivamente
um homem superior quando soube pôr para trás das costas as contas pessoais que
pudesse ter pendentes com os Afrikaanders para construir um projecto de país
multirracial. Mandela podia ter lançado com meia-dúzia de palavras a África do
Sul no ferro e no fogo. Mas escolheu a paz porque, citando-o, era a única via possível. Foi uma
decisão de um político lúcido e dedicado a uma causa, que sabia ler a relação
de poderes e os sinais dos tempos. Aproximadamente o mesmo político lúcido que
em 1955, face à opressão do regime do “apartheid” sobre os negros que
protestavam contra a demolição de um subúrbio de Joanesburgo, concluiu que a
luta armada era o caminho que o ANC devia seguir. Por isto chamaram-lhe nessa
altura, e durante muito tempo, terrorista.
Nestes dias ideologicamente espapaçados, verificamos que se
instalou nas sociedades ocidentais uma ideia perversa que a opressão se deve
tolerar porque não há alternativa. Para o pensamento mediano que por aí vigora,
a palavra revolução e o conceito de que há um direito a usar de força diante de
uma maldade insuportável, encontram-se associados a comportamentos antiquados,
praticados por coitados algo incivilizados que perderam o comboio da história e
ficaram perdidos no tempo algures entre o assalto ao Palácio de Inverno e a
Grande Marcha. É mais uma das ignorâncias correntes.
A noção de que existe justiça em responder com força a um
abuso reiterado ou exagerado é muito mais antiga. Está na Magna Carta, quando o
rei João de Inglaterra aceita que, se cometer alguma “transgressão” à lei, os
barões do reino, juntamente com toda a comunidade, poderão: “… ocupar-nos as terras e causar-nos pena de
todas as maneiras possíveis, nomeadamente, apoderando-se dos nossos castelos,
terras, posses e de qualquer outro modo que consigam, até que compensação seja
obtida conforme vejam adequado, ...”.
Está também nas palavras de João das Regras nas Cortes de
Coimbra de 1385, quando conclui que, a propósito da eventual obediência ao rei
de Castela, “não queira Deus que tal erro passe por nós, mas defendamos nossa
terra, que justamente o podemos fazer”.
Ou ainda, muito da pena de Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos Estados
Unidos: “Quando uma longa sequência de abusos e usurpações, perseguindo
invariavelmente o mesmo objecto, indiciam um desígnio de os reduzir a um
despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, de mandar abaixo tal governo e
providenciar novos guardas para a sua futura segurança.”
Para os vinte e cinco barões que pegaram na mão do rei João e o obrigaram a assinar a Magna Carta, para o doutor João das Regras, para Jefferson e os restantes “Founding Fathers”, cada qual dentro das suas circunstâncias históricas, usar de força, com risco de vida, para resolver uma iniquidade violenta podia ser justo, um direito e um dever. Por isso, talvez achassem legítimo, como Mandela a certo momento concluiu, que homens pegassem em armas para lutar contra um regime que proibia homens e mulheres de passear numa praia por causa da cor da pele.
O Mandela que entendeu em 1955 que só pela força podia
combater a desigualdade foi o mesmo que em 1990 percebeu que só pela paz
conseguiria construir a igualdade. Um como o outro representam um homem com um
destino singular, uma daquelas vidas raras a quem metem uma caneta na mão para
que deixe umas linhas escritas no livro da História. O respeito que nos merece Mandela
advém de ser um político que, com grande sacrifício pessoal e sem se servir, serviu
uma causa que transformou vidas, que trouxe liberdade a milhões e que desenvergonhou
os milhares de milhões que somos todos nós, que vivíamos na vergonha de viver
num mundo em que uma lei proibia pessoas de se sentar num banco de jardim se
não fossem brancas. Não caíamos pois no engano de dele ver só a parte e não o
todo, porque se perdermos a visão do todo perdemos a lição que ele deixou para
a posteridade.