terça-feira, agosto 23, 2011

Férias (I) - Per doar


Conta São Mateus que Pedro perguntou a Jesus quantas vezes deveria perdoar a quem o ofendesse, se sete vezes chegariam. Ao que o Cristo respondeu que não sete mas setenta vezes sete.

Esta resposta lembra outra, dois mil anos depois, quando perguntaram ao treinador Malcolm Allison quantos golos o Sporting devia marcar na primeira mão de uma eliminatória europeia para garantir a passagem à fase seguinte. Allison retorquiu que vinte e cinco.

Existe geminação entre estas duas tiradas. Ambas possuem um tom de “toma e embrulha”, ambas revelam espírito – embora o do primeiro seja santo – e ambas usam números absurdos para explicar o inumerável: uma eliminatória nunca está garantida e não há limite ao perdão que não o senso de quem perdoa.

Desde que me lembro, sempre tive em boa conta quem conte com boa capacidade de perdoar. Porquê, não sei dizer: talvez porque algumas vezes na minha vida tive a sorte de ser perdoado sem o merecer, talvez porque tenha aproveitado essas oportunidades que a não existirem não poderiam ter sido aproveitadas, talvez porque tenha visto perdoar e só depois percebido porquê. Em criança, andei cinco anos na catequese com bom aproveitamento, como na altura se dizia. Não encontrei Deus mas encontrei o pai do filho pródigo e esse não o esqueci.

O perdão é um conceito forte e até revolucionário, que mudou a natureza do universo. Na antiguidade greco-romana, mesmo os deuses estavam sujeitos ao “diktat” dessa misteriosa entidade chamada Destino, que zelava pelo respeito por uma espécie de lei de Talião cósmica: o mal feito por alguém, mesmo que involuntário, tinha que ser compensado pelo sofrimento do próprio ou de próximos. As tragédias gregas e os seus sucedâneos seiscentistas estão cheios disto: Édipo que se cega para compensar ter morto pai e seduzido mãe por engano, Orestes que enlouquece quando a sua paixão Hermione se mata após ambos terem tramado Pirro, e Clitemnestra que trata do sarampo ao marido Agamemnon por este ter sacrificado a filha de ambos, Ifigénia, por ordem dos deuses, durante a guerra de Tróia. O perdão não podia existir porque os homens estavam manietados, por muito heróis que fossem. Ainda hoje andam para aí uns equilíbrios “kármicos” que rondam à volta do mesmo pote.


De repente, a contra-vapor, apareceu na Galileia um barbudo assim para o mal vestido e adicionou um grau de liberdade ao sistema: já não era obrigatória a desforra cósmica e o destino trágico. Podia-se perdoar ou não perdoar, como parecesse a cada um mais adequado. E ele recomendava que sim, o que representou um salto ético. Perdoar tornou-se um exercício de liberdade e de responsabilidade. Os homens deixaram de ser títeres nas mãos do destino e puderam responder pelos seus actos, o que incluia o modo como decidiam usar ou não da sua faculdade de perdoar. Esta tornou-se uma característica essencial do mais nobre que há na humanidade: o ser humano é o único animal que perdoa.

Perdoar não mostra fraqueza. Pelo contrário, é uma prerrogativa dos fortes, é uma marca de poder. Só o príncipe, que pode exercer o “fait du prince”, consegue ser “bon prince”, expressão que nós traduziríamos recorrendo ao conceito de magnanimidade, palavra onde o prefixo “magna” afirma grandeza. Se quisermos um exemplo, pensemos em Mandela, que com uma palavra podia incendiar a África do Sul mas que com uma convicção de perdão a salvou.

 Relembremos: o perdão não é obrigatório. Podemos não perdoar e a vida continua. O meu pai, um dos homens que conheci que mais e melhor perdoava, disse uma vez ou outra à minha mãe, imitando John Wayne em “Um homem tranquilo”:

- Escreve aí na agenda o nome de fulano. Agora risca por cima.


E esquecia simplesmente. Não remoía, não ansiava. Fulano simplesmente desaparecia da memória, sem ressentimento e sem mossa, como que dissolvido numa tina de ácido sulfúrico. A seu modo, era um “quase-perdão”, discreto e longe das vistas.

Porque me veio agora esta conversa, em tempo de férias? Porque sim. Porque o velho Mata, que passava sempre pelo meu Agosto nem que fosse para almoçar com duzentos quilómetros em cada sentido, ainda tem umas histórias para contar a quem o quiser ouvir.