sexta-feira, maio 20, 2011

Exposição fotográfica (XXXIV)

Paris, mais da Páscoa 2011


Rue Mouffetard, Jardin des Plantes

Jardin du Luxembourg

Place du18 Juin, Montparnasse


Avenue Mozart, Auteuil

Place des Vosges

Passage des Postes, no Jardin des Plantes. Por aqui se escapou Olrik no "Caso do colar", de Blake e Mortimer

Jardin du Luxembourg

Bassin de la Villette


Jardin du Luxembourg

Tabuísmos


sexta-feira, maio 06, 2011

Exposição Fotográfica (XXXIII)


Paris, Páscoa 2011


Rua Louis Blanc


Canal de St. Martin

Manifestação contra Bashir Al-assad no Trocadéro


Grandes morangos na Rua Mouffetard


Café Poussin em Auteuil


Pombo no telhado da igreja de St. Médard, Jardin des Plantes


O cozinheiro e o velhote dos vasos, em Auteuil

segunda-feira, maio 02, 2011

O passeio a três

Chamou-se sucessivamente Monte do Bispo, Monte das Vinhas e Monte Luís. Teve muitos donos mas foi um remoto ocupante dessa sétima colina parisiense no século XVI, o padre La Chaise, confessor de Luís XIV, que acabou por impor o nome ao “Cemitière de l’Est”, aberto em 1804 no mês revolucionário de “Prairial”, nesse breve período em que os meses falaram de natureza e não de imperadores e deuses romanos.

Os novos cemitérios atendiam à época a uma preocupação de saúde pública, procurando afastar a defunta malta do centro da cidade. No entanto, a aderência da clientela começou por ser fraca. Os mortos achavam pouco fino ser enterrados num monte lá para os arrabaldes: em 1806 houve apenas cinco fregueses e em 1812 somavam os sepultados pouco mais de oitocentos, número escasso numa época em que se morria por tudo e também por nada.

Perante o elefante branco, a câmara de Paris levou avante em 1817 um genial golpe publicitário. Transladou para lá os restos mortais de Molière, La Fontaine, Héloisa – a medieva do amor cortês, não a apolinária dos verdes – e o seu amante Abelardo, que ficara sem eles de castigo por ter engravidado a até então donzela. A talhe de foice, a página em francês da “Wikipedia” garante-nos muito comicamente que Abelardo foi “castrado à força”. Pois sim, franceses néscios, calculamos que não tenha sido por acordo amigável.

A ideia municipal revelou-se um sucesso: em tão distinta companhia, os mortos sentiam-se mais à vontade e afluíram em grande número. Em 1830 atingiam os trinta e três mil, para chegar mais tarde aos setenta milhares que hoje jazem numa necrópole “coquette” e burguesa, que mistura o tétrico do campo de morte com a pompa dos “boulevards”, raiada por avenidas, caminhos retortos e rotundas. Com o número vieram os notáveis: Balzac, Wilde, Chopin, Montand, Proust, Piaf e, claro, Jim Morrisson. E por isso me encontrariam, no passado domingo de Páscoa, perdido por entre jazigos e campas rasas em demanda do túmulo do Rei Lagarto.

Tinha ido em passeio com a minha mãe e aproveitei uma manhã de sol em que vagueáramos a pé ao longo do canal de Saint Martin para visitar finalmente o famoso cemitério do Père Lachaise. Para a rapaziada da minha criação, este nome trazia fatalmente à memória Jim Morrisson e os Doors. Morrisson morrera em 1971 em Paris, provavelmente de “overdose”, e tornara-se o morador mais visitado do Père Lachaise, estatuto que ainda mantém passados quarenta anos, segundo ouvi a uma guia turística que arrastava entre sepulturas uma pequena multidão de turistas arrebanhados. De facto, “rock’n’roll never dies”!

O túmulo de James Douglas Morrisson é uma campa rasa e discreta, perdida no meio de jazigos novecentistas de granito roído pelo musgo e portas entreabertas pelo tempo que dão a ideia que os falecidos se ausentaram momentaneamente para umas dentadinhas nos pescoços parisienses. Como a guia previra, um magote de gente acotovelava-se no pouco espaço existente, fotografando e comentando em tom de férias. Uma árvore, escrevinhada até onde uma mão chegasse, mantinha o registo de quatro décadas de homenagens ao ídolo. Junto à lápide, algumas flores feneciam, acompanhadas de uma fotografia de uma banda de garagem provavelmente ali largada como uma promessa a um santo, pedindo inspiração e sucesso.

A minha mãe seguira-me pelo necrotério com a curiosidade de quem visita um monumento, embora, pelo sim e pelo não, levasse na mão uma pequena Bíblia que traz sempre na mala. Pessoa entendida nessas lides de fronteira entre o cá e o lá garantira-lhe uma vez que tal medida era prudente sempre que se visitasse um cemitério e ela preferiu não arriscar. Já tendo passado dos setenta, a minha mãe não vibrara com os Doors e ter-lhe-á parecido estranho o meu interesse naquela campa banal. Saquei por isso do “iPod” para lhe fazer ouvir a voz do homem que ali jazia.

Seleccionei o “Riders on the storm”. Quando, passados aqueles segundos iniciais em que uma linha de baixo e um rolar de bateria se confundem com a chuva que os cavaleiros atravessam, ouvi a voz de “crooner” de Morrisson, não pude deixar de me surpreender com a relatividade subtil da morte. Qual o Morrisson verdadeiro? O que jazia ali a metros, inerte, já não mais que meras moléculas redisseminadas no ciclo da vida envolvente, ou o fluxo de “bits” e electrões que declamava, nos meus ouvidos, a nossa estranha forma de vida, de “cavaleiros na tempestade atirados para este mundo como um cão sem osso ou um actor solitário”. E este último Morrisson, poderia estar morto? Pode um morto cantar a vida? Não estará vivo quem nos faz instantaneamente bater o pé ao som do “L.A. woman” ou sorrir de boa disposição quando canta “Love street”?

Não será que perpetuamos na vivência de nossas vidas o mais vivo das vidas dos que fisicamente já nos deixaram?

Fazendo-o, confirmamos Camões, que quando se refere nos Lusíadas à “lei da morte” está a falar do esquecimento, não do fim físico.

Tais pensamentos consolaram-me. Congeminara este passeio a Paris já há alguns anos. Imaginara-o como um momento especial com meu pai e minha mãe, um tempo dedicado e exclusivo, um obrigado por tudo. Mas a inércia prega-nos destas: veio a doença e a partida inesperada. De repente falhara o meu intento e já só estávamos dois para o passeio.

Assim julgava eu, mas mal: na realidade andou sempre ao nosso lado, nas memórias fugazes e nas mais perenes, em Auteuil, nos corredores cerâmicos do metropolitano, nos recantos das conversas, descendo a rua Moufetard e os seus estaminés garridos, nas alamedas senhoriais de Monceau, nos risos e nas lágrimas, admirando a manobra das comportas no canal de La Villette, na cor dos quadros de Van Dongen no Palais de Tokyo, nos silêncios, nos espelhos trabalhados do La Coupole em Montparnasse. Afinal, sempre viera.