sábado, janeiro 09, 2010

O estrangeiro

I can turn
And walk away
Or I can fire the gun
Staring at the sky
Staring at the sun
Whichever I choose
It amounts to the same
Absolutely nothing

I'm alive
I'm dead
I'm the stranger

The Cure, in “Killing an Arab”


Passaram esta semana cinquenta anos sobre a morte de Albert Camus, num automóvel enfeixado contra uma árvore. A efeméride deslizou discreta pelo meio do esquecimento geral. Poucas mas honrosas excepções, entre as quais cinco minutos num telejornal da RTP.

Neste blogue, não será anormal que se faça esta referência. Porque Camus anda por aí de passeio, discreto mas presente, nas linhas e entrelinhas dos cento e tal textos que aqui pus a público.

De facto, Camus é certamente o escritor e o pensador que mais me influenciou ou, melhor, modificou. Apanhou-me na altura certa. Li quase toda a sua obra entre os quinze e os vinte anos, que é quando os livros ferram mais. Li o romancista, o dramaturgo, o jornalista e o filósofo. Destes, gostei menos do último, porque lhe faltava a clareza cristalina dos outros. Aliás, o próprio escreveu: se queres ser filósofo, escreve romances.


Antes de Camus, antes de Meursault e de Rieux, o planeta que eu via à minha volta parecia bem-encaminhado, rumo aos amanhãs canoros em que seríamos todos amigos e iguais. Havia certezas e até convinham.

Depois do estrangeiro e da peste, as coisas já não se mostravam tão simples. A dúvida instalou-se, descobri que bem-vinda. O sentido deixou de ser evidente. Mas existe e até faz mais sentido.

Recordo, da minha primeira leitura de “O estrangeiro”, a diferença e a crueza que senti. Ali estava um tipo que não se punha com tretas e descrevia as coisas como elas eram. Ali estava um livro que não mentia sobre um homem que tinha para com a vida toda a franqueza do mundo. E o mundo tinha ao fim e ao cabo o seu quê de absurdo. Aqueles personagens que se iludiam encontravam uma felicidade de periferia, suportadas por aparências de glória, honradez ou felicidade. O estrangeiro, Meursault, que não mentia a si próprio, percebia que os homens eram erráticos como as partículas no movimento browniano, impelidas por moléculas invisíveis a olho nu. Percebia que o destino de cada um podia traçar-se por um acaso, por um reflexo de sol no mar ou pelo torvelinho de circunstâncias que o levou a matar um árabe e a morrer por isso, aceitante.

“O estrangeiro” instalou em mim a dúvida metódica, que cultivo até hoje ou que até hoje me apoquenta, não sei bem. A minha pergunta deixou de ser “para onde vamos” para se tornar “quem ou o quê nos empurra”.

Mas essa nova visão, sendo rica, não me chegava, como não lhe chegou a ele. Veio a Segunda Guerra, a França foi ocupada e martirizada. Camus poderia ter aceite esse destino com indiferença, como Meursault aceitou o seu. Mas não. Lutou, participou na resistência, escreveu na clandestinidade, com grande risco pessoal. Os seus magníficos ensaios no jornal “Combat” são um monumento de tolerância e humanidade, redigidos num momento tenso em que o sectarismo poderia aceitar-se (por outros, que nunca por ele). Escreveu, a 25 de Agosto de 1944, no último dia de combates pela libertação de Paris, o seguinte: “Nada é dado aos homens e o pouco que podem conquistar paga-se com mortes injustas. Mas não é aí que está a grandeza do homem. Está na decisão de ser mais forte que a sua condição. E se a condição é injusta, não há outro modo de a ultrapassar que não seja ser justo. A nossa verdade esta noite, a que plana neste céu de Agosto, é a que traz o consolo ao homem. E é a paz do nosso coração, como seria a dos nossos camaradas mortos, poder dizer diante da vitória regressada, sem espírito de retorno ou de reivindicação: “Fizemos o que era preciso”.”

Afinal sempre existia um sentido para a vida: fazer o que era preciso e vencer as nossas limitações, revoltando-nos contra o absurdo e trazendo ao de cima o melhor que há em nós, em cada um de nós. Dizia ele: “Creio no homem, não na humanidade”. Tudo isto, que aqui descrevi em termos simplistas, escreveu-o ele em “A peste”, num dos mais belos romances que se possa ler.

“O estrangeiro” e “A peste” não são apenas duas fases do pensamento e da vida do seu autor. São duas caras do mesmo Janus, olhando o mundo segundo duas direcções diferentes, mas partes de um todo. A segunda, surpreendentemente, possibilita-nos um optimismo que nos falha na primeira. Mas sem perder a lucidez. No último parágrafo de “A peste”, quando na cidade se celebra o fim da epidemia, o personagem principal, o doutor Rieux, reflectia que “…este contentamento estava sempre ameaçado. Porque ele sabia o que a multidão alegre ignorava, e que se pode ler nos livros, que o bacilo da peste não morre nem nunca desaparece, que pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, que espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e nas papeladas, e que, talvez, viria o dia em que para desgraça e lição dos homens a peste acordaria os seus ratos e enviá-los-ia para morrer na cidade feliz.”

Passa-se o mesmo com os bacilos da intolerância, da ignorância, da soberba e outros igualmente mortais. Mas, diz o ditado, enquanto o pau vai e vem folgam as costas.


Para além de um pensador e de um combatente, Camus foi um grande escritor, com uma prosa depurada e elegante mas densa, onde cada palavra tinha o seu papel. Um exemplo: descrevendo a sua ida para o liceu, oriundo de um meio social muito simples (a mãe era analfabeta), diz “conheci a comparação”. Não fala da discriminação ou da rejeição ou da humilhação, que são efeitos e que são os vocábulos que normalmente usaríamos. Usando a palavra certa, fala da causa, a comparação. E faz pensar: com que direito, no dia-a-dia, comparamos pessoas, quando deveríamos comparar atitudes e comportamentos?

Lendo a sua obra e conhecendo a sua vida, verifico ainda que por feliz coincidência Camus, tendo certamente os seus defeitos, foi um tipo porreiro e decente, características que nem sempre andam juntas: conheço gente decente que se porta como uma besta e malta porreira que esfaquearia sem hesitar pelas costas. Quando ganhou o prémio Nobel da literatura escreveu ao seu antigo professor primário, Louis Germain, que dera pelas suas qualidades numa escola pobre da Oran colonial e diligenciara para que ele pudesse continuar a estudar. Nessa carta, entre outros momentos que vale a pena ler, disse-lhe: “… apesar da idade, não deixei de ser o seu reconhecido aluno.” Humildade e gratidão, que tanto falham hoje em dia.


O mundo em que vivemos não diferirá muito, naquilo que mais importa, daquele que Meursault e Rieux contemplavam das suas janelas. Continua absurdo, urdidura de aparências e convenientes correcções que como uma cortina tapam a incoerência essencial. Hoje, o que nos falta é a mão estrangeira de um Camus, que levante a cortina, e a sua voz, que nos peça para pensarmos sobre o que vemos.