domingo, fevereiro 15, 2009

Eluana

A propósito daquela senhora italiana que faleceu agora depois de dezassete anos em estado vegetativo, após a família ter conseguido nos tribunais autorização para a deixar morrer – Eluana Englaro.



1) As fotografias nos jornais mostravam uma rapariga de vinte anos, antes do acidente que a remeteu para uma existência duvidosa de inconsciência, tubos e cuidados paliativos. Essas imagens, de uma moça cheia de vida sorrindo bronzeada para a câmara, comovem e lançam a perplexidade. A morte de uma pessoa em plena juventude expõe de forma cruel a fragilidade da condição humana: o infinito que almejamos, o muito que podemos, mas o pouco que na verdade somos.


Andava eu no início do liceu, quando morreu um colega mais velho, finalista, num acidente de carro, lançando a comoção no pequeno mundo daquela escola. No dia em que correu a notícia, na aula de Português, a professora, sentido a consternação na sala, tentou trazer-nos umas palavras sobre a vida e a morte. Mas a boa senhora, emocionando-se ela própria, só conseguiu dizer “os jovens não deviam morrer”. Não precisava de mais, porque dizendo isto, disse tudo. Se de facto existisse na nossa criação um desígnio inteligente, como muitos crêem, os jovens (ou as crianças) não morreriam. Seriam inquebráveis ou regenerariam como as caudas dos lagartos ou qualquer outra daquelas coisas acessíveis à omnipotência dos criadores.


Como os jovens também morrem – o que podemos verificar todos os dias – das duas, uma: ou não há desígnio ou não é inteligente.


2) Mas a rapariga da foto pouco teria a ver já com o subsistente corpo de hoje, inerte, mirrado e com escarras, entubado, imagem que a família, com um pudor que a honra e que destoa nesta era triste de folia mediática, não permitiu que se divulgasse.


Segundo informação do pai de Eluana, a própria manifestara ainda antes do acidente vontade de nunca ser deixada num tal estado. A família lutou durante anos nos tribunais por aquilo que considerava ser uma morte digna para a sua filha. Note-se que poderiam não se ter dado ao desgaste e à maçada, deixando-a para lá longe, ligada a tubos e fios. Mas deram, no que me parece nitidamente um acto de amor.


Na esteira destes factos, houve mosquitos por cordas em Itália, com o Vaticano e o governo do burlesco Berlusconi (com perdão para o fraquito mas irresistível trocadilho) a falarem de homicídio. Tentaram contradizer por decreto a decisão do tribunal, numa excelente demonstração do que é a visão cesárea que em Itália se tem da separação de poderes, tudo com o zelo de um Cauchon e a sanha de um Torquemada.


Berlusconi não passa de um pateta, de uma linhagem que vem de longe com Nero, Calígula, Rodrigo Bórgia, Benito Mussolini e outras abetardas menos conhecidas que, paradoxalmente, aquele povo culto e refinado decide periodicamente pôr a tratar dos seus assuntos.


Já o Vaticano se devia dar a mais algum respeito. Ficámos a saber que os católicos se sentem autorizados a julgar a decisão e a dor daqueles pais, e logo nos termos em que o fazem. A mim, isso parece-me aquilo a que os próprios chamam pecado de orgulho.


Quando oiço tantos católicos a torcer os argumentos para os encaixar no caixilho moral com que lhes acenam desde Roma, por muita abertura de espírito que tente ter começo-me a perguntar se um crente poderá alguma vez ser um ser livre.



3) Penso que a eutanásia, se escolhida livre e conscientemente, é um direito humano. Se somos livres de decidir sobre a nossa vida, não há razão para não decidirmos sobre a nossa morte, se considerarmos esse desfecho mais digno que uma existência penosa e degradante.


As limitações legais à eutanásia são um resquício do poder da Igreja sobre o poder secular, tendo implícito que só Deus pode dar e tirar a vida. As leis das repúblicas contra a eutanásia punem um pecado e não um crime. Não passam, por isso, de um anacronismo hipócrita.


Obviamente, regular a eutanásia reveste-se de grande complexidade. A sociedade deve garantir que resulta de uma decisão verdadeiramente livre e informada do próprio e não da coacção física ou psicológica de terceiros. O que não parece fácil. Mas legislar, por exemplo, sobre a liberdade de expressão, o direito à educação ou a punição do crime económico, também teve as suas complicações. E não foi por isso que se deixou de fazer.


A dignidade na morte é uma continuação da dignidade da vida. Os primeiros a perceber isto foram os nossos primos afastados, os homens de Neanderthal. Quando, há mais de cinquenta mil anos, vivendo em condições cuja dificuldade só dificilmente conseguimos hoje imaginar, começaram a gastar recursos e tempo precioso para a sua sobrevivência no enterro cerimonial dos seus mortos, disseram-no sem palavras mas muito claramente. Cada uma daquelas campas rasas que chegou até nós é um livro de filosofia ou de ciência política, um volume não escrito, mas muito claro e assertivo sobre a especificidade do indivíduo e a nobreza do ser humano.


Admito como ingenuidade minha ter julgado que os papas e os Berlusconis pudessem ser hominídeos mais avançados que os Neandertais. A estes, o meu pedido de desculpa.


4) Para finalizar, já reparam que o Vaticano se ouriça totalmente com a eutanásia, mas muito discretamente com a aplicação da pena de morte? Porque esta pratica-a um Estado, enquanto a primeira decide-a um indivíduo. E este, o indivíduo, é o verdadeiro inimigo.

domingo, fevereiro 01, 2009

Girls will be girls – “Post” machista e inconveniente

Congeminei este “post” num jantar de anos ocorrido há dias em que se relembrou a seguinte e picaresca história. Cerca de um ano antes, em casa de minha mãe, aconteceu falar-se do George Clooney e do Brad Pitt, a propósito das senhoras dividirem hoje em dia as suas aspirantes preferências entre estes dois mancebos, como os lisboetas entre o glorioso Sporting e o rasteiro Benfica – não que eu tenha neste capítulo parcialidades. Ora a minha mãe, que ainda recorda com enlevo o Rock Hudson, não sabia da existência destes dois almejados artistas. Em relação ao Clooney, não tivemos dificuldade em explicar-lhe: “aquele gajo da máquina de café, tás a ver”. Já para o Brado Pita, não conseguimos que lá chegasse por não haver filme em que entrasse que ela tivesse visto e a conversa acabou por morrer ali.


Tempos depois, calhou a minha mãe dizer-me: “Já sei quem aquele actor de quem vocês falavam. Vi-o numa revista no médico. É assim parecido contigo”. Achei piada à comparação e mais à generosidade estética, embora tivesse ficado inquieto sobre a evolução da sua miopia. Mas não haja dúvida, mãe é mãe e o meu macaquinho é sempre o mais bonito. E vou de contar esta história numa roda de amigos e amigas. Entre estas últimas, a reacção foi espectacular, como se eu tivesse desrespeitado o nome de profeta numa convenção de fundamentalistas islâmicos ou insultado o Pinto da Costa numa rua da Afurada. Uma delas, mais devota de S.Brad, esteve mais de cinco minutos a gargalhar da heresia, as lágrimas grossas correndo-lhe cara abaixo até lá se conseguir controlar. Pela noite fora, de cada vez que se lembrava, soltava um risito histriónico, quase arrelinchado.

A história acabou por ganhar contornos de anedota no nosso grupo de amizades e voltou à baila no aniversário que acima referi, para gáudio dos convivas. Dizia-me uma das comensais: “o teu ego aguenta bem esta paródia”. Poderia ter respondido, com a propósito: “não só aguenta com em boa verdade se está a cagar”. De facto, desde a minha já remota adolescência que não me preocupo se o nariz isto, ou os dentes aquilo ou o queixo assado. Neste campo das lindezas ou fealdades, valho-me de duas tiradas do Cristo nazareno: “eu sou aquele que sou” e “quem me ama que me siga”. E tem chegado.


Este frenesim à volta da gireza que patenteiam as minhas amigas que, por muito que lhes custe e não queiram, caminham a passos sorrateiros para serem senhoras de meia-idade, apesar de se julgarem gaiatas, conta-nos muito sobre a natureza feminina. Por isto, valerá a pena dissecarmos aqui o conceito subjacente de “tipo giro”, seus fundamentos e utilidade, não só isoladamente, como por oposição ao seu anti-simétrico entre os homens: “a gaja boa”.

Para intelectualizar a coisa, poderíamos começar pelo plano filosófico, que fica sempre bem num blogue que se dê ao respeito. O tipo giro, tal como suspirado pelo mulherame, vem direitinho que nem um míssil da teoria das ideias de Platão: é um ideal, um limite assimptótico, uma representação imaculada da perfeição masculina, de quem nós, vulgos morcões, somos meras sombras projectadas como na alegoria da caverna. Esta concepção tem um carácter qualitativo: o tipo giro está num patamar superior ao comum dos mortais, estes só toleráveis como segunda escolha, à falta de melhor. Por isso, as garotas, na mais tenra idade, sonham-se belas adormecidas à espera do príncipe encantado, a versão “irmãos Grimm” do tipo giro. E depois, em idades menos tenras, imaginam-se no troloró com os Pitts e Clooneys deste mundo. E suspiram…

Já a gaja boa é um universal, um conceito com uma abrangência larga mas muita precisa, e que não tem qualquer valoração positiva. A gaja boa não está no topo de nenhuma escala, antes pelo contrário. Na verdade, os homens abordam as mulheres de uma forma muito mais utilitária, na linha da escola de pensamento anglo-saxónica do século XVIII, onde o que interessa são os resultados e a maximização da felicidade. Consequentemente, a gaja boa corre até o risco de ficar sozinha, como se demonstra na teoria dos jogos: num grupo, os rapazes, julgando que a gaja boa poderá ter muitos pretendentes exactamente por ser boa, atacarão antes alvos secundários, tidos por menos difíceis. Se todos pensarem igual, deixarão a boa a chuchar no dedo.

Tal como o universal “brancura” admite múltiplas materializações (a cor creme do leite, a alvura do papel almaço, o reflexo azulado da neve, o rosa pálido de uma pele clara, o multicromatismo de uma medina à torreira do sol), também o universal “gaja boa” se aplica a muitos tipos diferentes de mulher – mas desde que sejam boas. Esta latitude conceptual causa-lhes a elas dificuldades de entendimento, já que “tipo giro” é uma noção muito mais estreita. Recordo-me, por exemplo, do seguinte diálogo em que a namorada de um colega, algo picada por este se ter referido a uma fulana como sendo boa, se amofinava:

- Mas boa como? Que queres dizer com isso? É alta, é magra?
- Nem alta, nem magra: é boa.
- Sim, mas é gorda, é magra?
- Nem gorda, nem magra, é boa.
- Não estou a perceber.

E ele, virando-se para outro colega:

- Ó Zé, tu percebes?
- Eu percebo: é boa.

A gente percebe.

No tipo giro, o conteúdo aspiracional é tão forte que funciona como requalificador. Nas conversetas sussurradas, afirmarão, peremptórias: “mas é giro”, o que atenuará outros defeitos que possa ter (ser bronco, larilas, violento, não lhes ligar peva, etc.) e o elevará a potencial bom partido. E suspirarão… Já a gaja boa tem o seu quê de pejorativo. Ao conceito de gaja boa associa-se alguma vacuidade, senão mesmo estupidez. Dirão eles, com frequência, “não passa de uma gaja boa”, como quem diz “coitadinha, dali não sai nada”. Por isto, poderemos encontrar uma rapariga que afirme com orgulho, às amigas, que o namorado é um tipo giro, mas a inversa já não é verdadeira. Do outro lado da pista, a desconhecida poderá ser uma gaja boa, mas assim que haja algo firme falaremos dela aos nossos amigos como sendo uma miúda fixe ou uma mulher muito interessante, consoante a idade que tenhamos. Em conversas masculinas, o tema da gaja boa prestar-se-á às mesmas chacotas que os falhanços do Nuno Gomes à boca da baliza ou as bacoquices de certos políticos. E nenhum gajo que não seja um básico andará por aí suspirar por gajas boas.

Em suma, e entrando numa alegoria gastronómica, elas comparam o tipo giro ao néctar e à ambrósia dos deuses do Olimpo, alimentos mitológicos, enquanto, para eles, a gaja boa funciona como o prosaico tremoço dos pires das cervejarias: uma delícia na ocasião certa, mas cuja ausência não impede que se beba uma bojeca e se fale de futebol.


Contrariamente ao que seria de esperar e ao que a sabedoria convencional enuncia, esta diferença de comportamentos amplifica-se com a idade. Na adolescência, ainda os rapazes tem umas urgências secretas pela boazona do colégio, mas isso passa-lhes com o início da vida sexual. As mulheres, mesmo já feitas, vão suspirando pela vida fora. O mito de que os homens pensam com a cabeça da gaita será genericamente falso e só não se aplica com mais propriedade às senhoras por manifesta incompatibilidade anatómica.

No inverno anterior, fui a Nova Iorque em trabalho com um grupo de meia dúzia de pessoas. Ao final da tarde, passeámos na quinta avenida após uma reunião de várias horas. Diante da Abercrombie and Fitch, uma loja de roupa da moda, dois tipos giros descalços e de tronco nu, apenas de “jeans”, a melena sobre a testa e os pelos das axilas rapados, convidavam a entrar e disponibilizavam-se para uma fotografia com as clientes. Para nossa surpresa, a única senhora do grupo, uma recatada e muita casada economista, sempre de discretos “tailleurs” cinza, esvoaçou para o meio dos rapazes, saltitante e risonha, pedindo que se lhe tirássemos um retrato. Só se perturbou quando o fotografante, advogado de profissão e por isso useiro em frases assassinas, lhe perguntou, ainda de telemóvel em punho: “mando para quem, para o teu marido?”

Não imagino nenhum dos homens deste mesmo grupo a perder a compostura se, mais à frente, outra loja ostentasse duas boazudas em “topless” para atrair a clientela. Ainda se fosse por uma traulitada, talvez alguém pesasse prós e contras. Mas por uma fotografia…


Este “post” não vai ter um final feliz, já que este suspirar exacerbado pelo tipo giro, ao continuar pela vida fora, acaba por levar a uma ironia dramática. Porque tipos giros, como objectos ideais que são, não abundam, sobretudo em quantidades que cheguem para todas. E por isso, lá para os vinte-e-muitos-trintas, perante a pressão do apelo uterino, começam elas a encaixar-se a torto e a direito com o primeiro que lhes aparece pela frente. Umas consolam-se, fazendo um “upgrade” mental do companheiro à categoria de tipo giro, apesar das limitações evidentes desta tentativa de colocar o Rossio na rua da Betesga. Sempre que se fala no coitado, empertigam-se e defendem com fervor a gireza teórica do comparsa, ante o sorriso embaraçado e discreto das amigas.

Outras resignam-se e é vê-las, sussurrando e suspirando nos jantares pelos Pitts e pelos Nespressos, dependuradas do braço de carecas e narigudos, gordos e vidrinhos, enrugados e barrigudos, enfim, tipos vulgares de Lineu.

Deus não dorme, não haja dúvida.