domingo, maio 25, 2008

My old man

O meu pai faleceu hoje, com setenta anos e dois dias. Tenho a ferida demasiado aberta e a alma demasiado desertada para falar sobre este homem, sobre o pai exemplar, o marido extremoso, o grande português que ele é. Mas esta é uma história que eu quero contar, mais tarde.

Entretanto, recordo que quando ele fez sessenta e quatro lhe escrevi uma carta. O que estava nessa carta fica entre mim e ele. Mas, em anexo, levava esta letra de uma canção do Ian Dury, que é o poema que eu, enquanto filho, gostava de ter escrito ao meu “velho”:

My old man wore three piece whistles
He was never home for long
Drove a bus for London Transport
He knew where he belonged
Number 18 down to Euston
Double decker move along
Double decker move along
My old man

Later on he drove a Roller
Chauffeuring for foreign men
Dropped his aitches on occasion
Said, "Cor blimey!" now and then
Did the crossword in the Standard
At the airport in the rain
At the airport in the rain
My old man

Wouldn't ever let his governers
Call him 'Billy', he was proud
Personal reasons make a difference
His last boss was allowed
Perhaps he had to keep his distance
Made a racket when he rowed
Made a racket when he rowed
My old man
My old man

My old man was fairly handsome
He smoked too many cigs
Lived in one room in Victoria
He was tidy in his digs
Had to have an operation
When his ulcer got too big
When his ulcer got too big
My old man
My old man

Seven years went out the window
We met as one to one
Died before we'd done much talking
A friendship had begun
All the while we thought about each other
All the best, mate, from your son
All the best, mate, from your son
My old man
My old man

sábado, maio 24, 2008

A fumarada

Li, reli e não cri. Depois vi na têvê, confirmei e pasmei. O nosso socrático primeiro pôs de lado o ar de proa e veio todo contrito, que nem um Egas Moniz atabacado, para diante de um pelotão de periodistas, pedir desculpas ao país por ter fumado um cigarro no voo “charter” que o levava em visita de Estado à Venezuela. Um cigarro! Ainda se tivesse sido apanhado a sorver uma chinesa de pó, eu compreendia a atrapalhação. Mas deve ter sido para aí um mero SG filtro…

E para piorar a coisa, numa figurinha digna de menino de escola primária apanhado em flagrante, adiantou à turba jornaleira que não tinha sido só ele (delatou que estava lá outro ministro a dar umas passas), que não sabia que era proibido (assinou a lei que proíbe) e que, assim sendo, ia deixar de fumar!

Deixar de fumar? Ó senhor primeiro-ministro! Que exagero! Não havia necessidade... O Clinton, para conseguir safar o pêlo e a presidência, só teve que pedir desculpa à “moral majority” americana pelo oral deslize com a estagiária reboluda. Não precisou de jurar voto de castidade doravante e até ao fim dos seus dias.


Este é um daqueles episódios que ao princípio se estranha, mas depois se entranha. Porque, pensando bem, diz muito sobre os tempos que correm.

Começa pelo detalhe delicioso do escândalo ser despoletado pelos mesmíssimos jornalistas que seguiam no avião, a convite do governo, para reportar os seus sucessos diplomáticos. Estou a imaginá-los, nos lugares traseiros da aeronave, a cochichar de uns para os outros, enquanto puxavam eles próprios umas baforadas nos seus cigarros: “Olha o gajo a fumar! O gajo não conhece a lei? Ganda bronca!”. E vai daí, toca de bufar para as redacções, para transformar um pequeno vício privado numa barracada pública. Não lhes ocorre que o assunto não só é totalmente irrelevante e distrai dos reais problemas do país, como, ainda por cima, constitui um suíno abuso de confiança para com quem os convidou. Para aliviar as consciências, hão de colocar em itálico no fim dos artigos “o jornalista viajou a convite do governo”. Por mim, à próxima, compram bilhete na TAP ou atravessam o Atlântico a nado. Mas da nossa triste classe jornalística, que é daqueles cães que só rosnam enquanto não lhe servem a malga, pouco mais temos que esperar.

Claro que a florescente oposição deste país, de pêpêdêspêessedês e quejandos, aproveitou esta mísera deixa para se fazer notar, pedindo multas para os governantes fumadores e outras sugestões importantes do mesmo quilate. Para esses, este parágrafo já tem mais linhas do que merecem.

Passando agora ao que importa. O que eu não consigo conceber é que o primeiro-ministro do meu país se rebaixe a fazer um número humilhante destes por causa de umas passas num avião, enxovalhando nesse “hara-kiri” moralista a próprio Nação que representa.

É verdade que vivemos tempos idiotas em que se construiu na opinião pública a ideia errónea que quem nos governa tem que ser virginal, branquinho e asséptico que nem um supositório de glicerina. Esta noção é cretina e é perigosa.

Cretina, porque a moralidade pessoal não é condição necessária – nem suficiente – para a eficácia governativa. Porque a moral privada e a moral pública operaram em planos diferentes, com diferentes exigências. Por mim, não me interessa se um político dá umas facadas no casamento, se tem duas multas por excesso de velocidade ou se fumou um havano em sítio sem exaustão de ar independente. Preocupa-me que tenha ideias, que faça frente aos lóbis que tentam (e hoje conseguem) gerir o país por interposta pessoa, que conheça as suas obrigações e os seus limites e que não game.

Perigosa, porque permite que excelentes governantes sejam convenientemente queimados na fogueira mediática alimentada por interesses económicos e políticos, por razões que no fundo são do seu foro íntimo. Porque cria uma sociedade de “voyeurs” e de chibos.

Noutros tempos, o povo esperava dos monarcas que tivessem força de carácter para governar justamente e força de braço para manter a paz ou ganhar a guerra. A sua moral privada relevava pouco para a apreciação que deles faziam os governados. Na realidade, estes estavam-se nas tintas para se os reis tinham amantes ou usavam de crueldade na sua gestão política. O que a malta queria era “realpolitik” que a mantivesse ao abrigo de chatices, e o resto era conversa. Muitos dos antepassados que nos são apontados na primária como pátrio exemplo estavam muito longe de ser exemplos de fino comportamento pessoal.

Consta que Afonso Henriques se hospedou certa vez no castelo de um nobre seu vassalo que, honrado pela visita, foi caçar para o jantar do seu convidado. Em má hora foi, porque o nosso fundador, aproveitando a ausência, logo lhe doneou a mulher, como à época se dizia. Regressado da caça, o novel corno ainda ousou esboçar um protesto, mas o rei imediatamente o ameaçou, lembrando-lhe uma história antiga: “Cuidado! Por menos do que isso o meu avô mandou cegar sete condes.” E só não o mandou comprar um maço de Português Suave porque na altura não se vendia nos quiosques.

Afonso Henriques não abusava só da confiança de maridos desprevenidos. Comportava-se de igual modo com os outros monarcas da península (na prática, seus familiares próximos), assinando e rasgando tratados conforme lhe dava jeito, atacando à traição, o que acontecia muitas vezes. Mas foi este homem de baixa confiabilidade que criou Portugal, multiplicando por três a sua área e legitimando a independência pelo reconhecimento papal, sabiamente pedido com boa argumentação e conseguido com melhor dinheiro.

Outro exemplo flagrante é o de D. Pedro, o cruel e justiceiro, de quem Fernão Lopes conta que “diziam as gentes que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes em que reinara el-rei D. Pedro.” O comportamento pessoal que Pedro sempre exibiu seria qualificado, nos dias de hoje, de total passanço dos carretos. O homem foi um dissoluto sexual e um sádico, que exercia uma justiça draconiana, frequentemente pelas próprias mãos, muitas vezes por mero capricho.

Pedro tinha um escudeiro chamado Afonso Madeira que, não sendo de pau, se afeiçoou e chegou a vias de facto com uma Catarina Tosse, mulher de “graciosas prendas” que andava lá pela corte. Ora o rei, a Afonso Madeira, “pelas suas qualidades amava-o muito e fazia-lhe generosas mercês”. Quando soube do ocorrido, D. Pedro, invocando o facto de a senhora ser casada mas na realidade por ciúme, decidiu tratar da tosse ao escudeiro. Fernão Lopes relata o que aconteceu com grande fineza de humor:

“E como quer que o rei muito amasse o escudeiro (mais do que se deve aqui dizer), posta de parte toda a bemquerença, mandou-o tomar na sua câmara e cortar-lhe aqueles membros que os homens em maior apreço têm. Afonso Madeira foi pensado e curou-se, mas engrossou nas pernas e no corpo e viveu alguns anos com o rosto engelhado e sem barba.”

Apesar de ser ele como era, o povo gostava de D. Pedro. O reinado foi pacífico, a sua justiça, embora bruta, praticava-a sem olhar a classes sociais (o que, na prática, pouco ocorre hoje) e o amor romântico com Inês de Castro ajudou a construir a lenda.

Não resisto a um último episódio. Na sua vida diária, um cavalheiro nunca falta a o respeito a uma senhora. Na política, pode não ser assim. Quando morreu com uma queda de cavalo o único filho legítimo de João II, este apressou-se a tentar legitimar um dos seus bastardos, casando-o com uma princesa de sangue. Para tal, mandou à corte dos Reis Católicos um embaixador, Lourenço da Cunha, para pedir a mão da filha mais nova destes, D. Catarina. A rainha, Isabel de Castela, tratou o nosso embaixador por cima da burra, propondo antes uma filha bastarda do marido. O nosso Lourenço deu-lhe uma resposta à altura: “senhora, el-rei meu senhor não pretende tanto aparentar-se com el-rei D. Fernando como com vossa alteza; por isso, se vossa alteza tem outra filha bastarda, ele a tomará para seu filho.”

Dito de outro modo: chamou puta à rainha de Espanha, em público e em plena corte. Não conseguiu o casamento pretendido, mas D. João II ficou tão satisfeito com a tirada que o premiou com terras em Beja, Serpa e Moura, que rendiam quatro contos. Tipo “spot bonus”.


Claro que esses exemplos têm que ser vistos no contexto das épocas respectivas. Mas ilustram situações em que os ocupantes de cargos públicos tinham os defeitos que tinham, enquanto indivíduos e eram julgados pelos efeitos práticos do que faziam e não pela relativa proximidade a uma imagem ideal de santidade. Obviamente muita coisa mudou e ainda bem. É evidente que constitui um avanço civilizacional que se tenha tornado completamente inaceitável que Sócrates se pudesse manter no poder se mandasse capar um secretário de Estado. Mas, ao revés, não constitui grande progresso que um governo eleito tenha receio de cair pela pressão da rua só porque o seu líder fumou um cigarro ou deu a um charuto uma utilização indevida.

Já estou a ouvir os puristas: ele incumpriu a legislação! Deu uma bicadita numa lei? Se formos por aí, temos todos muito por onde nos preocupar antes da baforada do Sr. Sócrates. Num Estado que não cumpre prazos, não cumpre leis, não paga o que deve mas cobra indevidamente e não devolve, mantém centenas de milhar de trabalhadores precários por falta de coragem para afrontar outras centenas de milhar que não fazem nenhum e “et caetera”, as passas do primeiro-ministro são irrelevantes.

Não sei se são efeitos das sucessivas restrições impostas por Bruxelas à quota do tomate, mas sinto hoje a desagradável impressão de que faltam governantes com um mínimo de coragem, que se foquem no essencial, não se envergonhem de quem são e não vivam escondidos atrás dos consultores de imagem, aterrorizados com o impacto de qualquer pecadilho nas setas para cima e para baixo da contra-capa dos jornais.

Conta-se que quando se tornou público que o presidente Mitterrand tinha uma filha ilegítima e um jornalista o tentou entalar com o assunto, aquele respondeu calmamente “Et alors?” Não sei se esta história ocorreu na realidade, mas, se sim, é exemplar.

O que não é exemplar é o comportamento de um primeiro-ministro, afrontando as câmaras com carinha de arenque fumado, para entaramelar banalidades e desculpas que nos envergonham enquanto portugueses, à volta de umas passas em tabaco. Se ele chamasse as câmaras e se propusesse pedir perdão ao país pela inexistência de um sistema de aplicação de justiça, pela inumanidade do serviço nacional de saúde ou pela pobreza franciscana do nosso ensino, eu compreenderia. Até talvez lhe desse um desconto e uma nova oportunidade …

Mas do modo que foi, só me apetece dizer como o memorável almirante Pinheiro de Azevedo: é só fumaça!