sábado, janeiro 19, 2013

Três instantâneos



A primeira foto é em papel acetinado. Estamos os dois de bibe, minúsculos, os sorrisos que nem esgares virados para a objectiva, a mesa da sala do jardim infantil coberta de papéis rabiscados por cores de feltro que o preto e branco não nos diz quais são.

A segunda foto revelei-a eu no estúdio improvisado que tinhas montado numa casa de banho em tua casa, naquele papel baratucho da Orwo, importado da RDA, que íamos comprar numa lojita junto ao cemitério dos Prazeres. O tempo esbateu o contraste, mas lá estou eu a fazer o pino no jardim de casa dos meus pais na outra banda, todo vestido de negro com os meus adidas apontados ao céu, e tu a rires-te a segurares-me as pernas para eu não cair – sempre fui fraco de pinos – falando com um segundo plano de gozões que desfaziam provavelmente na minha falta de jeito.

A terceira foto ninguém a tirou, e é pena, mas está na minha memória como qualquer fotografia moderna está numa memória qualquer e por isso é para todos os efeitos uma fotografia. Foi  naquele abraço recente com que me recebeste à porta depois de quatro anos e tal sem nos vermos, um abraço sorrido e fraterno como muito do tempo que passou entre a primeira e a terceira.



Na altura da primeira foto, as coisas eram simples. Deixávamos a nossa imaginação garatujar as folhas que nos metiam diante. Íamos em fila de mão dada para as mesinhas da cantina. Protestávamos contra a sopa. Dormíamos a sesta quando nos diziam. Éramos amigos porque todas as crianças de quatro anos são por definição amigas.

Pelos anos da segunda foto, as coisas continuavam simples, só que com uma ilusão de esplendor na relva, de glória na flor.  Absorvíamos o saber com o gozo de uma corrida, jogávamos cada voleibolada como se fosse uma final olímpica, vivíamos cada mulher como se fosse a primeira ou a última ou a única (na realidade, mais raparigas que mulheres e em menor número do que gostaríamos), cada ida à praia como um caminho marítimo para a Índia, bebíamos cada noite como se não fosse haver aurora, discutíamos violentamente qual a melhor banda como se isso interessasse. Preparavamo-nos para os grandes feitos que estávamos convictos virem aí. Éramos amigos porque nos sentáramos casualmente lado-a-lado no autocarro da vida, na melhor parte do seu percurso.

Depois fomo-nos só aparentemente separando. Tu procuravas algo que eu talvez tenha encontrado longe de onde tu o procuravas. Eu dei-me por satisfeito, tu continuaste inquirindo. E um dia a tua demanda arrastou-te para longe e eu achei natural e desejei-te boa sorte. Durante quatro anos, quase cinco, deixaste de ter cara. Eras uma notícia, um rumor: parece que volta no final do mês, ou do ano.

E de repente regressaste. E à porta de casa da tua mãe tirámos a terceira foto e eu entendi que afinal nunca nos havíamos separado, que afinal não tinhas ido para longe, mesmo tendo ido para uns quilómetros valentes de distância no mapa, que não relevava o que procurávamos agora mas o que encontráramos antes.

Pelos anos da terceira foto, as coisas tornaram-se simples: éramos amigos, sem mais.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Estou a considerar seriamente bazar durante uns anos para também ter direito a um post destes... ;)