sábado, janeiro 05, 2013

Revelações de ano novo



No estertor do ano, muito provavelmente por acaso mas seria maravilhoso que assim não fosse, encontrei no “Youtube” excertos de uma entrevista radiofónica a Ian Dury em que ele fala sobre as suas principais músicas. Uma das que explica é “My old man”, que Dury tinha escrito para o seu falecido pai e cuja letra aqui deixei no dia da morte do meu pai, em vinte e cinco de Maio de dois mil e oito.

Essa música continua a tocar entre nós, entre eu e ele, passados estes anos. Sempre que me apetece chamar o meu pai, basta-me repetir mentalmente as palavras que Dury deixou gravadas no concerto do London Town and Country Club em 1990, com aquela pronúncia “cockney”:

- Play the “baiss”, Norman, play the “baiss”!

E logo na minha cabeça Norman Watt-Roy, os olhos esgalhados de anfetamina, os dedos de ferro em luva de veludo a arrebentar com as cordas do baixo, arranca com as notas que alcatifam o caminho para a entrada da voz falada, quase melosa, de Ian Dury e também de difusas e felizes memórias do “meu velho” e de mim.

Na entrevista recebi duas prendinhas da quadra.

Uma foi a lembrança, sempre útil nestes tempos em que a arrogância mundana arroga que tudo se pode pôr em causa, de que por respeito tudo tem um limite. Dury, o iconoclasta por excelência, que sem piedade gozava o prato em todas as músicas, que escrevia sobre sexo com todos  os efes e erres, especialmente os primeiros, sobre discriminação racial com os insultos que os racistas usam, para que se percebesse bem do que se estava a falar, sobre a sua deficiência física e as dos outros com um desbragamento que ofendeu os politicamente correctos censores da BBC, Dury, dizia, conta que teve um cuidado particular na escrita desse poema sobre seu pai para não melindrar a sua mãe. Há de facto um momento em que se para. Tomara tantos perceberem isso.

A segunda, todavia melhor, embrulhada em papel ainda mais vistoso, foi quando Dury explica que ao princípio, quanto cantava esta música em público, vinham-lhe as lágrimas aos olhos, mas que tal depois  deixou de acontecer:

- “Agora já não é uma tragédia. Passou a ser parte de mim” – conclui, fechando a entrevista.

Ao ouvir isto, constatei que comigo se passara um pouco a mesma coisa. O drama ficou lá longe, preso a uma data concreta, a um farrapo de tempo. E ele soltou-se e instalou-se de um modo recôndito em mim, e por cá anda. Óptimo que assim seja.


Sem comentários: