No estertor do ano, muito provavelmente por acaso mas seria
maravilhoso que assim não fosse, encontrei no “Youtube” excertos de uma
entrevista radiofónica a Ian Dury em que ele fala sobre as suas principais
músicas. Uma das que explica é “My old man”, que Dury tinha escrito para o seu
falecido pai e cuja letra aqui deixei no dia da morte do meu pai, em vinte e
cinco de Maio de dois mil e oito.
Essa música continua a tocar entre nós, entre eu e ele, passados
estes anos. Sempre que me apetece chamar o meu pai, basta-me repetir mentalmente
as palavras que Dury deixou gravadas no concerto do London Town and Country
Club em 1990, com aquela pronúncia “cockney”:
- Play the “baiss”,
Norman, play the “baiss”!
E logo na minha cabeça Norman Watt-Roy, os olhos esgalhados
de anfetamina, os dedos de ferro em luva de veludo a arrebentar com as cordas
do baixo, arranca com as notas que alcatifam o caminho para a entrada da voz
falada, quase melosa, de Ian Dury e também de difusas e felizes memórias do “meu
velho” e de mim.
Na entrevista recebi duas prendinhas da quadra.
Uma foi a lembrança, sempre útil nestes tempos em que a
arrogância mundana arroga que tudo se pode pôr em causa, de que por respeito tudo
tem um limite. Dury, o iconoclasta por excelência, que sem piedade gozava o
prato em todas as músicas, que escrevia sobre sexo com todos os efes e erres, especialmente os primeiros,
sobre discriminação racial com os insultos que os racistas usam, para que se
percebesse bem do que se estava a falar, sobre a sua deficiência física e as
dos outros com um desbragamento que ofendeu os politicamente correctos censores
da BBC, Dury, dizia, conta que teve um cuidado particular na escrita desse
poema sobre seu pai para não melindrar a sua mãe. Há de facto um momento em que
se para. Tomara tantos perceberem isso.
A segunda, todavia melhor, embrulhada em papel ainda mais
vistoso, foi quando Dury explica que ao princípio, quanto cantava esta música
em público, vinham-lhe as lágrimas aos olhos, mas que tal depois deixou de acontecer:
- “Agora já não é uma tragédia. Passou a ser parte de mim” –
conclui, fechando a entrevista.
Ao ouvir isto, constatei que comigo se passara um pouco a
mesma coisa. O drama ficou lá longe, preso a uma data concreta, a um farrapo de
tempo. E ele soltou-se e instalou-se de um modo recôndito em mim, e por cá
anda. Óptimo que assim seja.
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