A primeira foto é em papel acetinado. Estamos os dois de
bibe, minúsculos, os sorrisos que nem esgares virados para a objectiva, a mesa
da sala do jardim infantil coberta de papéis rabiscados por cores de feltro que
o preto e branco não nos diz quais são.
A segunda foto revelei-a eu no estúdio improvisado que
tinhas montado numa casa de banho em tua casa, naquele papel baratucho da Orwo,
importado da RDA, que íamos comprar numa lojita junto ao cemitério dos
Prazeres. O tempo esbateu o contraste, mas lá estou eu a fazer o pino no jardim
de casa dos meus pais na outra banda, todo vestido de negro com os meus adidas
apontados ao céu, e tu a rires-te a segurares-me as pernas para eu não cair –
sempre fui fraco de pinos – falando com um segundo plano de gozões que desfaziam
provavelmente na minha falta de jeito.
A terceira foto ninguém a tirou, e é pena, mas está na minha
memória como qualquer fotografia moderna está numa memória qualquer e por isso é
para todos os efeitos uma fotografia. Foi naquele abraço recente com que me recebeste à
porta depois de quatro anos e tal sem nos vermos, um abraço sorrido e fraterno
como muito do tempo que passou entre a primeira e a terceira.
Na altura da primeira foto, as coisas eram simples. Deixávamos a nossa imaginação garatujar as folhas que nos metiam diante. Íamos em fila de mão dada para as mesinhas da cantina. Protestávamos contra a
sopa. Dormíamos a sesta quando nos diziam. Éramos amigos porque todas as
crianças de quatro anos são por definição amigas.
Pelos anos da segunda foto, as coisas continuavam simples,
só que com uma ilusão de esplendor na relva, de glória na flor. Absorvíamos o saber com o gozo de uma corrida,
jogávamos cada voleibolada como se fosse uma final olímpica, vivíamos cada
mulher como se fosse a primeira ou a última ou a única (na realidade, mais raparigas
que mulheres e em menor número do que gostaríamos), cada ida à praia como um
caminho marítimo para a Índia, bebíamos cada noite como se não fosse haver
aurora, discutíamos violentamente qual a melhor banda como se isso interessasse.
Preparavamo-nos para os grandes feitos que estávamos convictos virem aí. Éramos
amigos porque nos sentáramos casualmente lado-a-lado no autocarro da vida, na
melhor parte do seu percurso.
Depois fomo-nos só aparentemente separando. Tu procuravas
algo que eu talvez tenha encontrado longe de onde tu o procuravas. Eu dei-me
por satisfeito, tu continuaste inquirindo. E um dia a tua demanda arrastou-te
para longe e eu achei natural e desejei-te boa sorte. Durante quatro anos,
quase cinco, deixaste de ter cara. Eras uma notícia, um rumor: parece que volta
no final do mês, ou do ano.
E de repente regressaste. E à porta de casa da tua mãe
tirámos a terceira foto e eu entendi que afinal nunca nos havíamos separado,
que afinal não tinhas ido para longe, mesmo tendo ido para uns quilómetros
valentes de distância no mapa, que não relevava o que procurávamos agora mas o
que encontráramos antes.
Pelos anos da terceira foto, as coisas tornaram-se simples: éramos amigos, sem mais.
1 comentário:
Estou a considerar seriamente bazar durante uns anos para também ter direito a um post destes... ;)
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