Quando tinha quinze anos, pedi à minha madrinha que me
trouxesse, de uma viagem ao estrangeiro que ela ia encetar, um disco que ainda
não havia em Portugal: “Q: Are we not men? A: We are Devo?”, dos então ainda
muito obscuros Devo. Quando regressou, para minha surpresa, disse-me:
- Olha, estive com ele na mão mas olhei para a capa e achei
que não era coisa que se oferecesse a um rapaz de quinze anos.
Apreciei a franqueza – podia simplesmente ter inventado que
não o encontrara – mas desapontou-me o que na altura me pareceu conservadorismo retrógrado. O disco ostentava
na capa fotografias desfocadas de caras deformadas por meias de vidro e de um
cientista desgrenhado de óculos de mergulho e luvas de cozinha. Para mim tal
era meramente “muita louco” e nessas idades tende-se a achar que a loucura
aloucada tem algo de contestatário ou disruptivo. Nada que merecesse portanto –
pensava eu – tamanha acto censório.
Mas o que me parecia pura paródia era afinal assunto sério.
Os Devo foram (e vão sendo, só que de cãs nas fontes) uma banda que construiu a
sua carreira à volta do conceito de “de-evolução”, que surge nas letras, nas
capas dos albuns, na coreografia dos espectáculos. “De-evolucão” porque a
humanidade tinha parado de evoluir e tinha começado a regredir, a “desevoluir”,
tendência que os membros do grupo percepcionavam no espírito de manada e nas
disfuncionalidades da sociedade americana.
Esta visão cínica e pessimista da humanidade, travestida de gozo, fora
amplificada pela perda de inocência resultante do massacre da universidade de
Kent State, perpetrado pela polícia e em que morreram quatro estudantes,
baleados a uma distância prudente, não fossem as forças da ordem levar com uma
sebenta de Análise III na cabeça. Gerald Casale, um dos líderes da banda,
estava presente e viu morrer uma amiga. Nesse dia, contou, deixou de ser
“hippie” e talvez tenham nascido os Devo.
Acto contínuo, saíu em 1978 o tal “Q: Are we not men? A: We
are Devo?”, um rasgo na música “pop/rock” - ou não fosse produzido por Brian
Eno. Continha momentos grandiosos, como o “Gut feeling” ou a versão discoteca
do “(I can get no) Satisfaction”, e versos marados como “Something about the
way you taste/Makes me want to clear my throat”, mas ficou sobretudo conhecido
pela reprodução da banda sonora de um filmezito que ganhara um concurso de
curtas-metragens em 1976. O filme chamava-se “The truth about de-evolution” e
continha a canção “Jocko Homo”, sobre o homem anedótico em direcção ao qual a
humanidade de-evoluía. No refrão, o cantor perguntava:
- Are we not men?
E o coro alienado retorquia, dúbio:
- We are Devo!
Lembrei-me dos Devo e da sua folestria informada numa destas sextas à noite, durante um jantar de bacalhau com natas, bom tinto e mousse de chocolates After Eight no amplo sotão de solteirão ou, melhor, divorciadão do amigo J. Discutiu-se a crise ao café e eu, teorizando sobre as causas, concluí uma frase com “por isso evoluímos até aqui”. Tal inabilidade semântica mereceu logo um aparte certeiro, todo ele de uma síntese “Churchilliana”, por parte do amigo Z:
- Evoluímos?
De facto, não, Z, tens razão. De-evoluímos. Voltámos para
trás. Caímos de costas aos trambolhões. Regressámos acéfalos a mundos paleolíticos
de canibalismo, mocas na mão e urros para amedrontar o oponente. E mesmo nesses
remotos talvez encontrássemos por aí gente
mais evoluída, como aqui já contei.
É sobre essa de-evolução, essa involução, que gostaria de
falar nalguns dos “posts” que se irão seguir.
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