Vivo numa casa onde acontecem cenas milagrosas: a fruta
aparece-me já descascada no prato e de manhã o pão multiplica-se na cesta a
horas madrugadoras, qual Canã em Campolide. Alguns amigos dizem com meia-inveja
na voz que tais maravilhas se devem ao facto de ser casado com uma santa,
criticando-me com suma injustiça por ser um calão doméstico.
No fim-de-semana anterior o mais novo esteve doente, a santa esteve de guarida e tocou-me a mim ir ao pão, evento que tal como os jogos olímpicos
ocorre de quatro em quatro anos. Para não sobrecarregar as minhas meninges com
informação excessiva, as instruções recebidas foram sumárias:
- Trazes cinco bolinhas de água!
Saí à rua em demanda das esferas aquáticas. O destino era um
pequeno café que também vende pão. Aí, pedi o pedido, a empregada levantou o
pano que cobria a cesta e escolheu com a mão enluvada num plástico cinco
pãezinhos redondos dum tipo que tem estado na moda lá em casa, de crosta
maleável e massa ligeiramente escura. Entre as bolinhas, o meu olhar vislumbrou
um papo-seco solitário. De repente, veio-me à boca um sabor de infância, de
pequeno-almoço nas manhãs de praia ou lanche no regresso da escola, e memórias da
leveza do saco do pão opado e do aroma estaladiço que às vezes me assaltava as
narinas nas ruas das padarias. E foram essas memórias, mais do que eu próprio,
que pediram à senhora:
- Ponha-me também esse papo-seco.
- Esse quê? – respondeu ela, sem perceber.
- Esse papo-seco. Isto! – apontei.
- Ah! Uma maminha! – retorquiu, juntando o papo-seco aos
outros.
No mundo da minha infância, só me lembro em Lisboa de dois
tipos de pão: o papo-seco de hoje, que era branco e estaladiço, e o papo-seco
de ontem, mais enrugado e esponjoso. Toda a gente sabia o que era um papo-seco
e toda a gente sabia o que era uma carcaça, que era o mesmo que um papo-seco.
Depois, quando íamos à província, à terra como se dizia na altura, havia outros
pães, muitas vezes grandes, cortados à fatia ou arrancados em generosos nacos,
mas que só aí se podiam encontrar.
Conhecia bem essa realidade. Em Loulé, ao fundo de um baldio
dando para a Avenida José da Costa Mealha, a avenida principal onde desfilava o
carnaval com os gigantones de que eu tinha medo, os meus tios exploravam uma
padaria que hoje a ASAE fecharia na sua sanha desinfectante. Produziam uns pães
grandes, de massa densa e cor de pano-cru, de crosta castanha. O forno ardia
noite e dia alimentado por lenha de um monte que ocupava permanentemente o fundo do baldio, vários metros quadrados por
três de altura que pululavam de uma fauna inquietante de rataria e lagartixas.
Em frente ao forno, numa ampla sala revestida a azulejo branco, longas caixas
de madeira forradas de panos claros iam testemunhando o processo produtivo:
vazias ao fim de dia e durante a noite, quando se ouvia o zumbido eléctrico do
peneiro mecânico ou da máquina de amassar; pela alvorada cheias de bolas
brancas de massa crua, alinhadas como crânios numa parada, esperando que o meu
tio as distribuísse com perícia pela vasta boca do forno, esgrimindo uma pá de
madeira cujo cabo me parecia infinito; ou já pelo dia fora, carregadas com as
esferas tostadas dos pães de quilo ou quilo e meio, esperando a clientela feita
de velhotas de bata de casa ou homens de chapéu de feltro preto, que ao chegar gritavam
cheios de urgência pelos de casa até que alguém os atendesse, demorando-se depois
para vários dedos de conversa.
Por vezes a minha tia enchia até ao tecto com pães acabados
de cozer o seu velho Fiat 127 vermelho, cuja caixa de velocidades nunca passou
da terceira mudança – pelo menos assim o reza a lenda familiar. Ia vender pelas
feiras e terras algarvias e regressava tarde, de carro vazio e de bolso cheio.
Outras vezes eram forasteiros que assomavam à porta sempre aberta da casa do
forno, perguntando esperançados se havia pão ou se a fornada estava para breve,
que tinham ainda o regresso para fazer. Outras ainda apareciam vizinhas amparando
com dificuldade largos tabuleiros de cabrito ou bacalhau para uma ceia de
família, entregando-os ao meu tio que os carregava para dentro do forno, cujo
calor de um vermelho vivo também se alugava.
Do meu tio tenho uma memória exclusiva de um homem vestido
de branco, a cabeça coberta por um boné de pano branco, permanentemente
enfarinhado na roupa, nas mãos, nas pregas envelhecidas do queixo onde o
pontilhado preto da barba mal escanhoada se misturava com o branco do pó de
trigo. Mesmo quando tento lembrar-me dele fora dali, na imagem de uma festa de
família ou de uma das suas raras visitas a Lisboa, visualizo-o com
improbabilidade no seu traje branco de trabalho, com a sua touca branca e a brancura
da sua farinha espalhada por todo o lado, no cenário de um casamento ou da sala
de meus pais.
Aparentemente não tinha horas de sono, porque a qualquer
momento o encontraríamos nalgum recanto do seu pequeno mundo, abrindo uma saca
de farinha tirada do monte que por vezes chegava ao tecto e que eu galgava como
um alpinista, contente com a minha valentia, vigiando a consistência da mistura
que o garfo de ferro negro revolvia na cuba da máquina, facejando as bolas de
massa que depois dobrava com um movimento do cutelo da mão, dando-lhes a forma
final ou empoleirando-as às meias-dúzias na espátula que as levava ao fogo de
pinhas e ramagens. Por vezes aparecia junto da minha tia na casa térrea
contígua à padaria, de salas sucessivas de paredes de cal tosca e tectos de
cana onde ocasionalmente se passeavam uma ou outra osga pertencentes já à
mobília. Sentava-se, comia algo empurrado com um copo de vinho tinto, via uns
minutos de televisão e voltava para a sua vida. Era um homem de poucas
palavras. Recebia-me com um sorriso diáfano murmurando simplesmente o meu nome
oficial entre a família do Algarve: “Cárlínhos”. A frase mais longa que me
recordo de lhe ouvir foi quando me propus mandar uma pedrada num rato que
aparecera junto às sacas de pano da farinha, dita com grande meiguice na voz:
- Não se faz mal aos ratinhos que são a minha companha!
Para além do branco e da farinha, e do trabalho contínuo
aparentemente sem queixa e sem esforço, o que mais me lembro nele é desta gentileza despretensiosa. Tenho saudades dele. E, claro, tenho também saudades do pão que
as suas mãos de artesão, de operário, de artista – palavras quase sinónimas –
criavam dia após dia de uma vida, como tantos outros desde tempos já sem
memória. Saído do forno recendia, a crosta estalava, a massa tenra fumegava. O
sabor era ímpar e amadurecia com os dias, tornando-se mais ázimo e enraizado.
Ao fim de uma semana, os coutos sobrantes ainda permitiam as melhores torradas
do mundo.
Mais cedo ou mais tarde acabava o veraneio e acabavam os
devaneios e regressava a Lisboa onde não havia o pão do meu tio, mas
continuavam os papo-secos. Depois vieram outros tempos que são os de agora, em
que cada padaria oferece trinta variedades, cada supermercado outras trinta. Ao
ponto que há quem venda papo-secos sem saber como eles se chamam, como a
senhora do cafézinho da minha rua, que olhou para o papo-seco e viu uma maminha.
Sem saber que papo-seco quer dizer janota, e que aqueles pães se chamavam assim
por serem comida de gente fina, bem antes de se tornarem o pão de todos os da
minha geração.
1 comentário:
:-)
Parabéns, já me puseste com fome só com a descrição (e maior elogio não há)
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