“Quis custodiet ipsos
custodes?”
Juvenal
Em 1692, em Salem Village, hoje Danvers no estado do
Massachussetts, crianças com um comportamento bizarro são pressionadas por
adultos para denunciar quem as enfeitiçou. Acabam por delatar como bruxas
alguns nomes fáceis numa sociedade puritana e fechada: uma mendiga, uma velha
acamada, uma escrava negra. Rapidamente, a torpeza humana entra em acção e
várias dezenas de outras pessoas sofrem acusações de bruxaria e outras rebaldarias
com o demo. A essa proliferação terá ajudado certamente o facto de a única
maneira que os visados tinham para escapar à pena capital era confessarem e
denunciarem outros que como eles fossem culpados de más práticas. A histeria colectiva
durou um ano e deixou um rasto de dezenas de mortos, alguns sob baixa tortura
ou abandonados no cárcere. Para que nunca nos esqueçamos que pode sempre haver
pior quando a estupidez humana sai da jaula, registe-se que uma das acusadas
era uma criança de quatro anos.
O episódio das bruxas de Salem marcou a sociedade colonial
americana, pela ignorância e pela arbitrariedade dos processos judiciais.
Possivelmente os fundadores da nova nação americana tinham na memória esta
ocorrência oitenta anos mais tarde quando redigiram algumas das salvaguardas da
constituição. A literatura, o teatro e o cinema americanos continuam a recorrer
de vez em quando às bruxas de Salem para alertar para a eternidade de certos
perigos.
Felizmente, o Massachussetts de hoje é muito diferente do território
amedrontado de 1692. Um dos estados mais avançados da união, alberga algumas
das melhores universidades do mundo. Só pelo MIT passaram 78 prémios Nobel. A
ignorância sectária teve assim que procurar outros terrenos de caça. Neste ano
de graça de 2012, instalou-se confortavelmente em Itália: em Outubro passado,
seis cientistas e um funcionário italianos foram condenados a seis anos de
prisão cada por o comité de análise de riscos a que pertenciam não ter
conseguido prever o sismo que destruiu a cidade, três anos antes.
Qualquer um sabe, mesmo sem grande conhecimentos de
geofísica, que no actual estado do conhecimento sobre o fenómeno a ocorrência
dos terramotos não é previsível. Pela lógica se deduz que a ausência de
terramotos também não é previsível. Apesar disso, um juiz italiano
contemporâneo, formado em direito numa universidade onde provavelmente nalgum
departamento se ensinarão probabilidades e engenharia sísmica, um homem que
redigirá os seus laudos num computador e andará de telemóvel no bolso, decidiu
mandar para a prisão homens que se limitaram a emitir a sua melhor opinião sobre um fenómeno
que todos sabemos imprevisível e que - para azar deles e de outros - falharam
nesse julgamento. Condenou-os como se tivessem eles que assumir as culpas dos
mortos e dos destroços. Acontece que não foram eles que mataram e que destruíram. Foi o sismo.
Esta sentença conta-nos muito sobre como é vã a nossa
pretensão de modernidade ou de civilização. As certezas com que o juiz Marco
Billi de 2012 enviou sete homens para a prisão são as mesmas com que o juiz
William Stoughton de 1692 enviou dezenas para a forca. Ambas advêm da
convicção ignara de que existindo um mal, deve haver um culpado. E as duas satisfazem
turbas necessitadas de vingança, e receosas: em 1692, do desconhecido; em 2012,
do incerto.
Ora a incerteza viverá com a humanidade até ao fim dos seus
dias. A crença na infalibilidade da ciência tem tanto de fé como a crença noutra
infalibilidade qualquer, por exemplo a do papa. Resulta tão somente do
desconhecimento do que é a ciência, de como se formula e de como avança. Não só
o cientista, como o leigo que procura entender a ciência, sabem que ela é
conhecimento mas também limite do conhecimento. A existência desse limite implica
que a nossa própria existência seja arriscada: podemos morrer porque não sabemos prever um
sismo ou curar um cancro. Procurar um culpado para essas tragédias revela
apenas que continuamos a não entender a essência da nossa precariedade.
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