Não imagino praticamente ninguém que conheça, próximo ou
distante, a responder não à pergunta “é democrata?”. As pessoas acham-se
democratas tão obviamente como se acham honestas. A questão parecer-lhes-á tão
idiota quanto aquelas parvoíces que vêm nos formulários de imigração que se
preenchem à entrada dos Estados Unidos: Traz droga? É maluco? Participou em
perseguições aos judeus durante o Holocausto?
A resposta sim ao “é democrata?” parecerá evidente à quase
totalidade porque, neste cantinho do mundo onde vivemos há uma associação
intuitiva entre democracia e civilização e o pessoal gosta de se sentir
civilizado. Além disto, existem vantagens associadas ao regime democrático que estão
razoavelmente assimiladas entre a população: é bom poder falar e protestar com
liberdade e sem medo; é razoável eleger – e melhor ainda, deseleger –
periodicamente quem manda no burgo; aparentemente as democracias conseguem
criar mais riqueza e distribuí-la um pouco melhor do que as ditaduras.
A democracia tornou-se pois uma ideia aspiracional vogando no
subconsciente das pessoas, um conceito ideal embora algo nebuloso, associado à
perfeição da coisa pública, em si mesmo positivo como a saúde ou a bondade. Tal
hagiografia da democracia resultou num reflexo quase universal de criticar qualquer
acção que se reprove sublinhando o seu pretenso carácter anti-democrático. Se a
mesa da assembleia de condóminos, à uma da manhã, já cansada da bagunça
generalizada, quer que se siga a agenda pré-estabelecida, logo vem um vizinho
armado em tribuno com a acusação de não-democracia. Se um governante legitamamente
eleito tem que tomar uma decisão, passados dez meses de debate em que não houve
unanimidade entre auscultados, logo um deles clamará contra o autoritarismo e a
falta de democracia. O cúmulo desta pecha ocorre quando no discurso da pequena
política, ou no associativismo de bairro, ou mesmo na vida do dia-a-dia,
ouvimos referir que a argumentação que o outro lado emite é por si só um ataque
à democracia, como se a diferença de opinião pudesse ser intrinsecamente contra
a democracia e não um dos seus pilares. Ora isto só pode surgir de uma
deficiente compreensão da natureza essencial da democracia.
É verdade que democracia será um dos vocábulos mais vagos do
léxico político, e também dos mais abusados. Começa logo na origem ateniense,
no governo pelo “demos”: para Péricles o “demos” eram todos (todos menos
mulheres, estrangeiros e escravos, claro), enquanto para os seus rivais, por
exemplo Tucídides, o “demos” era a maralha, a turba anárquica. A mesma palavra,
sentidos diferentes, virtudes opostas. Continua a confusão nos nossos dias, em
que a Coreia do Norte, a Venezuela, os Estados Unidos ou a Noruega, todos se
consideram uma democracia, quando não “a” democracia, por excelência. Claro
está que Kim Jong-un, Nicolas Maduro, Donald Trump ou o rei Harald V não podem
estar a falar do mesmo regime quando o conceito “democracia” lhes aparece por
baixo das meninges. E não deixa de ser curioso que seja provavelmente um rei,
um resquício do nada democrático direito de sangue, o que esteja mais próximo
da razão.
É também verdade que com o fim da Guerra Fria se assistiu a
uma maior proliferação mundial de processos formalmente democráticos, com
eleições e parlamentos, oposição autorizada e imprensa mais ou menos independente.
Muitos se deleitaram então a escrever e a ler sobre o fim da História,
constituído por um mundo sem espinhas de regimes de liberdades e garantias, de
democracia representativa e liberal, com economia capitalista a bombar potenciada
por um comércio sem barreiras a nível planetário. Ora como sabemos da nossa
experiência ao volante, o fim dos caminhos normalmente tem um muro à frente que
obriga a ir para trás. Foi o que aconteceu: em muitos dos nóveis regimes
democráticos, as eleições nem sempre foram verdadeiramente livres, os
parlamentos muitas vezes não representaram o eleitorado, opositores mais
coriáceos acabaram presos e jornalistas mais abelhudos apareceram mortos.
Putin, Maduro, Erdogan e Trump foram eleitos mais ou menos democraticamente,
como já antes Hitler o tinha sido. Afinal, o trágico não desapareceu das vidas
dos povos e a História continua um rio revolto e não se tornou a plácida e
espraiada foz que alguns julgavam.
Pior: se em muitos regimes democráticos jovens o progresso
foi frágil e mais aparente do que real, em muitas democracias mais
estabelecidas verificou-se um retrocesso grave, umas vezes espectacular, outras
subterrâneo e por isso mais perigoso. No primeiro caso podemos incluir o
crescimento da FN, do UKIP, do Vlaams Block, do Podemos e do Vox ou da AfD, a
chegada ao poder da extrema-direita na Áustria – e aqui deixo de parte a
Hungria e a Polónia, exemplos piores mas que dificilmente cabem no perímetro
das democracias mais estabelecidas, a sucessão de Berlusconi e depois Beppe
Grillo e depois Salvini em Itália, terminando obviamente com Trump e agora
Bolsonaro, os exemplos mais caricaturais e talvez por isso mais acabados desta
marcha-atrás. No segundo, a perda de autoridade moral do Ocidente no plano
internacional, a degradação da capacidade crítica do jornalismo, a corrosão do
respeito pela verdade e pela ciência suportada nas recentes praças do
pelourinho digitais, a nova censura do politicamente correcto, a inversão do
ónus da prova diante de formas variantes de totalitarismo, como certos
ambientalismos e feminismos hoje prevalecentes, a generalização da anomia e a
descrença nas instituições típicas das democracias parlamentares, tudo azares que
levam a que sucessivas linhas vermelhas que no passado nos protegeram da
tentação totalitária sejam agora pisadas, quando não espezinhadas, nos sítios e
pelas pessoas “a priori” mais insuspeitos.
Quem tem culpa neste estado de coisas? Certamente as instituições e os políticos, os
juízes, os magistrados, os patrões de indústria e os jornalistas que as
constituem. Mas muito mais do que eles todos nós em geral, que do voto ao
“post” à conversa de café enviamos a essas pessoas sinais sobre o que pensamos,
o que queremos, com que prioridades e quais os valores que temos por
importantes. Nestes valores, tristemente, raramente encontramos os que são
básicos para uma verdadeira Democracia.
A Democracia, para sê-lo, necessita claro está de processos
organizativos democráticos, como eleições livres e justas e separação de
poderes, e da proteção de certos direitos fundamentais, de vida, de
personalidade, de liberdade de expressão e associação, de propriedade. Mas
precisa sobretudo, para viver e sobreviver, que uns certos valores fundacionais
existam de forma disseminada na sociedade, compreendidos ou pelo menos
intuídos. A Democracia, na sua acepção mais nobre, é o agregado desses valores,
uma forma civilizacional mais do que uma mera organização socio-política.
Que valores essenciais são esses? Pois vários.
Começaria com o apreço pela dúvida. Deste possivelmente
emanam os outros. A dúvida resulta da humildade socrática diante do conhecimento,
do “só sei que nada sei”. A dúvida incentiva-nos a escutar o outro, porque pode
ser que ele tenha razão e nós não. A dúvida impõe-nos o estudo e obriga-nos à
procura prudente da verdade. A dúvida afasta-nos da prosápia radical e das
soluções das quais não há retorno. Só a dúvida nos traz lucidez. Dizia Bertrand
Russell que as teorias se dividem em dois grupos: as da certeza e as da dúvida.
A Democracia inclui-se certamente nas segundas (onde se contam também, por
exemplo, as teorias científicas). Os totalitarismos fascista e comunista, bem
como a verborreia das redes sociais, caem no grupo das certezas.
Hoje, toda a gente que vejo à minha volta tem a certeza
sobre tudo e opina com trejeitos de autoridade sobre tudo, muito especialmente sobre
aquilo que não tem condições nem horas de estudo e reflexão para saber. Quando
comecei a escrever este texto, li um exemplo chocante disto num comentário
“on-line” a uma triste notícia desse dia, a de terem encontrado sem vida uma criança
que caíra num poço, em Espanha. Pois houve um senhor que na caixa de
comentários chamou incompetentes aos engenheiros e mineiros que trabalhando dia
e noite, usando do melhor do seu saber teórico e prático, com risco da sua
própria segurança, o foram buscar a cem metros de fundo. Esse senhor “acha
que...”. É certo que esse senhor escreve comentários às notícias de um “site”,
logo será por definição um imbecil, mas esta segurança nas suas certezas não
deixa de ser profundamente triste e perturbante. E também sintomática.
Deste mundo de gente cheia de certezas absolutas resulta a
facilidade com que se contradiz a ciência, às vezes por interesse, o mais por
simples parvoíce. Não só quando Trump ou Bolsonaro põem em causa o aquecimento
global, o que quer apenas dizer que foram eleitos ignorantes. Somos mais nós, os
eleitores, quando partilhamos pelas redes sociais os modismos da não-ciência,
como os perigos das vacinas, as calamidades do gás de xisto, as virtudes
homeopáticas, os niilismos ambientalistas ou as evidências políticas e
económicas que as estatísticas não suportam. O respeito colectivo pela ciência
e pelo saber, crítico mas humilde, e a vontade de perceber e aprender são
também valores centrais na saúde de uma democracia. Contrariamente à confusão
que por vezes grassa por aí, nem todas as questões se resolvem por maioria e
particularmente pela maioria dos que não estudaram e que não investiram na
solidez do seu conhecimento. Como escreveu Marie Curie, “essa demonstração que
nos custou tanto esforço...”.
E se de repente quase todos se julgam grandes médicos e
engenheiros, todos mesmo todos se acham os mais habilitados dos juízes,
julgando, condenando e em geral exigindo sangue. Quando leio o que se partilha
na “net” ou se escreve nos jornais, quando ouço os comentadores televisivos tão
tranquilos nas suas sentenças, às vezes sinto-me o único em Portugal que
acredita nesta coisa simples: a presunção de inocência é a trave-mestra de um
sistema judicial, não é um vaso à janela que dá uma côr à casa e que se arruma
quando não faz falta. Ora isto implica que na dúvida não condenemos e que, como
há sempre o risco de dúvida, os processos tenham lugar no recato dos tribunais
e não no Jornal das Nove, onde se criam condenações “de facto”. Uma pessoa
civilizada tem que conviver tranquilamente com a ideia de que um culpado pode
ter que ser solto e que tal é um preço barato para garantir que um inocente
nunca seja condenado. Na Idade Média, as pessoas acreditavam que um Deus
vigilante garantiria que a justiça absoluta era sempre possível, nem que fosse
com um julgamento divino: andar descalço sobre brasas sem ter dores ou coisa
parecida. No século XXI, parece que continuamos a acreditar na mesma coisa, só
que substituimos as brasas justiceiras pela douta opinião da Manuela Moura
Guedes ou do João Miguel Tavares, as versões brega e chique da mesma mentalidade
de pelourinho. Quem acha que há sempre um “mas” para matizar a presunção de
inocência não se pode certamente intitular democrata.
A renúncia a ouvir respeitosamente o outro, a desconfiança
face ao saber obtido com custo, a sobranceria da condenação ligeira, a
facilidade com que as redes sociais se incendeiam, tudo isto muitas vezes se
amalgama num horror às elites, porque estas acham que podem porque têm mais dinheiro,
ou que têm a mania só porque estudaram, ou porque se não querem condenar fulano
é porque são todos farinha do mesmo saco e anda tudo a meter ao bolso, ou
qualquer outro excelente argumento deste género. Ora uma democracia funcional
tem que ser um sistema elitista meritocrático, em que todos tenham as mesmas
oportunidades independentemente da sua origem socio-económica e todos possam
singrar em função do seu esforço. Que elites baseadas no mérito fazem falta à
Democracia parece óbvio quando olhamos para Trump, um básico filho de
milionários, e Obama, um cavalheiro oriundo da classe média-baixa, e a América
de cada um. O discurso de ódio às elites, mais ou menos explícito, que anda por
aí na tecla dos “facebookistas” e na boca dos bloquistas, acaba sempre por ser
uma porta de entrada escancarada aos fascismos.
Portanto, valores como o apreço pela dúvida e o que ela
arrasta, de capacidade de ouvir e possibilidade de criticar, o investimento no
conhecimento e na ciência e o reconhecimento do seu retorno, a aceitação da
imperfeição da injustiça e do imperativo ético da presunção de inocência, a
consciência do regime democrático como um sistema de elites meritocráticas em
que, como bem dizia Daniel Oliveira, nos possamos orgulhar que o filho de um
gasolineiro possa pelo seu esforço ser presidente da república, mesmo quando
discordemos totalmente dele, são valores indispensáveis para segurar no sítio
uma Democracia que se veja e que o seja.
Ora olho à minha volta e vejo pouco quem dê valor a estes
valores. No espaço público, raríssimos: o Pedro Mexia, o António Barreto,
talvez o Pacheco Pereira. No meu pequeno mundo, igualmente escassos. Vivemos
numa democracia sem democratas. Não costumo puxar galões, até porque com a
idade vou-me preocupando mais em polir os meus defeitos do que em puxar o
lustro às minhas supostas e sem dúvida reduzidas virtudes. Mas desta vez vou
aqui cometer uma arrogância: acho que tenho claros os valores que referi, e vou
por isso terminar afirmando-me um democrata, por sinal filho de outro.