domingo, fevereiro 10, 2019

Exposição fotográfica (LII)

Passei as férias de verão no Japão, uma das melhores viagens da minha vida, sobre a qual conto escrever aqui em breve. Entretanto algumas fotografias minhas de locais vestidos com uma "yukata", um "kimono" leve de algodão estampado, um revivalismo que parece estar de moda especialmente entre os jovens.

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Teatro Kabuki, Ginza, Tóquio

Santuário Yasaka, Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Starbucks (!), Gion, Kyoto

Templo Kyomizu-dera, Gion, Kyoto

Templo Kyomizu-dera, Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Parque Uedo, Tóquio

A Democracia sem democratas


Não imagino praticamente ninguém que conheça, próximo ou distante, a responder não à pergunta “é democrata?”. As pessoas acham-se democratas tão obviamente como se acham honestas. A questão parecer-lhes-á tão idiota quanto aquelas parvoíces que vêm nos formulários de imigração que se preenchem à entrada dos Estados Unidos: Traz droga? É maluco? Participou em perseguições aos judeus durante o Holocausto?

A resposta sim ao “é democrata?” parecerá evidente à quase totalidade porque, neste cantinho do mundo onde vivemos há uma associação intuitiva entre democracia e civilização e o pessoal gosta de se sentir civilizado. Além disto, existem vantagens associadas ao regime democrático que estão razoavelmente assimiladas entre a população: é bom poder falar e protestar com liberdade e sem medo; é razoável eleger – e melhor ainda, deseleger – periodicamente quem manda no burgo; aparentemente as democracias conseguem criar mais riqueza e distribuí-la um pouco melhor do que as ditaduras.

A democracia tornou-se pois uma ideia aspiracional vogando no subconsciente das pessoas, um conceito ideal embora algo nebuloso, associado à perfeição da coisa pública, em si mesmo positivo como a saúde ou a bondade. Tal hagiografia da democracia resultou num reflexo quase universal de criticar qualquer acção que se reprove sublinhando o seu pretenso carácter anti-democrático. Se a mesa da assembleia de condóminos, à uma da manhã, já cansada da bagunça generalizada, quer que se siga a agenda pré-estabelecida, logo vem um vizinho armado em tribuno com a acusação de não-democracia. Se um governante legitamamente eleito tem que tomar uma decisão, passados dez meses de debate em que não houve unanimidade entre auscultados, logo um deles clamará contra o autoritarismo e a falta de democracia. O cúmulo desta pecha ocorre quando no discurso da pequena política, ou no associativismo de bairro, ou mesmo na vida do dia-a-dia, ouvimos referir que a argumentação que o outro lado emite é por si só um ataque à democracia, como se a diferença de opinião pudesse ser intrinsecamente contra a democracia e não um dos seus pilares. Ora isto só pode surgir de uma deficiente compreensão da natureza essencial da democracia.

É verdade que democracia será um dos vocábulos mais vagos do léxico político, e também dos mais abusados. Começa logo na origem ateniense, no governo pelo “demos”: para Péricles o “demos” eram todos (todos menos mulheres, estrangeiros e escravos, claro), enquanto para os seus rivais, por exemplo Tucídides, o “demos” era a maralha, a turba anárquica. A mesma palavra, sentidos diferentes, virtudes opostas. Continua a confusão nos nossos dias, em que a Coreia do Norte, a Venezuela, os Estados Unidos ou a Noruega, todos se consideram uma democracia, quando não “a” democracia, por excelência. Claro está que Kim Jong-un, Nicolas Maduro, Donald Trump ou o rei Harald V não podem estar a falar do mesmo regime quando o conceito “democracia” lhes aparece por baixo das meninges. E não deixa de ser curioso que seja provavelmente um rei, um resquício do nada democrático direito de sangue, o que esteja mais próximo da razão.

É também verdade que com o fim da Guerra Fria se assistiu a uma maior proliferação mundial de processos formalmente democráticos, com eleições e parlamentos, oposição autorizada e imprensa mais ou menos independente. Muitos se deleitaram então a escrever e a ler sobre o fim da História, constituído por um mundo sem espinhas de regimes de liberdades e garantias, de democracia representativa e liberal, com economia capitalista a bombar potenciada por um comércio sem barreiras a nível planetário. Ora como sabemos da nossa experiência ao volante, o fim dos caminhos normalmente tem um muro à frente que obriga a ir para trás. Foi o que aconteceu: em muitos dos nóveis regimes democráticos, as eleições nem sempre foram verdadeiramente livres, os parlamentos muitas vezes não representaram o eleitorado, opositores mais coriáceos acabaram presos e jornalistas mais abelhudos apareceram mortos. Putin, Maduro, Erdogan e Trump foram eleitos mais ou menos democraticamente, como já antes Hitler o tinha sido. Afinal, o trágico não desapareceu das vidas dos povos e a História continua um rio revolto e não se tornou a plácida e espraiada foz que alguns julgavam.


Pior: se em muitos regimes democráticos jovens o progresso foi frágil e mais aparente do que real, em muitas democracias mais estabelecidas verificou-se um retrocesso grave, umas vezes espectacular, outras subterrâneo e por isso mais perigoso. No primeiro caso podemos incluir o crescimento da FN, do UKIP, do Vlaams Block, do Podemos e do Vox ou da AfD, a chegada ao poder da extrema-direita na Áustria – e aqui deixo de parte a Hungria e a Polónia, exemplos piores mas que dificilmente cabem no perímetro das democracias mais estabelecidas, a sucessão de Berlusconi e depois Beppe Grillo e depois Salvini em Itália, terminando obviamente com Trump e agora Bolsonaro, os exemplos mais caricaturais e talvez por isso mais acabados desta marcha-atrás. No segundo, a perda de autoridade moral do Ocidente no plano internacional, a degradação da capacidade crítica do jornalismo, a corrosão do respeito pela verdade e pela ciência suportada nas recentes praças do pelourinho digitais, a nova censura do politicamente correcto, a inversão do ónus da prova diante de formas variantes de totalitarismo, como certos ambientalismos e feminismos hoje prevalecentes, a generalização da anomia e a descrença nas instituições típicas das democracias parlamentares, tudo azares que levam a que sucessivas linhas vermelhas que no passado nos protegeram da tentação totalitária sejam agora pisadas, quando não espezinhadas, nos sítios e pelas pessoas “a priori” mais insuspeitos.

Quem tem culpa neste estado de coisas?  Certamente as instituições e os políticos, os juízes, os magistrados, os patrões de indústria e os jornalistas que as constituem. Mas muito mais do que eles todos nós em geral, que do voto ao “post” à conversa de café enviamos a essas pessoas sinais sobre o que pensamos, o que queremos, com que prioridades e quais os valores que temos por importantes. Nestes valores, tristemente, raramente encontramos os que são básicos para uma verdadeira Democracia.

A Democracia, para sê-lo, necessita claro está de processos organizativos democráticos, como eleições livres e justas e separação de poderes, e da proteção de certos direitos fundamentais, de vida, de personalidade, de liberdade de expressão e associação, de propriedade. Mas precisa sobretudo, para viver e sobreviver, que uns certos valores fundacionais existam de forma disseminada na sociedade, compreendidos ou pelo menos intuídos. A Democracia, na sua acepção mais nobre, é o agregado desses valores, uma forma civilizacional mais do que uma mera organização socio-política.
 
Que valores essenciais são esses? Pois vários.


Começaria com o apreço pela dúvida. Deste possivelmente emanam os outros. A dúvida resulta da humildade socrática diante do conhecimento, do “só sei que nada sei”. A dúvida incentiva-nos a escutar o outro, porque pode ser que ele tenha razão e nós não. A dúvida impõe-nos o estudo e obriga-nos à procura prudente da verdade. A dúvida afasta-nos da prosápia radical e das soluções das quais não há retorno. Só a dúvida nos traz lucidez. Dizia Bertrand Russell que as teorias se dividem em dois grupos: as da certeza e as da dúvida. A Democracia inclui-se certamente nas segundas (onde se contam também, por exemplo, as teorias científicas). Os totalitarismos fascista e comunista, bem como a verborreia das redes sociais, caem no grupo das certezas. 

Hoje, toda a gente que vejo à minha volta tem a certeza sobre tudo e opina com trejeitos de autoridade sobre tudo, muito especialmente sobre aquilo que não tem condições nem horas de estudo e reflexão para saber. Quando comecei a escrever este texto, li um exemplo chocante disto num comentário “on-line” a uma triste notícia desse dia, a de terem encontrado sem vida uma criança que caíra num poço, em Espanha. Pois houve um senhor que na caixa de comentários chamou incompetentes aos engenheiros e mineiros que trabalhando dia e noite, usando do melhor do seu saber teórico e prático, com risco da sua própria segurança, o foram buscar a cem metros de fundo. Esse senhor “acha que...”. É certo que esse senhor escreve comentários às notícias de um “site”, logo será por definição um imbecil, mas esta segurança nas suas certezas não deixa de ser profundamente triste e perturbante. E também sintomática.

Deste mundo de gente cheia de certezas absolutas resulta a facilidade com que se contradiz a ciência, às vezes por interesse, o mais por simples parvoíce. Não só quando Trump ou Bolsonaro põem em causa o aquecimento global, o que quer apenas dizer que foram eleitos ignorantes. Somos mais nós, os eleitores, quando partilhamos pelas redes sociais os modismos da não-ciência, como os perigos das vacinas, as calamidades do gás de xisto, as virtudes homeopáticas, os niilismos ambientalistas ou as evidências políticas e económicas que as estatísticas não suportam. O respeito colectivo pela ciência e pelo saber, crítico mas humilde, e a vontade de perceber e aprender são também valores centrais na saúde de uma democracia. Contrariamente à confusão que por vezes grassa por aí, nem todas as questões se resolvem por maioria e particularmente pela maioria dos que não estudaram e que não investiram na solidez do seu conhecimento. Como escreveu Marie Curie, “essa demonstração que nos custou tanto esforço...”.


E se de repente quase todos se julgam grandes médicos e engenheiros, todos mesmo todos se acham os mais habilitados dos juízes, julgando, condenando e em geral exigindo sangue. Quando leio o que se partilha na “net” ou se escreve nos jornais, quando ouço os comentadores televisivos tão tranquilos nas suas sentenças, às vezes sinto-me o único em Portugal que acredita nesta coisa simples: a presunção de inocência é a trave-mestra de um sistema judicial, não é um vaso à janela que dá uma côr à casa e que se arruma quando não faz falta. Ora isto implica que na dúvida não condenemos e que, como há sempre o risco de dúvida, os processos tenham lugar no recato dos tribunais e não no Jornal das Nove, onde se criam condenações “de facto”. Uma pessoa civilizada tem que conviver tranquilamente com a ideia de que um culpado pode ter que ser solto e que tal é um preço barato para garantir que um inocente nunca seja condenado. Na Idade Média, as pessoas acreditavam que um Deus vigilante garantiria que a justiça absoluta era sempre possível, nem que fosse com um julgamento divino: andar descalço sobre brasas sem ter dores ou coisa parecida. No século XXI, parece que continuamos a acreditar na mesma coisa, só que substituimos as brasas justiceiras pela douta opinião da Manuela Moura Guedes ou do João Miguel Tavares, as versões brega e chique da mesma mentalidade de pelourinho. Quem acha que há sempre um “mas” para matizar a presunção de inocência não se pode certamente intitular democrata.

A renúncia a ouvir respeitosamente o outro, a desconfiança face ao saber obtido com custo, a sobranceria da condenação ligeira, a facilidade com que as redes sociais se incendeiam, tudo isto muitas vezes se amalgama num horror às elites, porque estas acham que podem porque têm mais dinheiro, ou que têm a mania só porque estudaram, ou porque se não querem condenar fulano é porque são todos farinha do mesmo saco e anda tudo a meter ao bolso, ou qualquer outro excelente argumento deste género. Ora uma democracia funcional tem que ser um sistema elitista meritocrático, em que todos tenham as mesmas oportunidades independentemente da sua origem socio-económica e todos possam singrar em função do seu esforço. Que elites baseadas no mérito fazem falta à Democracia parece óbvio quando olhamos para Trump, um básico filho de milionários, e Obama, um cavalheiro oriundo da classe média-baixa, e a América de cada um. O discurso de ódio às elites, mais ou menos explícito, que anda por aí na tecla dos “facebookistas” e na boca dos bloquistas, acaba sempre por ser uma porta de entrada escancarada aos fascismos. 

Portanto, valores como o apreço pela dúvida e o que ela arrasta, de capacidade de ouvir e possibilidade de criticar, o investimento no conhecimento e na ciência e o reconhecimento do seu retorno, a aceitação da imperfeição da injustiça e do imperativo ético da presunção de inocência, a consciência do regime democrático como um sistema de elites meritocráticas em que, como bem dizia Daniel Oliveira, nos possamos orgulhar que o filho de um gasolineiro possa pelo seu esforço ser presidente da república, mesmo quando discordemos totalmente dele, são valores indispensáveis para segurar no sítio uma Democracia que se veja e que o seja.

Ora olho à minha volta e vejo pouco quem dê valor a estes valores. No espaço público, raríssimos: o Pedro Mexia, o António Barreto, talvez o Pacheco Pereira. No meu pequeno mundo, igualmente escassos. Vivemos numa democracia sem democratas. Não costumo puxar galões, até porque com a idade vou-me preocupando mais em polir os meus defeitos do que em puxar o lustro às minhas supostas e sem dúvida reduzidas virtudes. Mas desta vez vou aqui cometer uma arrogância: acho que tenho claros os valores que referi, e vou por isso terminar afirmando-me um democrata, por sinal filho de outro.

sábado, março 17, 2018

Exposição fotográfica (LI)

Esta semana, em Bratislava...

Um antiquário com um toque Klimtiano, rua Palackého

A cruz eslovaca

O Danúbio pardacento. Disseram-me que após uma garrafa de vinho dos Cárpatos, fica azul.

O castelo e à frente o Dunajský Pivovar, barco, restaurante e fábrica de cerveja

Hans Christian Andersen: esteve três horas em Bratislava numa paragem tipo Canal Caveira entre Budapeste e Viena e foi o suficiente para lhe fazerem uma estátua

Lado sul da cidade e ao fundo um horizonte eólico já em território austríaco

O observador, por Viktor Hulik. A estátua tem um sorriso maroto, diz-se que por causa do que consegue ver deste ângulo

Rua Zamocnicka

Entrada da Filarmónica Eslovaca

Tocador de harpa na rua Rybárska Brána

sábado, março 10, 2018

Oresteia ou a derrota dos tablóides



Fui há dias ao CCB, a que eu muitas vezes por lapso cavaquiano continuo a chamar, passados todos estes anos, Centro Comercial de Belém, ver a trilogia Oresteia de Ésquilo. Picado o bilhete, um átrio pequeno para tanta gente abrigava os pagantes do frio da noite de Fevereiro. Não se viam as portas da sala e civilizadamente uma fila foi-se formando, com fim mas sem princípio, uma vez que desembocava numa mole desordenada que ocupava o fundo da salinha. Acabámos por ser dos primeiros a entrar, involuntariamente à tuga.

Apesar de uma acústica deficiente e de um ou outro lapso de memória dos actores, não dei por perdidos tempo e dinheiro. Era o último dia e sabia pelas resenhas que lera que nos iriam servir uma versão modernaça, pontuada pela música dos Dead Combo. Gostei do que vi e ouvi: plasticamente a encenação é muito bela no seu despojamento e no jogo das luzes e das sombras sobre um cenário simples de panos translúcidos e o som minimalista mas obsessivo dos Dead Combo aviva o ambiente de tragédia que vamos acompanhando. Trata-se afinal de teatro: o que aparece em palco não é como no cinema uma realidade total, fotográfica, mas meramente os símbolos que são a essência da realidade narrada; portanto um mínimo basta e mais do que isso até pode ser demais.


Apreciei também que, embora reinventada, o encenador não se tenha esquecido que de uma peça grega clássica se trata, vergando-se subtil mas humildemente aos respectivos cânones: as máscaras, as poderosas falas do coro, os enfáticos monólogos das personagens dilaceradas pela tragédia, até as botifarras com que os actores entram em palco lembrando os coturnos que há vinte e cinco séculos os seus antecessores usaram para se altear ao público.

Oresteia compõe-se de três peças, Agamémnon, Coéforas e Euménides. As duas primeiras vão beber à maldição que atormenta a casa real de Agamémnon, rei de Micenas e líder dos gregos durante a guerra de Tróia. Ainda antes de a acção começar, os personagens já vêm marcados pela tragédia. Com efeito, Atreu, pai de Agamémnon, quando descobre que a sua mulher Aérope o andava a enganar com o seu irmão gémeo Triestes, decide vingar-se. Em vez de resolver o caso com uma espadeirada, vá uma cornada, o refinado Atreu assassina os filhos do irmão e serve a sua carne num banquete para o qual o convida, antes de o expulsar de Micenas. 

Educado nesta família algo disfuncional, em que a mãe come figuradamente o tio, o pai mata os primos, o tio come não-figuramente os primos e o pai exila o tio (e à época era pior ignomínia ser exilado do que guisado), não surpreende que o pobre Agamémnon tenha ideias estranhas. Por isso, quando um tal Calchas, oráculo de profissão na modalidade de interpretação de voo dos pássaros, lhe sugere que sacrifique a sua própria filha Ifigénia para ver se os deuses mandavam algum vento para empurrar até Tróia a encalhada armada grega, Agamémnon não se faz muito rogado. Hesita inicialmente mas pressionado pelos restantes comandantes gregos, que lhe vão dizendo que nem a guerra começava nem eles almoçavam, lá manda vir a cachopa para a degola sob o pretexto enganoso de a casar com o herói Aquiles. Para apimentar a situação, a falta de vento devia-se a uma birra da deusa Artemisa, que ficara chateada quando Agamémnon acidentalmente matara um veado num bosque sagrado que lhe era dedicado – veja-se o risco dos acidentes de caça. Agamémnon tem portanto dupla responsabilidade na morte da filha.

Isto passa-se antes do início da Oresteia, já que neste assistimos ao regresso a casa de Agamémnon, após dez anos de guerra de Tróia. Regressa vitorioso e com ele traz Cassandra, uma vidente. Clitemnestra, a mulher de Agamémnon – serão o casal com os nomes mais trava-línguas da história – andou dez anos a remoer a morte da filha e também não fica muito satisfeita com a presença de Cassandra, que ela vê imediatamente que serve mais para o marido ver o padeiro do que ver o futuro. Ressabiada, apunhala o marido na banheira – aos olhos da época uma agravante já que não só mata como fá-lo no sacrossanto recato do lar, onde o seu dever é atender o marido e não assassiná-lo – e de caminho limpa a Cassandra também, indo-se depois justificar em conversa com o coro. Nisto aparece Egisto, o amante de Clitemnestra – dez anos são muito tempo para quem não se chama Penélope – e este revela que a morte de Agamémnon foi premeditada e planeada também por ele. Para Egisto, trata-se de uma vingança já que ele é um filho não jantado de Triestes. Neste ambiente algo filme série bê acaba a primeira peça da trilogia.


Na segunda, Orestes, filho de Agamémnon e Clitemnestra e portanto irmão de Ifigénia, regressa a casa de um longo exílio na companhia do seu primo Pilades. Orestes também consultou o oráculo, onde o próprio deus Apolo lhe mandou matar a mãe para vingar o pai para ficar tudo quite. Orestes encontra a outra irmã, Electra, e envolve-a no plano assassino. Usando o velho truque de não ser reconhecido (para isso é que eles ficavam muitos anos fora) e com alguma ajuda do pessoal do coro, entra no palácio e trata primeiro do Egisto. Nesse momento a mãe entra na sala. Orestes hesita em matá-la tal como o pai hesitou em matar Ifigénia, só que está lá o Apolo em pessoa – melhor dizendo, em divindade – que o aperta um bocado, lembrando-lhe o combinado. Orestes acaba por perpetrar o matricídio o que tem como consequência desencadear a fúria das deusas Fúrias, umas precursoras do trio Mr. Smith/Mr. Brown/Mr. Jones do Matrix. Perseguido por estas, Orestas foge galhardamente do palácio pondo fim à segunda peça.

 Até aqui, temos tragédia grega no seu normal: os azares acontecem e há que pagar a conta, cumprindo o destino, repondo equilíbrios cósmicos. Atreu matou os filhos de Triestes, um outro filho de Triestes mata o filho de Atreu, Agamémnon. Agamémnon matou Ifigénia, a mãe de Ifigénia mata também Agamémnon, que leva por dois lados. Orestes, filho de Agamémnon, tem que reequilibrar o marcador matando os matantes do pai. Por muito bons que sejam os seus motivos, um crime tão horrível não pode ficar sem desforra e à falta de pessoas de carne e osso que o façam, as deusas Fúrias vão tratar do assunto.

Só que ao entrarmos na terceira peça, Eumenídes, o conceito muda radicalmente. As Fúrias perseguem implacavelmente Orestes e este, com alguma ajuda de Apolo, lá se vai safando até encontrar a deusa Atena, a quem pede ajuda. Atena cria então um tribunal no areópago de Atenas, onde a decisão vai ser tomada por jurados (nesta encenação o próprio público) que constituem um júri. Após ouvir Apolo e a Fúria-chefe, que funcionam como advogados de defesa e acusação, Atena conta os votos dos jurados: metade dizem culpado, a outra metade inocente. Atena usa o seu voto de qualidade para inocentar Orestes e quebrar a cadeia trágica de morte e vingança. Consegue convencer as Fúrias a aceitar o veredicto e muda-lhes o nome para Euménides, que significa “as amáveis”, pedindo-lhes que sejam uma força de vigilância e não de vingança. Atena acaba de criar o primeiro tribunal entre os homens, passando-lhes de caminho a responsabilidade pelos seus actos. Será o Direito dos homens e não mais os oráculos dos deuses ou a força do Destino que decidirão da culpa e da inocência.

Este final parece-me tanto mais notável ao constituir um rasgo com um conceito muito enraizado entre os gregos antigos, que é a inexorabilidade do destino: um mal não pode ficar sem vingança e esta ocorre mais cedo ou mais tarde, senão ao causador do mal então a alguém do seu sangue que sofrerá um mal de grau comparável. Nesta visão, o Destino é uma estrutura essencial do universo e mesmo os deuses lhe estão sujeitos. Tal é amplamente retratado nas tragédias gregas em que os personagens, por muito virtuosos e heróicos que sejam, sofrem o seu destino por pouca ou nenhuma culpa directa que tenham: Ifigénia não tinha nada a ver com que o pai por acidente ofendesse a deusa Artemisa. Mas tinha o mesmo sangue e por isso o seu destino ficou selado: a sua morte aplacou a deusa e reequilibrou o cosmos. Neste conceito de universo, dois males anulavam-se em vez de se adicionar.

Mas neste final Atena, deusa da sabedoria, acaba com isso. Há aqui um reconhecimento de que a justiça não pode ser perfeita, não sendo melhor a dos deuses que a dos homens, e que a complexidade das coisas requer debate, reflexão e julgamento. Nem sempre a culpa é um conceito fácil: todos os espectadores sabem que Orestes matou a mãe, o mais nuclearmente sórdido e contra-natura dos crimes, mas Ésquilo foi suficientemente hábil para induzir nos espectadores o melhor da natureza humana e levá-los a alinhar-se com o veredicto do tribunal.

Ora reparem como isto parece todo o contrário da voz que é corrente na nossa sociedade, tal como emana das redes parece que sociais e dos tablóides, entendendo-se por tablóides não apenas o Correio da Manhã mas também por exemplo os telejornais da Sic Notícias ou da TVI 24, com aqueles “pivots” que se auto-intitulam jornalistas como noutras ocasiões se auto-nomeiam escritores. A visão de justiça que sai dos ecrãs é infelizmente a das Fúrias e não a de Atena, é a de Micenas e não a de Atenas. Hoje, o julgamento faz-se na praça pública, regido pela aparência dos factos e pela aparência das pessoas, sem contraditório e com um desprezo indisfarçado pelas garantias da lei, que existem no entanto para proteger a Orestes como a cada um de nós de uma justiça que não seja mera vingança social. O que interessa neste nosso mundo de cento e quarenta caracteres máximos de reflexão é que haja sangue e aquela mindinha presunção de superioridade moral, “a la Bloco de Esquerda”.

Suponho que para Ésquilo o trágico fosse a condenação de um inocente e não a absolvição de um culpado. Para mim e estou convencido que para muitos outros, também. O homem civilizado, passe a imodéstia, vive bem com os riscos da vida: os terramotos, a doença e a morte, a imperfeição da lei dos homens que na dúvida liberta o culpado; mas não pode sofrer a ideia que por excesso de zelo ou falta de humanidade se condene um inocente, ou até que se transforme a justiça num espectáculo circense ao nível do comentário da jornada futebolística. Não sei se os que assim pensam são maioritários ou minoritários no Portugal de hoje, mas certamente carecem de visibilidade.


Pouco se conhece sobre Ésquilo. Nasceu em Eleusis à volta de 523 A.C. e morreu próximo de 456 A.C. Escreveu setenta a noventa peças das quais só sete chegaram aos nossos dias, nem sabemos se as melhores. Foi pai de família, teve dois filhos. Possivelmente vestiria uma túnica, calçaria umas sandálias toscas e comeria com os dedos. Não tinha telefone inteligente. E há dois mil e quinhentos anos escreveu e partilhou com os seus conterrâneos conceitos que hoje parecem esquecidos numa sociedade que se julga sofisticada, formada e informada: que a democracia e a justiça são uma preciosa dádiva dos deuses. E fê-lo de uma forma tão poderosa que pelo menos durante as duas horas da peça, ali no CCB, venceu a sanha dos tablóides.