Caso para dizer: “long time no see”. Mataspeak andou
entretido noutras frentes e tanto tempo passou desde o “post” anterior que os
ingleses, privados da luz esclarecida dos textos que aqui se escrevem, entraram
em parafuso e votaram a saída da União Europeia. Aqui ficam algumas impressões
sobre este acontecimento momentoso – tradução muito livre de “momentous”.
1)
Democracia não é só quando dá jeito
Da leitura de certas linhas de comentário antes e depois do
voto dos britânicos, deduzo que muita gente acha que a democracia é um adereço
que só se usa em dia de festa.
A saída do Reino Unido da União Europeia traduz o voto
maioritário de um povo numa eleição livre e democrática, povo que não é aliás
qualquer um no que a democracia se refere. A convocação do próprio referendo
resulta do cumprimento de uma promessa eleitoral de David Cameron num sufrágio
anterior que venceu por maioria absoluta e em que anunciou previamente que o
iria convocar – o que nunca passaria despercebido como detalhe menor do
programa eleitoral. Apesar de ir ficar na História como o dedo que apertou o
gatilho num dos maiores tiros no pé de
sempre, Cameron merece o respeito de não ter fugido à promessa, por muito pouco
jeito que lhe tenha dado.
Por outro lado, é da natureza da democracia que o voto do
velhote rural nos West Midlands valha tanto como o do jovem profissional
sofisticado que pode pagar a renda em West London. A mim parece-me muito bem
que assim seja porque é a única forma de garantir o respeito por cada voto e
logo também pelo meu, quando o exerço. Mas já percebi que esta natureza
fungível do voto escapa a algumas mentes superiores - ou que pelo menos assim
se acham em frente ao espelho da manhã.
A estas, recomendo a releitura do que vem logo para aí na
segunda página do “Espírito das Leis”: “O povo é na democracia em certos
aspectos um monarca, noutros um sujeito. Só pode ser monarca através dos seus
sufrágios, que são as suas vontades. As leis que estabelecem o direito de
sufrágio são pois fundamentais neste tipo de governo.”
Concordo com Montesquieu: para o melhor e para o pior, a
vontade do povo só se mede pelo voto, e não pelos papos esclarecidos de
qualquer vanguarda, por reluzente que esta pareça.
2)
Os povos têm o direito de decidir sobre o seu
destino
Desde que o referendo foi anunciado até hoje, também me fartei
de ver e ouvir considerações que tratavam o facto de os britânicos irem
discutir a sua permanência na UE como mais uma bizarria além-Mancha, tal como
conduzir à esquerda ou beber cerveja morna e morta.
Há que ver duas coisas. Primeiro, qualquer povo tem o direito
a decidir se quer aderir, continuar ou sair de uma associação política, medindo
as vantagens e inconvenientes e assumindo as consequências. Isto penso eu, mas
não estou certo de estar muito numerosamente acompanhado. Fico parvo quando as
mesmas vozes que se extasiam com o folclore independentista catalão, como se
Espanha fosse um estado opressor, tratam o referendo britânico como se de uma
iniquidade fascista se tratasse. Em segundo, a União Europeia tem feito tudo,
mas mesmo tudo, para que a discussão sobre ficar ou sair se torne pelo menos um
pouco pertinente.
Isto no plano dos princípios. Constato que depois o debate
eleitoral sobre a permanência, que deveria ser positivo e que teria muita
utilidade para a própria UE, se abastardou pela mão dos partidários do Brexit e
se tornou uma discussão pela negativa, onde se esgrimiram medos e mentiras e
não ideias.
No fim do dia, este acabou por ser um plebiscito a uma forma de
populismo rasteiro que é hoje o grande inimigo das democracias e que serpenteia
traiçoeiro quer nos fantasmas das bases, quer nas peneiras de algumas elites.
3)
A União Europeia pôs-se muuuuito a jeito
Ninguém no mundo ganharia umas eleições a dizer mal do papa
Francisco. Qualquer populista de meia-tijela, em qualquer lugar, granjeia votos
a cascar na União Europeia. O primeiro tem uma gestão de discurso e imagem
perfeita, a segunda põe-se a jeito permanentemente.
A UE foi fundada por homens que viam longe e é agora gerida
por gajos que nem ao perto vêem. A gestão de qualquer problema é hoje lenta ao
ponto de ineficaz, incompleta, inigual nas exigências aos Estados-membro e o
mais das vezes desligada dos valores essenciais e originais que estiveram na
origem da ideia europeia. Cada vez que o Schauble ou o Dijsellbloom abrem a
bocarra, a união dá um passo no caminho da dissolução.
A UE cresceu demasiado depressa e precipitadamente.
Alargou-se a leste a países que ou não tinham ainda a capacidade económica para
o embate ou não tinham qualquer tradição liberal ou democrática ou as duas
coisas simultaneamente. Criou uma união monetária parcial, mal pensada, que se
tornou um pesadelo para todos, presos que estão sem mecanismos para voltar para
trás ou lucidez para seguir em frente. Desenvolveu uma burocracia ridícula, que
fala em liberalismo mas legisla sobre tudo e mais alguma coisa, do revestimento
do chão das pocilgas ao fermento dos queijos, lá do fundo de cubículos no
Quartier Européen de Bruxelas. Na questão dos refugiados, falhou
miseravelmente, esquecendo as obrigações morais do seu próprio passado, cedendo
à pior ralé que musgueia por esse continente fora e varrendo o problema para
debaixo do tapete, pagando aos turcos para fazer o trabalho sujo.
Os falhanços mais profundos da UE resultam de se ter
esquecido da sua essência original, que foi a de uma construção política e
humanista de países democráticos iguais entre si. Deixou que a Alemanha tomasse
conta do volante, algo que historicamente foi sempre um passo decisivo a
caminho do desastre. Deixou que o fascismo se instalasse em certos governos sem
fazer nada contra isso: a Hungria já há muito que devia estar a ser expulsa da
união. Deixou desvanecer a aura de autoridade moral que tinha com a sua
incapacidade de evitar a maneira porca com que Estados-membro trataram seres
humanos que fugiam à morte, veja-se a Dinamarca. Deixou que a economia tomasse
o freio nos dentes, incapaz de perceber colectivamente que existem limites
políticos à optimização económica e que a História acaba sempre por desvendar
quais são, às vezes com muito sangue e dor.
E é pena, porque a União Europeia continua a ser uma das
mais bonitas construções no percurso da Humanidade, que trouxe setenta anos de
paz a um continente cronicamente à pancada. A UE teve culpas no “Brexit” e o
“Brexit” poderá ter culpas no esboroar da UE. Quando a UE desaparecer, provavelmente haverá guerra na Europa no
espaço de uma geração e aí os saudosos falarão do bom que eram os tempos da
União Europeia.
4)
As consequências disto tudo
Não vou falar do desmoronar das bolsas no dia 24, até porque
prudentemente vendi no dia 23.
Mas há muito mais. O “Brexit” abriu as caixas todas que a Pandora trazia no carrinho: pode trazer o fim da União Europeia, o fim do Reino Unido, o recrudescer do conflito na Irlanda e muitas outras coisas. É sem dúvida um facto histórico de primeira grandeza, daqueles após os quais as coisas nunca voltam a ser como eram.
Mas há muito mais. O “Brexit” abriu as caixas todas que a Pandora trazia no carrinho: pode trazer o fim da União Europeia, o fim do Reino Unido, o recrudescer do conflito na Irlanda e muitas outras coisas. É sem dúvida um facto histórico de primeira grandeza, daqueles após os quais as coisas nunca voltam a ser como eram.
Para o fim da UE, os populistas de pouco coturno já
começaram a bradar pelo seu próprio referendozito local: arrancou com Marine Le
Pen, continuou com o Geert Wilders e até tivemos a Catarina Martins entusiasmadíssima
do alto de um palanque, desertinha por confirmar a minha teoria que o saco da
farinha é todo o mesmo. Enquanto estes dizem mata, os eurocratas dizem esfola.
Incapazes de perceber o que aconteceu, como incapazes foram de perceber o que
acontecia, o presidente da Comissão Juncker entretem-se no Parlamento Europeu a
descer ao nível de Farage e o “wirklicher führer” Schauble decide dar com
Portugal um exemplo esplendoroso dos grandes perigos da rigidez luterana. Entre
a saltitante Martins e o rolante Schauble, caminhamos com garbo para o ruir da
união. E quando esta ruir, repito, dizem-me a minha intuição e as lições da
História que no espaço de vinte anos haverá guerra a sério em território da
Europa.
Outro efeito relativamente rápido poderá ser a desunião do
reino. Voltaremos eventualmente aos tempos gloriosos de Henrique V, em que o
exército “britânico” tinha peões ingleses e arqueiros galeses e parava aí. A
líder do SNP, Nicole Sturgeon, andava só à procura de um pretexto para desdizer
os resultados tangenciais do referendo de 2014 e relançar o tema escocês. Agora
já o tem.
Quanto à Irlanda do Norte, pior ainda. Um território com duas comunidades de dimensão paritária, que se odeiam, pode dar tudo. Se ficar integrado na Irlanda, revolta da comunidade protestante. Se num Reino Unido isolado e totalmente inglês, revolta da comunidade católica. Se independente, tensão interna. Não nos devíamos esquecer que durante os anos setenta e oitenta houve muitos mas muitos mais mortos por acções terroristas na Europa do que nestes anos recentes, e que a maioria foi em acções do IRA. Este assunto deveria ter sido mais pensado, mas Farage estava preocupado com os seus pequenos traumas de classe média-baixa e Boris com as suas pequenas ambições de classe média-alta.
Quanto à Irlanda do Norte, pior ainda. Um território com duas comunidades de dimensão paritária, que se odeiam, pode dar tudo. Se ficar integrado na Irlanda, revolta da comunidade protestante. Se num Reino Unido isolado e totalmente inglês, revolta da comunidade católica. Se independente, tensão interna. Não nos devíamos esquecer que durante os anos setenta e oitenta houve muitos mas muitos mais mortos por acções terroristas na Europa do que nestes anos recentes, e que a maioria foi em acções do IRA. Este assunto deveria ter sido mais pensado, mas Farage estava preocupado com os seus pequenos traumas de classe média-baixa e Boris com as suas pequenas ambições de classe média-alta.
Finalmente, logo no dia seguinte ao referendo, começou-se a
verificar um aumento dos insultos e ataques racistas contra os polacos, os
muçulmanos, os portugueses, para cerca de cinco vezes mais do que dantes. Não
pode surpreender ninguém: os milhões que compram o “The Sun” e o “Daily Mirror”
tinham que estar em algum lado. Este tipo de gente é cobarde pelo que prefere a
matilha e o Brexit deu-lhe essa sensação de pertença. Basta muito pouco para
libertar o camisa negra que há em nós.
As consequências são pois muitas e graves. Mas tal não
justifica desrespeitar os resultados do referendo ou indo-lo repetindo até dar “o
que se quer”. Também é da essência das democracias que os povos sejam adultos e
vivam com o resultado das suas escolhas.
5)
O populismo como moderno cancro político
Poderá ser uma generalização grosseira, mas parece-me que o
Brexit é apenas mais uma manifestação de um fenómeno que varre a Europa (e não
só) com maior ou menor intensidade e que à falta de melhor vocábulo chamo
populismo. O populismo tem agentes, destinatários e uma essência.
A essência é uma recusa colectiva de encarar a realidade e
uma abdicação, também muito colectiva, de utilizar os meios que permitem
compreendê-la. Umberto Eco traduziu-a numa frase que explica perfeitamente as
disformidades do mundo contemporâneo: a mentira é mil vezes mais atraente do
que a verdade. A realidade é insegura, turbulenta, difícil de apreender,
multifacetada, arriscada. Compreendê-la implica um esforço de conhecimento e
análise, bem como a utilização de ferramentas mentais como a dúvida, que nos é
contra-natura, ao revés da mais humana e aconchegante certeza. A certeza
sabe-nos bem, mesmo quando é irreal.
Os destinatários desta essência somos todos nós e hoje a
maioria de nós está disponível para ela. Informamo-nos por telejornais e
partilhas de Facebook, o que equivale a dizer que não nos informamos, vamos
buscar pouco à leitura dos nossos melhores, sejam passados ou presentes, e
preferimos o sossego de nos arrumarmos na ideia fácil que há sempre um outro
odioso e um nós imaculado. Por isso basta dizerem-nos o que queremos ouvir e
aderimos a correr.
E isto não tem só a ver com o Brexit, tem a ver com muitos
desvarios aparentemente diversos mas unidos por uma mesma atitude de preguiça
diante da natureza exigente da verdade, uma atitude de recusa do debate, da
reflexão, da ciência, da possibilidade de erro, da noção de compromisso. Pode
materializar-se no medo do estrangeiro na Polónia ou em Inglaterra, na estigmatização
das minorias na Hungria, no mito da preguiça mediterrânica na Alemanha, na
subida dos fascismos um pouco por todo o lado, nos esquerdismos fáceis, nos
direitismos cegos, no novo totalitarismo ambientalista que recupera os velhos
mitos dos paraísos bucólicos, e em milhares de causas porreiraças que desviam o
pessoal das coisas que deviam ser sérias, causas que vão da – para mim perigosíssima
- equiparação dos direitos dos animais aos dos homens ao magno e pitoresco tema
do “fracking”, causas que não são causas mas sim meras bandeiras num convescote
porque quem as promove não está minimamente interessado em debater mas apenas
em ter “razão” e sentir-se o maior por isso.
Os agentes, esses, são os que por crença ou por interesse,
quais deles os piores, se resumem a dizer o que é simpático ouvir-se. São os
Farages e os Johnsons, as Le Pens e as Petrys, os Orbans e as Szydlos, mas
também os Iglésias e as Martins e tantos outros que só conhecem como método
político o agitar das águas lamacentas do populismo.
Neste contexto, vão-se esvaziando os partidos que fizeram a
Democracia europeia (veja-se as recentes eleições para a presidência austríaca
e para a câmara de Roma) em prol de todo o tipo de malta perigosa. A nova
dicotomia não é entre esquerda e direita, como em Portugal castiça e puerilmente
se apregoa. É entre um centro democrático, degradado, cego e meio perdido, e
uma periferia populista que se alimenta dos receios dos abandonados da
globalização, crescendo no sentido do totalitarismo. Cheira a anos trinta que
se farta. A culpa será dos agentes, mas também dos destinatários. Sem
destinatários não há agentes.
Perante isto que fazer? Talvez falar um pouco mais alto, escrever
umas coisas, dizer o que aqui digo no círculo dos meus amigos, ser exigente com
eles. Quando alguns vêm com os chavões populistas, não os deixar escapar sem
uma boa conversa. Tornar-me um chato. Mais ainda.