domingo, janeiro 24, 2016

Zoologia eleitoral



Temos eleições presidenciais hoje e ao longo das últimas semanas as capas dos jornais e as cadeiras dos estúdios têm-se enchido com as vidas e desventuras de dez portugueses que aspiram a uma moradia mobilada em estilo clássico, de dezenas de assoalhadas, com vista de rio, segurança própria e lugares de garagem, sita em bairro tradicional de Lisboa e cuja aquisição requer mais do que o telemóvel de um vendedor da Remax ou da Era.

O detalhe singelo de essa moradia estar reservada para o ocupante do mais alto cargo do Estado, lugar de alguma responsabilidade - e por isso o único em Portugal que obriga a maioria de 35 anos de idade - não demoveu estes nossos dez compatriotas de ir chatear 7500 pessoas para assinar ali e, feito o feito, entregar no Tribunal Constitucional os caixotes de autógrafos que os tornaram candidatos à presidência da nossa república. Esqueceram porém que no meio de tanta assinatura convinha trazer uma ou outra ideia sobre o trabalho a que se propõem e que nós iremos remunerar com o carcanhol dos nossos impostos.

Falhos de ideias, os debates, em combinações de “n candidatos k a k”, produziram menos ainda do que é costume: promessas de mundos que não estão nos poderes presidenciais e de fundos que não estão nos poderes de ninguém; alfinetadas ou murros na tromba, consoante, sobre o carácter e o passado dos adversários; lugares-comuns e paleio politicamente correcto em regime de bar aberto; indignações várias sobre o estado a que isto chegou; piscares de olho populistas até à caimbrã na pálpebra; gritaria a esmo para a fotografia. Ideias claras sobre o papel da presidência nos próximos cinco anos de política, essas é que foram quase nenhumas.

Também é verdade que o cenário não se proporcionava a grandes debates, uma vez que um dos candidatos, Marcelo Rebelo de Sousa, partiu com tanta vantagem nas sondagens que espantou a caça mais grossa, sobrando apenas bicharada de pequeno porte e alguma ave de arribação. De repente, este processo eleitoral parece um jogo de futebol em que o Barcelona, trazendo já um resultado de 50-0 da primeira mão, entrasse em campo ao mesmo tempo contra nove equipas das nossas distritais, do tipo ACD Penedo Gordo, Atlético Angústias, S. Cassurães ou Nespereira FC (sim, existem e jogam à bola). Apesar de um lado estarem onze jogadores e do outro noventa e nove, estes últimos pareceriam tão toscos que toda a gente apostaria que o Barcelona, só com o Messi, o Neymar e o Suarez na frente e o Mascherano a dar sarrafo do grosso lá atrás chegava para eles à vontade.

Claro que um jogo destes, com cento e dez futebolistas em campo, só se pode tornar a maior das confusões. Os noventa e nove chutam para onde estão virados, acertam uns nos outros, aleijam-se mutuamente, não conseguem um remate à baliza. Ainda por cima Marcelo adoptou uma táctica defensiva que, prolongando a nossa metáfora futebolística, seria como se o Barcelona, para defender a vantagem, em vez de atacar ou esconder o esférico, decidisse jogar no sentido da sua próprio baliza, rematando a razar o poste só que do lado de fora. O objectivo será duplo: não deixar os adversários terem posse de bola e confundir o público adepto destes, na esperança de captar ainda mais sócios entre as claques adversárias.

Toda a cegarrega mediática à volta das presidenciais resultou numa enorme pobreza política. Vai daí o exército de comentadores, analistas e politólogos que acompanham o processo eleitoral não se cansou de desancar os candidatos por serem os pobres que são e os partidos políticos por não terem ninguém melhor para propor. Todos são unânimes em considerar que a mais larga oferta em termos de número trouxe consigo a pior em termos de qualidade, e todos adiantam causas, multiplicam explicações, reviram todos os ângulos. Todos os ângulos menos um.  

Apesar de tanto escalpelo pelo ar a dissecar a massa morta dos candidatos, houve um vector de pesquisa que nenhuma análise procurou: nas eleições vota-se e quem vota são votantes. Saber que votantes somos certamente é relevante para entender a amostra de concorrentes que nos coube em rifa. Como compreender estes candidatos à luz destes eleitores que somos todos nós? Será que a pouca política que vemos é meramente um reflexo da pouca política que somos? Será que com outros eleitores, outros seriam os que se chegavam à frente para sentar no cadeirão de Belém?


 Este é um estudo que lamentavelmente ficou por fazer e Mataspeak, ciente da sua responsabilidade social, vem agora preencher esta lacuna. A técnica analítica utilizada é livremente inspirada (ou mesmo descaradamente gamada) do histórico texto de Miguel Esteves Cardoso “Coque o roca, identifique o frique”, publicado no semanário “O jornal” em 1980, em que MEC descrevia em tom de catálogo sociológico a “fauna musical lusitana”.  


Aqui vai pois uma taxonomia da maralha que, com igual probabilidade, ou irá hoje às urnas ou ficará em casa a saciar as urticárias.


Reaça (“Dextrus inalternativus”)

Espécie relativamente frequente em Portugal, onde varre vários extractos sociais, desde um novo proletariado engravatado e contente com o seu Android e o novo Seat León às famílias mais tradicionais que aparecem na Caras na página a seguir ao Toni Carreira e às boas das novelas da TVI. Herdou parte substancial de uma direita extrema que marinava no salazarismo, educada no horror à política, e que se viu de repente e contra-naturalmente num regime democrático. Os valores fundamentais do reaça são o imobilismo, a que chama estabilidade, e o temor do contraditório, a que chama seriedade. Para o reaça, o político sério é aquele que flutua acima da algazarra da política e que justamente por isso não é político. O seu modelo de bom político é algo intermédio entre Salazar antes de cair da cadeira no forte de Santo António do Estoril e Cavaco Silva antes de cair na cadeira do palácio de Belém. Tende a ser conservador e severo nos costumes, especialmente quando se trata dos filhos dos outros. Afirma-se de direita, mas sente bastante suspeita e confusão tanto com a costela social das democracias-cristãs tradicionais europeias como com a componente de responsabilidade individual dos conservadores e liberais anglo-saxónicos. Recentemente, a cartilha do reaça português tem plasmado a do seu primo reaça europeu, que se resume basicamente a dizer que não há alternativa à austeridade e à socialização da falha do sistema financeiro e pronto. Uma confusão perigosa entre contexto e estrutura que no passado custou lugar e pescoço a bem mais do que um líder. Curiosamente, recentes achados paleontológicos apontam para a existência na cadeia evolucionária de um antepassado comum entre o reaça, o caviar e o nhurro (vide descrição mais adiante).


Caviar (“Blocus superioris”)

Outra espécie muito frequente em Portugal, cingindo-se mais a uma burguesia urbana entre as classes média-baixa e média-alta, onde predomina. O epíteto “caviar” reduz o conceito de “esquerda caviar”, entendo-se por tal aquela esquerda que se acha de esquerda mas não quer cá ser confundida com a malta operária e campesina que andas por aquelas fábricas feíssimas cheias de óleo e mora naquelas casas pirosíssimas com couve-galega no quintal e vai aquelas tabernas sujíssimas a cheirar a vinho de pipo, um horror! O caviar acha-se pois de esquerda, mas à maneira. O ideário político do caviar não complica muito e tem-se até simplificado. Basicamente o caviar considera-se generoso e socialmente preocupado e angustia-se muito por viver numa sociedade povoada de seres inferiores como lobisomens e “orks”, colectivamente apelidados de “direita”, que não partilham da mesma grandeza de alma e que se preocupam com minudências como a suficiência do dinheiro. Diante de tal inumanidade, o caviar saca de um argumento jurídico (a inalienabilidade dos direitos que dão jeito) e de um insulto que julga definitivo (“isso é um argumento economicista”). Ao caviar parece de mau tom fazer-se contas porque há valores superiores aos económicos e porque há uma coisa chamada Estado onde se pode ir buscar o cacau que se quiser, haja vontade. Para o caviar, a vida é um problema de programação linear só com a função de maximização e sem as restrições. Qualquer versado em matemáticas sabe que este problema não tem solução que não seja um consumo infinito de recursos, detalhe que o caviar apouca. Para se entreter, o caviar adora causas, especialmente ambientais ou fracturantes em termos de moral sexual, e faz delas modas. Para defender as tais modas, o caviar inventou uma forma de limitação da liberdade de pensar chamada politicamente correcto. Como a maior parte dos jornalistas são caviares, facilmente o politicamente correcto se tornou a novilíngua da nação. Para além disto, o caviar sente-se intelectual e gosta muito de artistas - mas talvez não tanto de arte.


Nhurro (“Nhurrus moralensis”)

Espécie muito numerosa no nosso país, o nhurro tem como “habitat” preferencial a baixa classe média, mas possui ramificações bem estabelecidas em todo o tecido social. A teoria política do nhurro revela grande simplicidade: “são todos corruptos”. O omisso sujeito desta oração é um “eles” que engloba os políticos, os banqueiros, os empresários, os funcionários públicos, os polícias, qualquer tipo que use gravata no trabalho e qualquer outro que no momento dê jeito. Tal como no protestantismo e no islamismo sunita, não precisam de intermediários para deduzir a verdade e a sua autoridade filosófica é epigenética: “eu sei muito bem o que é que esses gajos andam a fazer” e “a mim não me enganam os gajos” são frases com que dão um carimbo de autoridade às suas dissertações político-sociais. Sabem falar sobre qualquer assunto e, pior, falam mesmo. À falta de ouvintes vão dissertar assim que o chefe no trabalho vira costas para as caixas de comentários dos jornais “on-line”, onde assinam com pseudónimos corajosos como “zéáguia”, “tãlindakés” ou “anónimo”. O nhurro mais empedernido milita no Benfica e conduz um carro bege ou preto com capota verde. Como há muitos nhurros em Portugal, todos os candidatos eleitorais tendem a catrapiscar o seu voto com afirmações que fazem corar de embaraço qualquer ouvinte com mais de 6 ou 7 de Q.I. Nestas eleições os nhurros contam com um candidato de bandeira, Paulo Morais, que seria o nhurro arquétipo se por acaso conduzisse carros de praça.


Jotinha (“Jotus acefalus”)

Embora muitos nem militem formalmente em partidos ou nas suas juventudes, a designação de “jotinha” encaixa bem naqueles que têm por um determinado partido (sempre o mesmo) a mesma devoção que um adulto saudável, evoluído e bem formado nutre pelo Sporting Clube de Portugal: tudo se justifica, tudo se desculpa. Não têm por isso qualquer capacidade crítica em relação ao partido de sua eleição, que é sempre “muita” bom, nem em relação aos outros partidos, onde são todos ineptos, mefistofélicos e, claro, corruptos. Votam toda a vida no mesmo. Veneram como a santos e profetas figuras ancestrais como Soares, Sá Carneiro, Cunhal e... Portas, consoante o sítio. Os jotinhas encartados vagueiam por uns “habitats” misteriosos chamados concelhias e distritais que só certos jornalistas especializados em temas desinteressantes, como a Anabela Neves da SIC, parecem conhecer com grande detalhe. O jotinha puro e duro, que começa nas juventudes e faz o percurso todo pelo complexo público-partidário, será com muita probabilidade um cepo, mas como prémio de consolação pode chegar a primeiro-ministro.


Enredado (“Facebucus medianus”)

Versão digitalizada do nhurro, constrói a sua visão do mundo a partir do que vai pingando nas hoje omniscientes redes sociais, em particular no mural do seu Facebook. Consequentemente as suas ideias políticas, tal como no Twitter, não precisam de mais de cento e quarenta caracteres para se escrever. Tende a dizer que gosta de uma coisa e do seu contrário em menos de cinco minutos em função do que a mole de amigos vai publicando – no mundo lindo do Zuckerberg é proibido não gostar. Estatisticamente acaba por achar que os políticos são todos corruptos, afirmação que é o menor denominador comum entre amigos reaças e caviares que postam no Facebook.


Moderado (“Extremus centris”)

Forma amalgamada e apoucopada do reaça e do caviar, ora pende para um lado, ora pende para o outro. Espécie numerosa mas discreta como o morcego, só sai da sua caverna em dia de eleições, voando em bando e decidindo o resultado eleitoral. O moderado é um ser timorato que não quer cá confusões e escolhe sempre como opinião o justo meio aristotélico. Não gosta de se manifestar e diante de um inquérito coloca sempre a cruz na casa do meio. Herdou do reaça a aversão ao debate político e do caviar a pretensão de superioridade moral. Pertence à classe média-média, tem em média quarenta anos, estudou catorze anos em média, gerou em média dois filhos recorrendo a uma média de uma relação semanal mediamente satisfatória com uma cara-metade ela própria moderada. Em média.


Pêcê (“Cassetis preberlinensis”)

Espécie outrora de grande presença desde os extractos mais desfavorecidos até à classe média-alta, tem sofrido grande erosão no número e visto os seus “habitats” ocupados por sucessivas vagas de caviares. É uma espécie com os sentidos pouco alerta, o que faz que ainda não tenha percebido que o mundo que Marx analisou no século XIX já mudou - só um bocadinho, mas já mudou. Mantém ainda uma população residual, já idosa, em certos territórios bem definidos: Alentejo profundo e volante dos transportes públicos. O envelhecimento natural e a terciarização que leva a que os jovens prefiram as temáticas e as miúdas caviares colocam um problema sério de extinção, como já ocorreu noutros países da Europa. Este processo de desaparecimento acelera-se de cada vez que um dirigente pêcê abre a boca sobre a Coreia do Norte. Contrariamente ao reaça e ao caviar, que só vêem o curto prazo, o pêcê trabalha para o muito longo prazo, o tal sobre o qual Keynes dizia que nele estaremos todos mortos.


Verde (“Quercus manientus”)

Versão especializada do caviar, dirige toda a sua atenção política para temas ditos ambientais mas que normalmente não têm nada a ver com ecologia: condições de habitabilidade dos canis, fim da tourada, a existência sequer dessa coisa feia que é a indústria, circulação de carros velhos com donos velhos. Gastam 200 MWh de energias várias para poupar 1 kWh de electricidade. Dão conselhos sobre tudo e sobre nada com ar severo de avó severa diante de netos estúpidos. Informam-se sobre o fundo dos temas ambientais no Facebook, mais acessível e menos trabalhoso que aqueles artigos e livros com fórmulas e gráficos horrorosos. Quando em bando, vestem calças de pano-cru às riscas coloridas compradas nas feiras ciganas e atacam quintas de velhotes que por lapso plantaram sementes de milho transgénico. Em versões mais radicais, tendem a achar essa coisa das vacinas um enviesamento da selecção natural injusto e cruel para os vírus. Admiram-se depois quando uma criança não-vacinada morre com uma daquelas doenças que só apareciam nos filmes neo-realistas que viram na Cinemateca.


Cópista (“Copus noctivagus”)

Não se deve confundir esta espécie, adepta dos copos, com o copista medieval que pacientemente e com a dedicação de uma vida reproduzia e iluminava com igual preceito livros de horas e tratados de astronomia árabe. O cópista contemporâneo quer paródia e vinho do verde e está-se nas tintas para a política. O programa político do cópista resume-se a uma abstenção militante, até porque as urnas não abrem à noite. Grande parte dos jovens votantes pertence a esta espécie, especialmente se na fase universitária das suas vidas.


Democrata (“Democratis basicus”)

Espécie raríssima em Portugal. O democrata defende concepções estranhas, como o debate ser útil e a diferença de ideias ser por si só fértil, como todos termos corresponsabilidade nas políticas levadas a cabo pelos políticos que elegemos ou como achar que o tipo que pensa diferente de nós não é obrigatoriamente um total cretino e provável corrupto. Bizarrias que fazem do democrata uma espécie de ornitorrinco do biótipo eleitoral português e um bicho seriamente ameaçado de extinção.


Liberal (“Torius britannicus”)

Espécie frequente no norte da Europa e no continente americano, cuja existência nunca foi confirmada em Portugal, apesar de certa imprensa asseverar que existe e relatar avistamentos periódicos. No entanto, uma análise mais aprofundada dos casos assinalados constatou que aqueles que em Portugal se reclamam do liberalismo quando a coisa aperta pedem logo a ajuda do Estado. São pois meros reaças com um pelo um bocadinho mais lustroso, sem mais.



À guisa de sumário: se calhar, com um panorama sobre a população votante tão pouco animador, não espanta que o leque de candidatos nos faça suspirar pelo dia em que finalmente Manuel João Vieira concorra a sério. O eleitorado encontra-se enfeudado ou a partidos ou a ideias feitas e vetustas. Lê e estuda pouco. Vê a ideia diferente como uma desfeita e não como uma oportunidade. Discute muito o acessório e pouco o essencial. E os candidatos fazem-lhe a vontade.

Escrito este arrazoado, concluída a conclusão, vou ali à secção sete colocar a minha cruzinha, ainda não sei bem em quem.