domingo, outubro 11, 2015

Mil e uma noites



Este texto podia começar assim: “Querido rei, era uma vez um país... Um país onde grassava uma terrível epidemia que dizimava a população outrora feliz. Os mais velhos caiam vergados à peste, os mais novos fugiam para outros reinos para não sofrer o mesmo destino, só os nobres, resguardados nos seus palácios, pareciam ao abrigo. Incrédulos com a amplitude da maleita, os habitantes não percebiam: uns opinavam que a doença viera de fora, que os atingira como a muitos outros reinos e que espiões e esbirros traidores ao serviço do Imperador haviam envenenado a água com peçonha para melhor calcarem os povos do império; outros insistiam que não, que a praga sempre cá estivera e que fora a vida dissoluta do povo que diminuíra as defesas das pessoas permitindo ao micróbio corroer os corpos e exasperar as mentes. O mal tomou tais proporções que vieram médicos enviados pelo Imperador, que receitaram remédios amargos e duras dietas. A gente queixava-se da doença e queixava-se da cura. Não havia consenso. Um terço da população clamava contra o doutor estrangeiro, o estranho que trouxera o vírus. Outro terço insultava esse terço, que, dizia, vivia sem emenda uma vida que só podia dar naquilo. E o outro terço olhava sem saber que dizer para os outros dois terços vociferando um contra o outro.

Certo dia, cartazes pelas ruas e arautos nas praças anunciaram um espectáculo inovador. Um artista magnífico vinha cantar as dores do povo. Trazia rasgados elogios dos sítios por onde passara. Pela sua poesia, as pessoas olhariam finalmente para a sua realidade e compreenderiam. Nos albergues e tabernas, os entendidos explicavam aos basbaques a melodia da voz, a harmonia da rima e a profundidade da metáfora. Caída a noite, o principal largo da capital encheu-se para ouvir o cantor. O povo ouviu, ouviu aplaudir e aplaudiu também, ao princípio timidamente, depois arrebatado. No final, todos comentavam o grande sucesso. Só um homem destoava do consenso geral e não percebia tanta unanimidade. Na sua opinião, a voz era pífia, a rima coxa e a metáfora inexistente, substituída que estava por umas piadolas ao pior gosto. Esse homem usava pala, porque perdera um olho numa batalha. Era o rei do atormentado país.”

Esse homem podia ser eu, apesar de só ser rei de um apartamento em Campolide. A verdade é que podia ter sido quase a obrigação patriótica a levar-me a entrar pela primeira vez no cinema Ideal, na rua do Loreto, para ver o episódio um da trilogia “As 1001 noites”, do realizador português Miguel Gomes. A tripla fita tem recebido prémios e honrarias diversas no circuito internacional de festivais. A crítica nacional e estrangeira não poupa na loa, encomiasta e até extática: ele é Economist, ele é Cahiers du Cinéma, mais jornais americanos, a francesada do costume, toda a roda enfim de cadernos de fim-de-semana da imprensa que por cá se diz e tem por séria.  Como corolário desta unanimidade acabou nomeada para representar Portugal nos Óscares. 


Mas não foi este forrobodó elegíaco que me levou naquele domingo, patroa pelo braço, até à sala do Chiado. Sei do que a casa gasta: há suplementos culturais para encher e vaidades para cutucar, pelo que ligo pouco e sempre muito prudentemente ao que se diz. Determinante na minha decisão de ida foi o facto de uma amiga muito estimada ter trabalhado no filme. O nome de uma amiga nossa no elenco que desliza a grande velocidade enquanto os espectadores abandonam a sala cria uma relação de proximidade com o objecto, feita de ónus afectivo e cerimónia. Ficamos compelidos a não faltar tal como não faltamos a aniversários, casamentos e baptizados mesmo que a cabeça nos doa ou seja para lá de Foz Coa. À toa destes sentimentos, lá fui.

Fui e saí com um problema. Dado o trabalho que a minha amiga empenhou na produção do filme, dado o carinho que sei que nutre pelo resultado final, como vou poder dizer o que penso sem causar excessivo melindre? Talvez com alguma franqueza: “olha minha querida I, a culpa não será tua mas o filme é bastante mau, pelo menos o primeiro da trilogia que os outros ainda não vi”. De facto aquilo é fraquinho e achei um dos episódios, intitulado “Homens de pau feito”, do mais medíocre que vi em cinema desde uma cena no “Armagedeão” em que um Bruce Willis todo esgatanhado trava, com esgares faciais, patriotismo peganhento e força de braços, um meteorito grandalhão que ameaçava pulverizar a Terra. Algo do género.

“1001 noites” anuncia-se como um olhar sobre o Portugal intervencionado pela “troika”. A estrutura é de uma sucessão de episódios, em teoria contados pela Xerazade de umas quaisquer mil-e-uma-noites, referindo-se a um certo país que é o nosso. Na crítica tem-se feito um festival à volta deste recurso narrativo como se fosse a descoberta da perspectiva, o que só não me surpreende porque tal como o próprio filme testemunha em Portugal a tendência para o foguetório é grande. O recurso é este como podia ser outro qualquer, os contos de Grimm ou as fábulas de La Fontaine, e está lá para permitir um toque às vezes fantasioso, às vezes surrealista aos episódios, mas a oscilação entre estes registos e o realismo documental pareceu-me francamente desequilibrada.   Verdade que quem sou eu para estar aqui com estes papos, mas também não é por aqui que o filme mais afocinha.

O primeiro episódio narrado pela nossa Xerazade alfacinha, o tal “Homens de pau feito”, conta-nos o encontro numa tasca manhosa entre o pessoal da “troika” e o lado português, representado por um primeiro-ministro e uma ministra das Finanças engomadinhos e um sindicalista que passa o episódio a dizer palavrões. Parece-me que o realizador nos oferece este palavreado para por um lado tipificar a personagem (genuína, “do povo”, diz palavrões) e por outro para criar um registo cómico (riam-se todos que ele disse “porra”). Só que..


(Parêntese 1: O palavrão

Mais ou menos de duzentos em duzentos anos há um terramoto de grande dimensão em Lisboa. E mais ou menos de duzentos em duzentos anos, acontecimento tão telúrico como o embate de placas tectónicas, nasce em Portugal um autor de envergadura capaz de utilizar o palavrão com graça.Tivemos Gil Vicente, dois séculos, Bocage, dois séculos, Manuel João Vieira agora e possivelmente mais dois séculos escoarão até que venha o próximo, porque a arte do palavrão é das mais difíceis. Acompanhando estes generais, tivemos alguns bons lugar-tenentes, como Lobo de Carvalho, o abade de Jazente, o recentemente falecido Vilhena e o anónimo autor de "O meu pipi". E ainda o meu prezado amigo VM, a quem qualquer palavra acabada em alho dirigida ao parceiro de jogo sai daquele vozeirão com as mesmas subtis graça e pertinência de um remoque de Churchill.

Como a arte do palavrão é difícil, o uso do palavrão em arte difícil é, e portanto o autor prudente não se aventura. Eça tem, que eu me lembre, um palavrão em toda a sua obra, uma "sorte de cabrão" desabafada em "Os Maias". A melhor literatura vive desafogadamente sem ele: não quero garantir, mas não me recordo de qualquer alarvidade em Tolstoi, Proust, Borges, Mann, Camus, só para citar alguns que jogam no primeiro time. Mesmo nos mais contemporâneos, prefiro por cá a continência de um Cardoso Pires ao desbragamento de um Lobo Antunes. Um romance é um quadro, não uma fotografia de repórter. Não precisa de ter nele toda a bruta realidade, a menos que sirva o propósito e se saiba geri-la. Para dar o tom ambiente, o mais das vezes um plebeísmo chega.

Quando ouvi o personagem do sindicalista soltar o seu chorrilho de sessenta segundos de palavras com hífen e referências à mãe perguntei a mim próprio que m... Que coisa seria aquela. Duas ou três velhotas na fila de trás soltaram um risinho nervoso. Tinham idade para ser daquelas gerações ancestrais, de tempos mais cerrados, quando qualquer historieta que metesse puns passava por boa anedota. Não percebi se se tratava de uma tentativa de recurso humorístico ou se a narrativa pretendia fazer-nos notar que aquele senhor pertencia ao bom povinho. Dada a visão de esguelha que o filme tem sobre o povo, até podiam ser as duas.)


Fechado este parêntese, regressemos ao país intervencionado pela “troika”, visto através da óptica de Miguel Gomes, e ao tal primeiro episódio. 

A intervenção da “troika” será o acontecimento mais traumático da nossa história colectiva no presente regime. Constituiu uma perda de facto da nossa independência, um anti-clímax para o ego nacional após a bebedeira do euro barato e do crédito fácil, da Expo 98 e do Euro 2004, um desbaratar cruel e infame da nossa melhor juventude, um regresso à menoridade europeia depois de mais uma vez nos termos julgado no centro do mundo. E, ao mesmo tempo que parece um evento singular, sente-se como uma recorrência, a mera consequência de uma alarvidade que nos está colectivamente no sangue desde o tempo da ingovernabilidade dos lusitanos e que regressa como um sismo, a cada dez ou cinquenta anos, para abalar o chão debaixo dos nossos pés. 

Que reflexão nos traz o realizador Miguel Gomes sobre isto? Que aprendemos sobre o contexto, as causas, as culpas, as lições de um dos mais dramáticos acontecimentos da nossa história recente? Que faceta de um assunto tão complexo escolhe para nos mostrar? Não vos vou contar detalhes para não vos estragar o filme (embora não haja muito para estragar), mas sempre vos adianto que o tal episódio dos “homens de pau feito” sugere que o cerne do nosso problema está na falta de robustez sexual dos nossos governantes e dos homens da “troika”, estes últimos com a carga acrescida de terem sido gozados na escola quando eram pequenos. Portanto a magna tese política é esta, de que somos vítimas de uns frustrados com carências de rigidez.


(Parêntese 2: Só para respirar um bocadinho, para acalmar)


É só a mim que isto parece pouco? Não há mais nada para dizer? Falta de pila? A sério? Houve aqui alguma vaga tentativa de reflexão política ou filosófica ou ética ou social ou económica ou qualquer coisa? Ou é meramente o grau zero de tudo, a imagem acabada de uma preguiça em fazer bem que tem a sua parte de culpa em termos chegado a esta situação? Se alguma metáfora há neste episódio é justamente essa, e involuntária: a falta de empenho do cineasta em puxar pela cabeça e fazer bem feito espelha aquela falta de seriedade política que nos levou a este assado.

Já que estamos falando de cinema, compare-se com a policromia com que os norte-americanos abordaram um acontecimento traumático deles: a guerra do Vietname. Vejamos o que nos trouxeram John Wayne, Elia Kazan, Michael Cimino, Francis Ford Coppola, Milos Forman, Oliver Stone, Stanley Kubrick ou Barry Levinson, entre dezenas de outros. Filmaram várias perspectivas sobre o tema: a do patriota, a do soldado eternamente marcado na mente ou no corpo, a do jovem que não quer ir, a do homem totalmente lúcido que percebe o absurdo e a do homem que desce aos infernos para se encontrar com ele e cumprir esse absurdo, a do companheiro de armas, a política, até a lúdica. Nenhum deles se reduziu ao mínimo, todos procuraram trazer algo e olhar mais além. Claro que estes nomes tiveram grandes meios, mas não foi por aí porque um grande filme nunca depende de meios, depende da inteligência que se acomete.

A título de contra-exemplo, existe felizmente muita boa obra em Portugal sobre a “troika”, só que escrita antes da “troika” cá ter vindo. Eça tem um curto e belíssimo conto chamado “A catástrofe” que relata o ambiente numa Lisboa submetida a uma imaginária invasão externa. Nesse conto, o narrador desenvolve os sentimentos que lhe vêm ao olhar da sua janela no Largo do Pelourinho para uma sentinela estrangeira que guarda o Arsenal. No final do conto, diz-nos esse narrador:

“Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a sentinela! Mostro-lha, passando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...

Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta janela, vejam , sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e sendo pequenos pelo território ser grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.”

Não será certamente a única, nem será sequer a minha, mas é pelo menos uma perspectiva, e com a riqueza que falta às larachas sobre molezas inoportunas.


(Parêntese 3 – O frenesim

Independentemente de perceber as razões comerciais e de satisfação dos egos que concorrem no frenesim mediático à volta do filme, admira-me um pouco que não haja qualquer tentativa de crítica, mesmo que ténue. Li duas entrevistas com o realizador do filme e as perguntas perguntam pouco pelo que as respostas não respondem muito. Há bajulação e auto-satisfação, “qb”, e nenhuma interrogação que vá à canela. Depois este ambiente repercute-se pelas curtas das páginas culturais, pelas rodas de copos e pela atmosfera de miasma das redes sociais, num jogo de espelhos em que nunca se salta para o outro lado do espelho, em que nunca se parte algum vidro para olhar para os cacos e interrogar o que eles ocultavam.) 


Mal começados com este primeiro episódio, entramos numa sucessão de histórias que se passam num Portugal rural e operário e genericamente lá das berças. A abordagem é documental, garatujada aqui ali por umas pinceladas surrealistas. Aqui, sofro nova irritação porque a perspectiva é sobretudo a do olhar sobre o castiço. O castiço é a imagem, vista de cima para baixo, que o lisboeta com aspirações a intelectual, que frequenta o Bairro, tem do povo. É uma praga que permeia também o jornalismo português, que assim que tira o carro de reportagem da autoestrada corre de microfone ansioso à procura da pronúncia beirã. É uma perspectiva soberba e sobretudo muito pouco carinhosa para com os visados. Trazem-se uns pategos para diante da lente para fazer sorrir os intelectuais do subúrbio, que inconscientemente se sentirão aliviados das suas culpas com o estado da nação: com um país profundo destes, que é que eles poderiam fazer?

Já citei aqui no blogue uma notável frase de Doisneau sobre o mais profícuo modo como a arte pode olhar para os mais desfavorecidos. Dizia ele que os rostos dos que madrugam são muito comoventes. Esta comoção, este movimento conjunto, é algo que não encontro de todo neste filme. Esbarrei sempre numa capa de sobranceria que me impediu de aceder aquela gente e ao que ela nos tinha para dizer sobre o drama que a tantos caíu em cima. Faltou ali já não digo amor mas pelo menos respeito, o respeito de Rossellini, de Mizoguchi, de Huston ou de Tati, o respeito com que Caravaggio ia buscar prostitutas e camponeses para os pintar como virgens marias ou santos de altar nunca mascarando  os traços que os revelavam, para escândalo dos patronos. O respeito não é ir beber minis com os “populares” a uma associação recreativa de um bairro degradado. O respeito é respeito, só isso.

Pergunta-me a I: mas não achaste comovente as entrevistas às pessoas que sofreram? Achei algumas, em particular a do pequeno empresário que tudo perde, porque a história dele comove e ele é sincero a contá-la. Mas esse mérito foi das lentes da câmara, que não distorceram o que viram. Ao contrário, sempre que entrámos na perspectiva do realizador, sempre que ele colocou o filtro da sua arte na ponta da objectiva, esse filtro tapou em vez de sugerir, revelar ou amplificar. Aí deixei de ver as pessoas e a sua dor.


Porquê? Para além da já referida atitude, Miguel Gomes tem uma dificuldade que me parece óbvia com a metáfora. A boa metáfora é simultaneamente subtil e evidente, e serve um propósito. Ao revés, neste filme há metáforas evidentes sem subtileza (a fuga a correr do realizador no início do filme, ridícula) e metáforas tão subtis, tão subtis que de evidentes nada têm, até para o próprio Miguel Gomes. Diz Gomes numa entrevista que a cena da explosão da baleia que deu à praia é uma metáfora, só que não sabe de quê. Pois. Aí reside o problema: uma baleia a rebentar é espectacular, podia até ser um vídeo do Youtube cheio de visionamentos, mas que propósito serve neste filme? Se ele não sabe, quem sou eu para saber?

Enfim, este queixume já vai longo por isso concluo dizendo que no sucesso de “1001 noites” deslindam-se afinal as raízes do insucesso que nos levou ao jugo da “troika”: muita fanfarra, alguma farra, pouca garra. Será esse o seu mérito.

Como te prometi, querida I, irei ver os episódios dois e três, à espera do milagre. Mas por enquanto ficas-me a dever seis euros.