sábado, maio 16, 2015

Exposição fotográfica (XLVII)

Grande Prémio de Espanha 2015

 Filipe Massa em Williams, terminando os treinos de sexta

 Pastor Maldonado em Lotus nos treinos de sexta

"Stand" da McLaren

 "Motorhome" da McLaren

 Preparando o Sauber de Felipe Nasr

Lotus atestado

 "Stand" da Red Bull

"Stand" da Williams

 "Stand" da Red Bull

 Pré-aquecendo pneus na Sauber

 As meninas das bandeiras recebendo instruções

 "Motorhome" da Ferrari

  "Motorhome" da Toro Rosso

Sebastian Vettel (Ferrari)

 Anunciada a volta de preparação

 Nico Rosberg em Mercedes na frente da largada

 Gestão da corrida na Ferrari

Nico Rosberg em Mercedes liderando a corrida

Europa 15



Aproveitando mais uma atilada iniciativa da Medeia Filmes, durante um mês desloquei-me várias vezes ao Nimas, território cinematográfico livre de pipocas, para ver no sítio certo uma dezena de filmes de Roberto Rossellini.

Assistir em tão curto espaço de tempo a tantos filmes do mesmo autor permite-nos aceder a uma compreensão superior à do visionamento de cada fita por si, exactamente como na pintura: não é o mesmo admirar um quadro isolado ou percorrer uma retrospectiva do pintor. No primeiro caso limitamo-nos à peça e no segundo chegamos à obra, com o correspondente acréscimo de clareza e complexidade. Com alguma sorte, com a obra vislumbraremos até o homem ou a mulher que espreita de trás dela. É outra riqueza, convenhamos.

Assim aconteceu comigo nesta mostra de Rossellini. Antes, quando o único filme que vira dele fora o “Roma cidade aberta”, eu diria que ele era um cineasta neo-realista italiano do pós-guerra. Hoje, vinte horas de preto-e-branco depois, Rossellini já só é um cineasta, por sinal bem bom. A anterior descrição que eu dele fazia parece-me agora tosca e redutora. Claro que navegou a vaga neo-realista, como se pode constatar nas passagens quase documentais (como a belíssima e agreste cena de pesca do atum em “Stromboli” ou as de devoção popular em “Viagem em Itália” e em “A máquina de matar pessoas más”), na utilização de actores não-profissionais interpretando-se no fundo a si próprios e na inquietude com as classes mais desfavorecidas da sociedade. Mas não mostra a carga ideológica de um Sica ou de um Visconti e do conjunto da obra percebe-se que são outras as perguntas que o perturbam e as respostas que lhe ocorrem. Ademais, sendo indubitavelmente italiano na alma, Rossellini é um cosmopolita e não procura só uma visão local. A sua câmara percorre outros sítios como a Alemanha, primeiro destruída em “Alemanha ano zero” e depois a erguer-se renovada dos escombros em “O medo”. A sua reflexão sobre o que no íntimo lhe interessa resulta muitas vezes do olhar de personagens (e actores) estrangeiros sobre a Itália profunda e o choque que daí resulta. Assim é em “Paisá – Libertação”, “Stromboli”, “Europa 51” e “Viagem em Itália”, um razoável núcleo duro da sua obra. Finalmente, tendo vivido e filmado no pós-guerra, por vezes com um ano apenas de intervalo para os acontecimentos que o inspiraram, a sua reflexão continua tão actual que seria quase castrante deixá-lo encaixado numa determinada época. Rossellini é intemporal e universal, muito mais do que “italiano do pós-guerra”, e como todos os grandes pode ajudar-nos a entender as agruras do nosso mundo presente.

Há um conjunto de temas que interessam a Rossellini e que ele filma. Alguns poderão ter uma origem mais íntima, como o amor e a traição entre homem e mulher (foi casado – ou próximo disso – cinco vezes e o duplo adultério com que começou a sua relação com Ingrid Bergman causou grande escândalo à época) ou o sofrimento e a solidão das crianças (perdeu um filho pequeno e terá sofrido o consequente sentimento de culpa). Outros são mais conceptuais, como os três choques que atravessam muita da sua obra e que em Rossellini ocorrem por regra em simultâneo: entre modernidade e tradição, entre a visão da “elite” e a do “povo” e entre a frieza norte-europeia e a latinidade sul-europeia – quase que poderíamos dizer entre a predestinação protestante e o livre-arbítrio católico. Esta referência ao catolicismo justifica-se tanto mais que muitos conceitos que estão no imo da religião católica são centrais no cinema de Rossellini: “Viagem em Itália” é a história de um milagre, “Europa 51” mostra-nos uma santa diante dos ímpios, “Stromboli” pode ser um conto de tentação e redenção, a Francesca de “Paisá” vive a mesma iluminação que Maria Madalena, a Nanni de “O amor” representa a inocência por oposição ao pecado e o Celestino de “A máquina de matar pessoas más” debate-se com a sua incapacidade de juízo final, porque é simplesmente um homem e não Deus.

Rossellini não era um homem religioso, mas sentia-se encantado por uma certa pureza da religiosidade – encantamento que muito se nota nos seus filmes. Admirava a ética do ensinamento católico e valorizava o efeito positivo dos valores cristãos num mundo moderno. Nisto, sinto-me próximo dele. Apesar de ateu, vivo como meus muitos valores que acarto de pequeno, que me apareceram em casa, pela rua, numa leitura, talvez até nos meus cinco anos da catequese e que culturalmente associamos ao Cristo do Novo Testamento. Interessam-me hoje questões como o perdão, o bem e o mal, a essência e a aparência, o livre arbítrio e nesse bom livro (com simples letra minúscula) encontrei sobre tudo isto alguma matéria sobre a qual pensar. E também concordo com Rossellini que alguma da ética dita católica poderia neste mundo meu contemporâneo, tão maquilhado, todo de superficialidades, dar jeito em substituição da não-ética ou da microética que reverbera através das fibras ópticas e das redes “wireless”. Sinto-me um católico sem Deus ou um ateu cristão ou coisa que o valha.


Mas voltemos ao triplo choque entre modernidade e tradição, entre “elite” e “povo” e entre a frieza norte-europeia e a latinidade sul-europeia, que acima mencionei. Que nos traz Rossellini? Que lições podemos retirar para o filme em que estamos todos malfadadamente metidos, o “Europa 15”, uma história melancólica de regressão política, económica, social e ética, com novas derivas totalitárias, novos proletariados, novas hipocrisias, novos ódios, novas inequidades, novos mas não tão diferentes dos velhos que prenunciaram as tragédia da Europa do século que ele filma?

Rossellini aborda as dicotomias que referi de fora para dentro do povo (o que podemos interpretar como uma viagem do acessório ao essencial, ou do erro à verdade). Começa com a perspectiva do estrangeiro: do soldado americano em terras derrotadas, da família de classe alta horrorizada com as pretensões e o contacto da plebe, do inglês perplexo com os maus hábitos napolitanos, da mulher educada caída no meio do machismo ignorante. Rossellini filma o povo sem filtros, de forma realista: uma massa que grita, que se aglomera em bairros miseráveis, de lata ou pendurados nas escarpas sorrentinas, que se reproduz a taxas terceiro-mundistas, que se dilui endomingada e alienada num dia de procissão, de mulheres submissas aos maridos ou caídas na vida, mas nunca livres, de homens animalescos e misóginos e também nada livres. As pessoas parecem formigas após uma pisadela no carreiro, correndo pela vida quando passa um cardume ou um vulcão acorda. Sobre esta amálgama, a visão da “elite” oscila entre o divertido, o enfadado e o horrorizado, mas é sempre uma visão de classe sobre um outro diferente e inferior.

No entanto, à medida que as narrativas fluem, Rossellini vai equilibrando o encontro. Primeiro, porque a superioridade dos modernos, da elite, dos nórdicos, não impede a existência de um vazio nas suas vidas. E esse vazio, primeiro adivinhado, depois visível, vai crescendo e começa a ocupar o espaço central do filme. Aí, numa segunda fase, Rossellini arranja maneira de o contraste com a tradição, o povo ou a latinidade levar à “vitória” destas e criar as condições de superação desse vazio. Fá-lo de formas diversas: pelo sentido trágico do destino, em “Stromboli”, com um inesperado milagre em “Viagem a Itália”, com uma sublimação em “Europa 51”, pela revelação, mais de uma vez, em “Paisá”.


Ocorre, em todos estes filmes de Rossellini, uma subtil inversão de valores: é no caos mais do que na ordem, na pobreza mais do que no fausto, na incerteza mais do que na segurança que a vida se torna frutífera e ganha sentido e tem um futuro. Seja de um povo, seja de um casal, seja de um indivíduo. Poder-se-ia levantar uma voz crítica contra Rossellini, dizendo que é sempre fácil um elogio da pobreza feito desde o conforto de uma vida burguesa. Seria uma crítica aparentemente com alguma pertinência, mas que julgo na realidade algo injusta. O que Rossellini visa combater com a sua análise não é a riqueza ou a ordem, mas a cegueira, seja ela fruto da ignorância ou da hipocrisia. E o que Rossellini procura enaltecer não é a pobreza, mas a genuinidade, a bondade e mesmo uma certa grandeza que só o tempo confere aos povos e que está bem patente na cena do museu em “Viagem a Itália”.

Daqui se poderiam retirar algumas ideias para os dias de hoje, em que voltou à Europa um cisma geográfico entre uma perspectiva supostamente racional, trabalhadora e incontornável dos do norte e uma pretensa anarquia, abusadora, preguiçosa e parasita dos do sul, sejam eles portugueses ou gregos, tanto faz, que para o finlandês ou checo médio é tudo a mesma ralé. Por isso, toca de castigá-los, que como é para eles claro só o castigo educa. É exactamente esta a lógica em “Europa 51” dos parentes de Irene e da estrutura de classe (polícias, psiquiatras, juízes) que os ampara: podem sacrificar-se os laços de sangue (hoje, os laços entre os povos), mas não as estruturas de poder da sociedade (hoje, as estruturas do poder económico). Irene saiu da sua normal via e por isso merece punição. A esta lógica, Rossellini com a sua câmara contrapõe a cena final em que Irene está em paz, porque escolheu o lado certo e termina o filme por cima, em “contre-plongée”, enquanto os seus parentes, reféns da sua racionalidade mas indubitavelmente sofredores, saem pela esquerda baixa, como Caim fugindo do olhar de Abel.

Também no filme “Europa 15”, em que todos somos figurantes, é possível que a irrepreensível lógica dos “credores”, de que não há alternativas (que de facto não são permitidas aos alegados “devedores”), se justifique num primeiro momento mas que se revele vazia e estéril num segundo tempo, e que no final resulte num desmembrar da União Europeia que já se cheira a alguma distância. E este desmembrar poderá ser simplesmente uma separação rumo a um enfraquecimento e a um empobrecimento colectivos, ou poderá dar guerra a sério – esta última foi aliás a normal história da Europa, não esqueçamos.

Para Rossellini há uma virtude transcendente na irracionalidade: por vezes, só momentos de irracionalidade permitem a vitória do Bem ou da Grandeza do Homem, e a perenidade destes valores. Tal é muito visível em “Paisá - Libertação”: não é racional ser um “partigiano” e lutar com caçadeiras contra os obuses e caças-bombardeiros do exército nazi; não é racional procurar um amigo ferido no lado alemão de uma cidade do tamanho de Florença, durante a sua reconquista pelos aliados, correndo perigo de vida de cada vez que se corre de uma esquina para outra; não é racional acender um fósforo numa noite de desembarque em zona alemã, para se ser simpático e se mostrar uma fotografia a uma rapariga cuja língua não se fala. Em todo esses casos, é provável que se leve um tiro. No entanto, são essas coisas ilógicas que as pessoas boas fazem e é isso que faz delas pessoas boas, diria mesmo pessoas superiores.

Nos Evangelhos encontramos muitas vezes esta intrigante irracionalidade, em que se faz o que está certo e não o que dá jeito, por exemplo quando Mateus larga um excelente e bem remunerado emprego como publicano para seguir à borla um revolucionário guedelhudo sem futuro aparente. E cada vez mais sinto que é esta descomprometida loucura que tanta falta faz à Europa de 2015.




Um “post-scriptum” cinematográfico, aliás dois, daqueles de leigo irresponsabilizável: i) Rossellini não tem o enquadramento ou a fotografia de um Antonioni, mas compensa com um notável lirismo, que comove com naturalidade; o olhar de Joe, o soldado negro norte-americano do segundo episódio de “Paisá - Libertação”, quando descobre a pobreza maior que a sua em que vivem as crianças de Nápoles, é disto um supremo exemplo; ii) Anna Magnani é certamente uma das maiores actrizes de sempre, batendo por “knock-out” ao primeiro assalto a larga maioria das pavoneantes na passadeira vermelha do Dolby Theatre.