domingo, janeiro 25, 2015

As sebentas




Nota introdutória: estava a escrever um texto sobre os acontecimentos do Charlie Hebdo quando este abaixo se apresentou em grande velocidade e fez uma ultrapassagem pela berma. Pode ser que o primeiro ainda apareça em breve aqui no Mataspeak, mas este acaba por tratar fundamentalmente da mesma coisa.


A minha vida tem sido bem bafejada pela sorte. Nasci no melhor extremo da curva de Gauss, desde logo porque não conheci a guerra e a fome e a miséria como a maioria neste mundo e nos mundos que já passaram, depois porque fui criado com desvelo e com exemplo e contei sempre com  boa gente em minha casa, fosse a dormir nos quartos ou de visita à volta da mesa da sala. Também porque não conheci o drama brutal e mesmo quando a morte andou pela vizinhança não posso dizer que fosse fora da altura contratualmente definida. E ainda porque pude ler, aprender, perceber algumas coisas, fazer outras, viajar um pouco, partilhar o belo. Finalmente, porque pude proporcionar aos meus filhos uma perspectiva parecida à que eu usufrui, apesar dos ventos contrários que hoje sopram.

A continuar esta bonança, uma das últimas paiolas que me caiu no colo foi a de poder ajudar o meu filho mais novo numa das suas cadeiras na universidade, para mim simultaneamente uma honra e um privilégio, como se costuma dizer. Ele é mais das biologias e das químicas, um pouco menos das matemáticas e das físicas que sempre foram mais a minha praia. Combinámos por isso que eu lhe daria uma mãozinha com o curso geral de física do Professor Marc Haelterman, sete gorduchas sebentas com o carimbo da Université Livre de Bruxelles, a ULB como por lá é por todos nomeada. E foi assim que dei comigo, vinte e muitos anos depois, a estudar termodinâmica estatística e electromagnetismo e, surpresa das surpresas, a entender-me bem com aquilo.

A ULB, que o meu filho escolheu para realizar os seus estudos, faz muita gala no adjectivo livre que tem no nome. Quando a Bélgica se tornou independente em 1830, a cidade escolhida para capital não tinha estudos universitários, que apenas existiam desde há pouco em Gand e Liège e desde há muito na muito tradicional Universidade Católica de Lovaina. Pouco depois, em 1834, a Igreja criou a universidade de Malines e antes que ela fizesse o mesmo em Bruxelas um grupo de pessoas dos meios liberais e maçónicos da cidade fundou em Novembro do mesmo ano uma universidade e chamou-lhe livre. Em 180 anos de história, a escola tem honrado o epíteto, com cinco prémios Nobel (um dos quais, da física, bem recente em 2013) e muitos outros reconhecimentos locais e internacionais, com 24.000 alunos a cada ano dos quais um terço são estrangeiros, com uma algazarra permanente de debates, exposições, filmes, concertos e publicações sobre todos os temas e com todas as visões, com a presença de alunos em todos os seus orgãos de gestão ou muito simplesmente chamando sem complexos esquerdistas ou direitistas “Allende” a uma das suas salas.

A ULB, quando se apresenta ao mundo (http://www.ulb.ac.be/ulb/presentation/index.html),  define-se como uma escola “engagée”, implicada no “combate permanentemente renovado pelo pensamento crítico e pela liberdade” e tem como ponto primeiro dos seus estatutos o “livre exame” que afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer dogma. Estes propósitos não são apenas frases bonitas num papel escrito em 1834 e arrumado desde aí numa gaveta da reitoria. Repetem-se por todo o lado no “website” da escola e são bem vincados no fecho do seu vídeo de apresentação.



Mas, muito mais importante, estão traduzidos nas suas aulas e nos seus escritos, a julgar pelas sebentas do Prof. Haelterman, muito diferentes das que eu li (e escrevi) no Instituto Superior Técnico. As duas primeiras linhas do primeiro volume do seu curso são uma citação de Chaïm Perelman, professor de filosofia na ULB e resistente contra o nazismo: “à obediência às regras impostas por outrem, oporemos a adesão a uma convicção que formámos cada um de nós”. É uma excelente maneira de se começar um curso de ciências, lembrando que a procura do conhecimento e da verdade se faz com liberdade, com individualidade e também com labor, já que formar é um verbo de grande espessura. A nossa convicção não aparece de um momento para o outro, vai-se formando, fruto do investimento que desbasta a pedra tosca da nossa ignorância até fazer aparecer um pedaço de saber. A citação de Perelman alerta ainda para que o pior inimigo do conhecimento é a certeza cega, o dogmatismo do ditador, do iluminado, do guru, do pensamento único sob qualquer forma, do “não há alternativa”. 

Poderemos supor que esta dicotomia entre a liberdade de pensamento e o dogma totalitário era totalmente evidente nos tempos em que Perelman a formulou, num mundo rasgado entre os que matavam para impôr uma visão única e os que morriam para que assim não fosse. Nos nossos dias não será tão clara mas continua igualmente importante, talvez mais ainda. Pensemos: somos hoje uma sociedade com capacidade crítica? Lemos, cruzamos fontes, gastamos tempo no debate dos assuntos? Procuramos a essência dos factos, os números que dão trabalho a mastigar, vamos facetando o nosso julgamento correndo sem medo o risco de termos que concluir que estávamos errados? Acarinhamos a dúvida e o contraditório como mecanismos de progresso social e pessoal? Ou, ao contrário, adoptamos como nossa alguma ideia feita que evite muita discussão, reverberada pelas miopia das redes sociais até se tornar uma certeza, ou tomamos como sapiência o arengar monocórdico e monológico de um comentador de telejornal de domingo ou do autor de algum livro de auto-ajuda comprado no Pingo Doce entre rabanetes e embalagens de WC Pato? Sobre isto tenho a minha ideia e talvez não sejamos tão livres quanto cremos e talvez lembretes como os de Perelman possam por isso trazer alguma saúde.

Depois dessa boa frase introdutória, o Prof. Haelterman começa o seu curso de termodinâmica. Mas não vem sozinho. Vêm com ele logo de início Newton, Pascal, Torricelli, Galileu, Rey, Boyle, Hooke, Huygens, Renaldini, Fahreneit, Celsius, Amontons, Kelvin, Gay-Lussac, Biot, Charles, Mariotte, Avogadro, Boltzmann e é com a ajuda desta gente, três séculos de grandes físicos, que todos juntos lá chegamos a PV=nRT, a lei dos gases perfeitos. Por acaso os gases perfeitos não existem e logo não obedecem impecavelmente à lei, mas é graças a esta equaçãozita que vamos de carro para o trabalho. O Prof. Haelterman podia ter dado à malta apenas as cinco letras da equação e punha-a logo a fazer exercícios, mas optou por gastar trinta páginas a explicar como todo aquele pessoal foi curioso e persistente e fez experiências e encontrou coisas engraçadas e formulou explicações e enganou-se e corrigiu e copiou e melhorou e juntou tudo até o pê e o vê ficarem iguais ao ene-erre-tê.

Esta abordagem tem um propósito e tem um significado. Ao revisitar a criação colectiva daquela fórmula, ao partilhar uma versão mesmo que sintética do esforço que ela implicou, o aluno do Prof. Haelterman – neste caso, eu – não está obrigado à sua aceitação acéfala: vive a sua construção, podendo repeti-la e desmontá-la e criticá-la e inclusive, nos momentos mais felizes, descobrir que está errada. E esses momentos, da descoberta do erro ou da insuficiência de um resultado, são do mais sublime que pode haver em ciência, seja para o aluno que inicia o caminho, seja para o mestre que desbrava a continuação do trilho. Por outro lado, ao sermos a enésima cabeça a pensar neste resultado, a entendê-lo e a julgá-lo, usando a nossa inteligência e o nosso livre arbítrio, ele passa a ser nossa legítima propriedade. Já não podemos falar bem da lei de Boyle ou da experiência de Avogadro, mas sim da nossa lei e da nossa experiência. De cada vez que uma pessoa perscruta uma conclusão científica e fazendo uso da sua cabeça a aceita está a participar na sua consolidação, porque em ciência uma lei vigora humildemente enquanto não for demonstrada errada e podemo-la presumir tanto mais certa quanto mais vezes fôr escrutinada, sobrevivendo ao livre exame de cada um. 

O segundo volume do Prof. Haelterman, sobre electroestática, abre com uma frase de Frans Van den Dungen, reitor da ULB aquando da invasão nazi, que se lhes opôs publicamente fechando a universidade e recriando-a em cursos na clandestinidade: “é a utilização que o Homem faz da ciência que pode ser errónea, nunca a ciência em si”. O terceiro, sobre magnetostática, começa com uma citação de Willy Peers, ginecólogo formado na ULB e que militou pela utilização do parto sem dor e pela legislação do aborto: “O acesso ao saber não é um feito exclusivo dos cientistas. O conhecimento torna-se o bem sempre crescente de um maior número de indivíduos: indivíduos mais humanos, conscientes das possibilidades da ciência contemporânea, exigindo sempre de forma mais veemente poder delas beneficiar”. O quarto, dedicado ao electromagnetismo, inicia-se com um pensamento de Pierre-Théodore Verhaegen, advogado, político e fundador da ULB: “um povo que discute livremente é um povo que vive e que marcha, um povo que não discute é um povo que morre”. Finalmente, no quinto, sobre física das ondas, arranca-se com uma frase de Jean Brachet, doutor em medicina pela ULB, pioneiro da biologia molecular e também resistente contra o nazismo: “nada é mais estimulante para um investigador que ficar preso numa contradição”.

Cada uma destas frases mereceria só por si uma profunda reflexão. Juntas espelham de forma sentida o conceito de livre exame que a ULB tanto preza: a valorização da liberdade individual diante do dogma, que pode ser externo ou estar ancorado dentro de nós; o apreço pela dúvida e pelo debate como motores do pensamento livre; a consciência que devemos ter da nossa falibilidade; a noção de que só sociedades livres feitas de pessoas livres podem verdadeiramente prosperar. Reflectindo sobre elas, comparando a nossa realidade com a ética que delas emana, poderemos medir quão forte ou verdadeira é a nossa liberdade, individual ou colectiva, que desajeitadamente tendemos a pensar que é sempre muita.

 Ao compilar estas frases e as pôr em lugar de destaque no seu curso de física, o Prof. Haelterman não enquadra meramente o seu ensino na linha filosófica da escola. Mostra que tal como a ciência não é o que é sem a sua história, a universidade não é o que é sem a sua memória. Ao relembrar aqueles nomes e aqueles propósitos, de fundadores, de professores, de alunos da ULB, o Prof. Haelterman, numa comovente lição, mostra que quem ensina e aprende na ULB pertence a uma construção colectiva e logo faz recair sobre os seus pupilos a pesada mas estimulante responsabilidade de honrar uma tradição e de continuar uma trajectória, não sendo obrigatoriamente os melhores, mas sendo pelo menos tão livres. 

Quando comecei a ler as sebentas do Prof. Haelterman, pensei que iria reavivar o meu conhecimento sobre ciclos termodinâmicos e fenómenos de ressonância. Afinal, foram mais conceitos básicos da cadeira de Liberdade I que me vieram a memória: que não há conhecimento sem liberdade nem liberdade sem conhecimento, que a dúvida é mais fértil do que a certeza e que a liberdade é trabalho para uma vida inteira. Tendemos a esquecer estes fundamentais, distraídos que estamos com as torrentes de lodo que jorram do ecrã da televisão ou com o vácuo que reina nos corredores dos centros comerciais e nas cabeças que por detrás de um “nickname” insultam o próximo na “internet”.

Como nota final: tendemos hoje a ver como estranhas pessoas como o Prof. Haelterman, que investigam física e recuperam frases libertárias de homens de séculos passados, apodando-as de “nerds” e outros títulos de pouco gosto e menor senso. Mas são pessoas normalíssimas, iguais a qualquer um, que simplesmente optaram por não abdicar de partes importantes do que a condição humana tem para nos oferecer. O Professor Marc Haelterman é admirado e estimado pelos seus alunos, tem um sentido de humor notável que transparece nas suas folhas, bebe copos e pode ser visto a dançar o “I’m bad” do Michael Jackson no vídeo abaixo do Youtube. Parece de facto livre.

sábado, janeiro 03, 2015

Fim-de-semana com Salazar



Notas iniciais:

1) Este texto foi iniciado no domingo do fim-de-semana da detenção de José Sócrates. Não tive tempo de o acabar logo e foi-se arrastando até agora, julgo que sem perda de actualidade. Talvez mais agora. 

2) Regra geral tudo o que vi escrito desde aí sobre a detenção e depois prisão de Sócrates incluía um “disclaimer” que informava o leitor que o autor gostava muito do Sócrates ou então que não o podia ver à frente. Tal género de declaração é essencialmente uma cobardia pelo que eu, apesar de não ser o mais corajoso dos homens, não a vou aqui fazer. Para o que vem abaixo, se eu gosto ou não gosto do tipo, se votei a favor ou contra, é totalmente irrelevante . O que vou dizer aplica-se, penso, fosse o detido este Sócrates ou o outro (o qual, lembremos, foi condenado à cicuta pela democracia ateniense com uma linha de argumentação de carácter bastante parecida com uma que se ouve muito em Portugal nestes dias de cinza), fosse o detido o Jack o Estripador ou a Madre Teresa de Calcutá, fosse o detido um de vós que me ledes ou eu.

3) A todos um bom 2015



1) Salazar, parte I

Na sexta da detenção de José Sócrates, à noite, sem me dar conta das notícias que já davam conta da ocorrência, inaugurei o meu descanso de fim-de-semana com leitura de cadeirão, as patorras em cima da mesa de centro, ironicamente com o "Our Man in Paris" do Dexter Gordon a aveludar o silêncio da casa. Aviei o quinto fascículo da biografia política de Salazar escrita por Filipe Ribeiro de Meneses e que o Expresso foi publicando ao longo do Verão.

Eu tinha quatro anos quando o Botas, como meu pai lhe chamava, se baldou da cadeira abaixo e ficou balhelhas. Tinha seis quando ele morreu, convencido até ao final que presidia ao Conselho. Nesses tempos, e nos que se lhe seguiram, fui apanhando com os Salazares mitificados.

Primeiro, o santo de altar do meu livro de leitura da terceira classe, aquele cuja capa mostrava miúdos uniformizados à Mocidade Portuguesa transportando a bandeira do Condestável e que ilustrava um texto sobre a família portuguesa com o desenho de um homem magro a assomar de enxada ao ombro à porta de sua modesta casa, ao final da tarde, com a mulher de chancas e saia rodada operando num fogão de lenha. Nesse manual de glórias passadas e humildades presentes, um texto elegíaco propunha às crianças o Salazar oficial, como ele gostava que o vissem: uma vida de extracção modesta e raízes rurais, livre da poluição que o dinheiro e a cidade trazem, que pelo trabalho e pela virtude se elevou até ao lugar cimeiro onde abnegadamente zelava pelo bem daqueles que por serem pequenos de vontade e de propósito fatalmente tinham que ser zelados.


Depois, a seguir ao vinte-e-cinco de Abril, o Salazar oficial metamorfoseou-se: da noite para o dia cresceram-lhe dentes de vampiro e tornou-se um ditador sanguinário a meio caminho entre Hitler e Satanás. Perdeu as coortes de seguidores póstumos e passou a único responsável pelo atraso endémico de um país em teoria antes dele florescente, versão simplista que partilhei frequentemente com entusiasmo e que me foi muito útil para descarregar o mau humor em relação às manifestas insuficiências de uma pátria que às vezes, nos momentos menos lúcidos, me parecia mais pequena e atrasada do que as outras.

Pois agora, nesta leitura, pela mão de Meneses, historiador de uma geração mais nova do que a minha e que trata Salazar e a sua época não desapaixonadamente mas mais distanciadamente, como objecto de análise, recorrendo muito aos documentos e menos às percepções, fui descobrindo um Salazar mais complexo mas mais plausível e talvez mais tenebroso e culpado do que o monstrengo obscurantista que me serviam as rodas de café dos anos setenta.

Nos documentos que Meneses abundantemente transcreve, podemos adivinhar um homem que tinha de si próprio uma imagem sofrida e esquizofrénica, que fundia por um lado o predestinado, eleito por Deus e aparecido nas berças de Santa Comba que nem um Moisés a boiar no Nilo para carregar como um fardo solitário um povo de néscios para longe dos egiptos da desordem política, e por outro o ser apequenado, complexado pelo seu baixo berço, ressentido com o reconhecimento insuficiente que julgava devido após uma vida dedicada à pastorícia do rebanho público. Este último aspecto é manifesto por exemplo no modo como resume o seu diferendo com Armindo Monteiro, seu ministro dos Negócios Estrangeiros e depois embaixador em Londres, a propósito do relacionamento a ter com a Inglaterra durante a segunda Grande Guerra. Monteiro tem, em função da informação que colhe directamente junto do governo inglês, uma visão política e diplomática diferente da de Salazar sobre quais seriam os interesses de Portugal e manifesta-o, aparentemente sempre dentro dos limites da lealdade que o seu posto implicaria. Salazar acaba por o afastar e escreve numa nota que Monteiro discordaria dele porque o desprezaria por ele, Salazar, não sair da elite lisboeta mas de meios  rurais e pobres. Não era a diferença de ideias: era a diferença de classes sociais que explicava Monteiro não concordar com o que Salazar dizia.

Um outro aspecto notório que transparece da narrativa de Meneses é o discurso obsessivo à volta do conceito de ordem, o medo da mobilidade que leva as autoridades do Estado Novo a referir-se a si próprias usando um vocábulo absolutamente estático: "situação". A "situação" implicava automaticamente um país sem dinâmica social, estratificado no poder económico e no saber. Um país que se queria, pelo menos à superfície, pacato, sem chatices, sem divergências, sem ambições, assexuado, hipócrita, de senhores e senhoras donas, arrumado e escuro como um grande salão numa casa fechada. Uma espécie de “morte térmica do universo” isolada do mundo, em contraste com o colorido, a discrepância, a algazarra , a incerteza, o risco, enfim a vida das sociedades livres e libertas.

Mas talvez  o mais extraordinário e revelador na variada documentação que Meneses vai expondo são as afirmações de uma pandilha que cerca Salazar a vários níveis e que pressurosamente se agita para se afirmar sempre mais salazarista do que o próprio. Desde os editoriais do Diário da Manhã aos despachos do Santos Costa, são linhas e linhas e mais linhas de bajulação mental, bafienta, pejada de "V.Exas", sem quaisquer vestígios de um neurónio a espicaçar uma sinapse (há excepções - Marcelo Caetano, por exemplo). Salazar despreza essa reverência ("essas vaidadezitas"), mas precisa dela para que sem crítica se executem os seus desígnios. Os da pandilha prestam-se ao número, por defesa da sua posição ou meramente pelo consolo carneiro de pertencerem ao clube. Uma vez mais podemos constatar que o mau atrai fatalmente o péssimo, que um Abranhos sempre convoca os seus Zagallos. E que possivelmente serão estes, mais do que os que lideram, que constituirão a essência negra dos regimes, aquilo que de mais fundamental nos pesa a todos como lastro e nos puxa como país para baixo, geração após geração. Encontro-os nas linhas mais ácidas de Eça e de Camilo, encontro-os nas cartas dos dignatários do Estado Novo ao amo, pedinchando reverentemente umas massas, e encontro-os hoje no meu dia-a-dia, ao volante dos táxis ou nos painéis de comentadores das televisões.


2) Salazar, parte II

A dado momento desse sábado, percebi que Sócrates tinha sido detido. Surpreendeu-me, claro, mas honestamente encarei o assunto com relativa tranquilidade. Acredito que se o juiz se meteu numa destas é que tinha indícios suficientes para tal, que Sócrates se defenderá em tribunal e que será ilibado ou condenado, e que até lá é obrigação de todo o português civilizado presumir a sua inocência. Tão simples quanto isto e não há crise.

Nesse fim-de-semana, as primeiras reacções dos políticos e dos partidos foram nessa linha, comedidas, resistindo à tentação da politização e partidarização de um processo judicial tão delicado. Houve uma ou outra excepção mais bera, um ou outro momente de sonsice mais hipócrita, mas em geral a reacção da classe política foi mais elevada do que eu estava à espera.

Só que infelizmente, ao longo do sábado e do domingo, nem tudo correu lá muito bem. Começou com o episódio da fuga de informação que permitiu uma detenção quase debaixo das câmaras de televisão, situação já usual que só se resolverá quando alguém for de cana uns anos por abuso do segredo de justiça. E esta prisão em directo (como outras) envergonha-nos a todos, tanto pelo facto em si como sobretudo pelo facto de nem todos (ou mesmo poucos) se envergonharem. Continuou num jornalismo de merda que poluiu todo o fim-de-semana, com especulações que se tornavam insinuações e depois afirmações, com directos permanentes para sítios onde nada se passava e que rapidamente se tornavam pretexto para a revelação do último bitaite de rua como se do Watergate se tratasse, com o decepar da cabeça de um homem na praça pública. E terminou num "tsunami" de comentários anónimos pelos "sites" dos jornais e pelos “twitters” da vida onde entre anónimos e "nicknames" se vomitou fel e dor-de-corno a rodos, pedindo que se matasse e esfolasse, este e todos os outros. É certo que estes sítios se tornaram a sarjeta da sociedade, mas mesmo assim...

...Este género de comportamentos desgosta-me. Recordo-me sempre das palavras simples do meu pai, quando no dia 26 de Abril de 1974 eu, com dez anos, lhe propus que Américo Tomás fosse atado à linha de comboio para ser trucidado como paga pelas suas maldades: "a democracia não é vingativa", dito sem um sorriso. Estas cinco palavras resumem toda a filosofia política, e ao mesmo tempo todo o bom senso e sabedoria, necessários neste contexto.

Nesse fim-de-semana e nos dias frenéticos que lhe seguiram, na comunicação dita “social” e nas redes ditas “sociais”, foi como se a pandilha salazarista se tivesse agitado e saltado das linhas do meu livrinho de Meneses para as colunas dos jornais, as mesas dos estúdios televisivos e os papos do Facebook, revestida do verdete felpudo de um bolor crescido num ambiente pouco arejado pela falta de preceito democrático. Quando constato o tempo de antena que dão a José Gomes Ferreira, esse Beria de Carnaxide, para vir afirmar nos ecrãs que é legítimo nestas situações os jornalistas "suporem", percebo que a única coisa que mudou na pandilha foram os óculos, que eram de massa e agora são de aro fino, e os cortes do fato e do cabelo. Não, José Gomes Ferreira, não é legítimo ao jornalista vir para a televisão supor sobre a vida de um homem, seja ele pequeno ou poderoso. O que é legítimo é investigar, cruzar fontes duas, três e quatro vezes e apresentar factos, tudo coisas que dão trabalho, essa chatice chamada trabalho. Recomendo-lhe o visionamento de "Os homens do presidente" de Alan Pakula, e que atente em particular ao modo como o editor do Washington Post, Ben Bradlee, obriga Woodward e Bernstein a tornar à prova de bala a sua investigação jornalística sobre o caso Watergate.


Este ruído à volta do processo de Sócrates, misturando numa salsada incomestível os eventuais factos jurídicos (cometeu ou não cometeu um ou vários ilícitos) com as responsabilidades políticas (governou bem ou governou mal) com aspectos de carácter (é mentiroso ou arrogante ou não é), mostrou a incapacidade que ainda existe em importantes franjas da nossa sociedade para entender o que são o Estado de Direito e uma Democracia. De ilícitos, se houve, deverá tratar a Justiça e para esse processo não serão relevantes nem as responsabilidades políticas nem os aspectos de carácter. Quanto à responsabilidade de ter governado bem ou mal, essa será dele, será minha e será de todos. É esta a natureza da democracia representativa, se a aceitarmos. Os políticos representam-nos, bem ou mal, mas representam-nos e através dessa representação com eles pomos a cabeça no cepo. Por isso o que Sócrates tenha feito de melhor ou pior na gestão governativa será culpa dele mas responsabilidade de todos. E quanto aos aspectos de carácter serão entre ele a sua consciência e também nada têm a ver com o resto.

Se quisermos considerarmo-nos democratas, a separação entre esses três planos, jurídico, político e pessoal, será um dos aspectos mínimos que teremos que aceitar. Se não aceitarmos, teremos que procurar outra carapuça que não a de “democrata”. Talvez a de “salazarista” sirva.


3) Muco (abaixo de): um salazarista

Claro que pode sempre haver pior. Como por exemplo os valentes que só se aventuram para fora da matilha quando já só há cadáver para morder. Um triste exemplo disto é um deputado da nação, Duarte Mendes, para azar da humanidade nascido e logo por mais azar em Mação, terra do juiz que mandou deter Sócrates. Este Mendes não resistiu a usar esta infausta coincidência para ir para a sua conta do Facebook festejar a prisão de um homem em termos próprios de um garoto.

Admito que tem como vaga atenuante o ter sido líder de uma juventude partidária. Desde os meus próprios tempos de jovem que vejo como péssima coisa o enquadramento político da juventude em “juventudes”, ideia oriunda dos totalitarismos de ambos os lados do século XX e que faz tanto sentido como as velhices partidárias, os morenismos partidários, os benfiquismos partidários ou as magrezas partidárias. Ou seja, nenhum. E do que não faz sentido, dificilmente sai gente ou ideias com sentido. A Academia de Alcochete produz mais esperanças numa época que todas as juventudes partidárias juntas desde o vinte-e-cinco de Abril para cá.

Mesmo com a atenuante, este Mendes não deixa de ser particularmente vomitivo. Felizmente Deus não dorme e afivelou-lhe por cima do pescoço uma cara que é exactamente a cara daquilo que ele é.


4) Salazar com molho à espanhola

Para culminar um fim-de-semana de muita agitação política, o Bloco de Esquerda, a esquerda “Façonnable” como meu pai lhe chamava em atenção às camisas do Fernando Rosas, reuniu nesses dias em congresso para fazer um balanço da sua liderança bicéfala. Este exercício viria a acabar, após peripécias várias, numa liderança hexacéfala, que é uma ideia de que só seis cabeças juntas se lembrariam. Tal só por si não é especialmente interessante até porque há anos que do Bloco de Esquerda não sai nada de especialmente interessante. Apenas introduzo este ponto porque a este congresso veio Pablo Iglésias, líder do novo partido espanhol “Podemos” que vai à frente em muitas sondagens aqui no país vizinho. O Podemos nasce do descontentamento anti-regime das manifestações de rua do “15-M”, tem um líder de calça de ganga, camisa pescadora e rabo-de-cavalo que deleita os sempre profundos mídia, e vem sendo apresentado como um fenómeno novo.

Curioso perante a novidade dos fenómenos novos, sentei-me em frente à SIC Notícias para ouvir uma entrevista a Pablo Iglesias. Não sei se foi distracção minha, mas não me apercebi de nada de novo. Tive foi direito a trinta minutos de mais do mesmo, só que de rabo-de-cavalo.

O âmago do ideário político que ouvi a Iglésias nesta entrevista gira à volta da oposição entre por um lado “as pessoas”, que são genericamente e estruturalmente boas, de quem ele faz parte e de quem, suponho, se assume como conveniente porta-voz ou vanguarda, e por outro uma mal-definida “casta” que amalgama de modo obscuro políticos, financeiros, classes mais favorecidas da sociedade e bandidagem de colarinho branco. A palavra “casta” vai e vem e regressa e volta, sempre sem ser exactamente definida, como convém a este tipo de conversa. E opõe-se à palavra “pessoas”, apresentadas como “simples”, “da rua”, e que se “entendem”.

Ora isto não é sequer uma boa e franca luta de classes. Isto é populismo vestido de camisa aos quadrados e de pulseiras de cabedal no punho, é a representação do mundo dividido entre o “nós”, quentinho e honesto,  e o “outros”, pérfido, conluiado e, já agora, eliminável sem prejuízo para ninguém. E este populismo de novo não tem nada: tem a idade da noite dos tempos e podemo-lo ouvir gritado nas matanças  de partidários de Mário ou de Sila, na noite de S. Bartolomeu de 1572, no Terror “robespierrano”, nas purgas de Estaline, no Holocausto de Hitler, em Sabra e Shatila, nos “killing fields” de Pol Pot ou nos avanços do Estado Islâmico. E em tantas outras, demais, vezes. Vezes de sobra para que o género de conversa que este Iglésias debita nos deva preocupar seriamente, especialmente quando corre o risco de ganhar eleições numa das raras democracias deste planeta.


A conversa de Pablo Iglésias sobre os “outros” e as “castas” lembrou-me a passagem para mim mais marcante de “Por quem os sinos dobram”, quando Pilar, a contragosto, quase que obrigada, recorda e conta a Robert Jordan e aos outros companheiros republicanos o massacre que presenciou em Ávila, quando a metade da população republicana matou metodicamente a outra metade, o merceiro, o proprietário, o antigo vizinho, o tal “outro”, fazendo-os passar por um corredor aberto na multidão onde eram zurzidos de todos os lados com paus e mangueiras. Hemingway, um declarado apoiante do lado republicano na Guerra Civil de Espanha, escolheu para exemplo mais negro do horror da guerra e do precipício do Homem um acto perpetrado por republicanos sobre franquistas, pobres coitados que pensaram a coisa errada na hora errada. Suponho que ele sabia que quando as ideias se somem e toca a reunir o toque de matilha, qualquer homem se pode tornar cão. Talvez por isto a certo momento me pareceu durante a entrevista que a cara de Iglésias sofria um “morphing” e ganhava focinho e orelhas e pêlo negro e que da sua boca saiam ladridos. Provavelmente apenas uma ilusão sensorial.

Quanto ao plano de acção prática do Podemos, é muito simples: não pagar a dívida, continuar na moderna Europa, diminuir o desemprego num instante, baixar o custo de vida, trazer o Céu à Terra. Os entrevistadores, como modernos jornalistas que são,  eximiram-se de fazer perguntas complicadas, do género “como se faz”, “quanto custa” ou “quais as consequências sobre a população”. As propostas de Iglésias e de outros populistas, à base de “vamos ter o queque e o dinheiro do queque”, matam qualquer hipótese de discussão séria de alternativas e jogam o jogo da actual “situação”.

E foi assim que Franco se voltou a encontrar com Salazar, desta vez não em Ciudad Rodrigo mas no canal 5 da TV Cabo.