Nota introdutória: estava a escrever um texto sobre os
acontecimentos do Charlie Hebdo quando este abaixo se apresentou em grande velocidade
e fez uma ultrapassagem pela berma. Pode ser que o primeiro ainda apareça em breve
aqui no Mataspeak, mas este acaba por tratar fundamentalmente da mesma coisa.
A minha vida tem sido bem bafejada pela sorte. Nasci no melhor extremo da curva de Gauss, desde logo porque não conheci a guerra e a fome e a miséria como a maioria neste mundo e nos mundos que já passaram, depois porque fui criado com desvelo e com exemplo e contei sempre com boa gente em minha casa, fosse a dormir nos quartos ou de visita à volta da mesa da sala. Também porque não conheci o drama brutal e mesmo quando a morte andou pela vizinhança não posso dizer que fosse fora da altura contratualmente definida. E ainda porque pude ler, aprender, perceber algumas coisas, fazer outras, viajar um pouco, partilhar o belo. Finalmente, porque pude proporcionar aos meus filhos uma perspectiva parecida à que eu usufrui, apesar dos ventos contrários que hoje sopram.
A continuar esta bonança, uma das últimas paiolas que me caiu
no colo foi a de poder ajudar o meu filho mais novo numa das suas cadeiras na
universidade, para mim simultaneamente uma honra e um privilégio, como se
costuma dizer. Ele é mais das biologias e das químicas, um pouco menos das matemáticas
e das físicas que sempre foram mais a minha praia. Combinámos por isso que
eu lhe daria uma mãozinha com o curso geral de física do Professor Marc
Haelterman, sete gorduchas sebentas com o carimbo da Université Livre de
Bruxelles, a ULB como por lá é por todos nomeada. E foi assim que dei comigo,
vinte e muitos anos depois, a estudar termodinâmica estatística e
electromagnetismo e, surpresa das surpresas, a entender-me bem com aquilo.
A ULB, que o meu filho escolheu para realizar os seus
estudos, faz muita gala no adjectivo livre que tem no nome. Quando a Bélgica se
tornou independente em 1830, a cidade escolhida para capital não tinha estudos
universitários, que apenas existiam desde há pouco em Gand e Liège e desde há
muito na muito tradicional Universidade Católica de Lovaina. Pouco depois, em
1834, a Igreja criou a universidade de Malines e antes que ela fizesse o mesmo
em Bruxelas um grupo de pessoas dos meios liberais e maçónicos da cidade fundou
em Novembro do mesmo ano uma universidade e chamou-lhe livre. Em 180 anos de
história, a escola tem honrado o epíteto, com cinco prémios Nobel (um dos
quais, da física, bem recente em 2013) e muitos outros reconhecimentos locais e
internacionais, com 24.000 alunos a cada ano dos quais um terço são
estrangeiros, com uma algazarra permanente de debates, exposições, filmes,
concertos e publicações sobre todos os temas e com todas as visões, com a
presença de alunos em todos os seus orgãos de gestão ou muito simplesmente
chamando sem complexos esquerdistas ou direitistas “Allende” a uma das suas
salas.
A ULB, quando se apresenta ao mundo (http://www.ulb.ac.be/ulb/presentation/index.html), define-se como uma escola “engagée”,
implicada no “combate permanentemente renovado pelo pensamento crítico e pela
liberdade” e tem como ponto primeiro dos seus estatutos o “livre exame” que
afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer dogma. Estes
propósitos não são apenas frases bonitas num papel escrito em 1834 e arrumado
desde aí numa gaveta da reitoria. Repetem-se por todo o lado no “website” da
escola e são bem vincados no fecho do seu vídeo de apresentação.
Mas, muito mais importante, estão traduzidos nas suas aulas e nos seus escritos, a julgar pelas sebentas do Prof. Haelterman, muito diferentes das que eu li (e escrevi) no Instituto Superior Técnico. As duas primeiras linhas do primeiro volume do seu curso são uma citação de Chaïm Perelman, professor de filosofia na ULB e resistente contra o nazismo: “à obediência às regras impostas por outrem, oporemos a adesão a uma convicção que formámos cada um de nós”. É uma excelente maneira de se começar um curso de ciências, lembrando que a procura do conhecimento e da verdade se faz com liberdade, com individualidade e também com labor, já que formar é um verbo de grande espessura. A nossa convicção não aparece de um momento para o outro, vai-se formando, fruto do investimento que desbasta a pedra tosca da nossa ignorância até fazer aparecer um pedaço de saber. A citação de Perelman alerta ainda para que o pior inimigo do conhecimento é a certeza cega, o dogmatismo do ditador, do iluminado, do guru, do pensamento único sob qualquer forma, do “não há alternativa”.
Poderemos supor que esta dicotomia entre a liberdade de
pensamento e o dogma totalitário era totalmente evidente nos tempos em que
Perelman a formulou, num mundo rasgado entre os que matavam para impôr uma
visão única e os que morriam para que assim não fosse. Nos nossos dias não será
tão clara mas continua igualmente importante, talvez mais ainda. Pensemos: somos
hoje uma sociedade com capacidade crítica? Lemos, cruzamos fontes, gastamos
tempo no debate dos assuntos? Procuramos a essência dos factos, os números que
dão trabalho a mastigar, vamos facetando o nosso julgamento correndo sem medo o
risco de termos que concluir que estávamos errados? Acarinhamos a dúvida e o
contraditório como mecanismos de progresso social e pessoal? Ou, ao contrário,
adoptamos como nossa alguma ideia feita que evite muita discussão, reverberada
pelas miopia das redes sociais até se tornar uma certeza, ou tomamos como
sapiência o arengar monocórdico e monológico de um comentador de telejornal de
domingo ou do autor de algum livro de auto-ajuda comprado no Pingo Doce entre
rabanetes e embalagens de WC Pato? Sobre isto tenho a minha ideia e talvez não
sejamos tão livres quanto cremos e talvez lembretes como os de Perelman possam por
isso trazer alguma saúde.
Depois dessa boa frase introdutória, o Prof. Haelterman
começa o seu curso de termodinâmica. Mas não vem sozinho. Vêm com ele logo de
início Newton, Pascal, Torricelli, Galileu, Rey, Boyle, Hooke, Huygens,
Renaldini, Fahreneit, Celsius, Amontons, Kelvin, Gay-Lussac, Biot, Charles,
Mariotte, Avogadro, Boltzmann e é com a ajuda desta gente, três séculos de
grandes físicos, que todos juntos lá chegamos a PV=nRT, a lei dos gases
perfeitos. Por acaso os gases perfeitos não existem e logo não obedecem
impecavelmente à lei, mas é graças a esta equaçãozita que vamos de carro para o
trabalho. O Prof. Haelterman podia ter dado à malta apenas as cinco letras da
equação e punha-a logo a fazer exercícios, mas optou por gastar trinta páginas
a explicar como todo aquele pessoal foi curioso e persistente e fez experiências
e encontrou coisas engraçadas e formulou explicações e enganou-se e corrigiu e
copiou e melhorou e juntou tudo até o pê e o vê ficarem iguais ao ene-erre-tê.
Esta abordagem tem um propósito e tem um significado. Ao
revisitar a criação colectiva daquela fórmula, ao partilhar uma versão mesmo
que sintética do esforço que ela implicou, o aluno do Prof. Haelterman – neste
caso, eu – não está obrigado à sua aceitação acéfala: vive a sua construção,
podendo repeti-la e desmontá-la e criticá-la e inclusive, nos momentos mais
felizes, descobrir que está errada. E esses momentos, da descoberta do erro ou
da insuficiência de um resultado, são do mais sublime que pode haver em
ciência, seja para o aluno que inicia o caminho, seja para o mestre que
desbrava a continuação do trilho. Por outro lado, ao sermos a enésima cabeça a
pensar neste resultado, a entendê-lo e a julgá-lo, usando a nossa inteligência
e o nosso livre arbítrio, ele passa a ser nossa legítima propriedade. Já não
podemos falar bem da lei de Boyle ou da experiência de Avogadro, mas sim da
nossa lei e da nossa experiência. De cada vez que uma pessoa perscruta uma
conclusão científica e fazendo uso da sua cabeça a aceita está a participar na
sua consolidação, porque em ciência uma lei vigora humildemente enquanto não
for demonstrada errada e podemo-la
presumir tanto mais certa quanto mais vezes fôr escrutinada, sobrevivendo ao
livre exame de cada um.
O segundo volume do Prof. Haelterman, sobre electroestática,
abre com uma frase de Frans Van den Dungen, reitor da ULB aquando da invasão
nazi, que se lhes opôs publicamente fechando a universidade e recriando-a em
cursos na clandestinidade: “é a utilização que o Homem faz da ciência que pode
ser errónea, nunca a ciência em si”. O terceiro, sobre magnetostática, começa
com uma citação de Willy Peers, ginecólogo formado na ULB e que militou pela
utilização do parto sem dor e pela legislação do aborto: “O acesso ao saber não
é um feito exclusivo dos cientistas. O conhecimento torna-se o bem sempre
crescente de um maior número de indivíduos: indivíduos mais humanos,
conscientes das possibilidades da ciência contemporânea, exigindo sempre de
forma mais veemente poder delas beneficiar”. O quarto, dedicado ao
electromagnetismo, inicia-se com um pensamento de Pierre-Théodore Verhaegen,
advogado, político e fundador da ULB: “um povo que discute livremente é um povo
que vive e que marcha, um povo que não discute é um povo que morre”.
Finalmente, no quinto, sobre física das ondas, arranca-se com uma frase de Jean
Brachet, doutor em medicina pela ULB, pioneiro da biologia molecular e também
resistente contra o nazismo: “nada é mais estimulante para um investigador que
ficar preso numa contradição”.
Cada uma destas frases mereceria só por si uma profunda
reflexão. Juntas espelham de forma sentida o conceito de livre exame que a ULB
tanto preza: a valorização da liberdade individual diante do dogma, que pode
ser externo ou estar ancorado dentro de nós; o apreço pela dúvida e pelo debate
como motores do pensamento livre; a consciência que devemos ter da nossa
falibilidade; a noção de que só sociedades livres feitas de pessoas livres
podem verdadeiramente prosperar. Reflectindo sobre elas, comparando a nossa
realidade com a ética que delas emana, poderemos medir quão forte ou verdadeira
é a nossa liberdade, individual ou colectiva, que desajeitadamente tendemos a
pensar que é sempre muita.
Ao compilar estas
frases e as pôr em lugar de destaque no seu curso de física, o Prof. Haelterman
não enquadra meramente o seu ensino na linha filosófica da escola. Mostra que
tal como a ciência não é o que é sem a sua história, a universidade não é o que
é sem a sua memória. Ao relembrar aqueles nomes e aqueles propósitos, de
fundadores, de professores, de alunos da ULB, o Prof. Haelterman, numa
comovente lição, mostra que quem ensina e aprende na ULB pertence a uma
construção colectiva e logo faz recair sobre os seus pupilos a pesada mas estimulante
responsabilidade de honrar uma tradição e de continuar uma trajectória, não
sendo obrigatoriamente os melhores, mas sendo pelo menos tão livres.
Quando comecei a ler as sebentas do Prof. Haelterman, pensei
que iria reavivar o meu conhecimento sobre ciclos termodinâmicos e fenómenos de
ressonância. Afinal, foram mais conceitos básicos da cadeira de Liberdade I que
me vieram a memória: que não há conhecimento sem liberdade nem liberdade sem
conhecimento, que a dúvida é mais fértil do que a certeza e que a liberdade é
trabalho para uma vida inteira. Tendemos a esquecer estes fundamentais,
distraídos que estamos com as torrentes de lodo que jorram do ecrã da televisão
ou com o vácuo que reina nos corredores dos centros comerciais e nas cabeças
que por detrás de um “nickname” insultam o próximo na “internet”.
Como nota final: tendemos hoje a ver como estranhas pessoas
como o Prof. Haelterman, que investigam física e recuperam frases libertárias
de homens de séculos passados, apodando-as de “nerds” e outros títulos de pouco
gosto e menor senso. Mas são pessoas normalíssimas, iguais a qualquer um, que
simplesmente optaram por não abdicar de partes importantes do que a condição
humana tem para nos oferecer. O Professor Marc Haelterman é admirado e estimado
pelos seus alunos, tem um sentido de humor notável que transparece nas suas
folhas, bebe copos e pode ser visto a dançar o “I’m bad” do Michael Jackson no
vídeo abaixo do Youtube. Parece de facto livre.