domingo, abril 06, 2014

Exposição fotográfica - Edição especial Seul (a preto-e-branco)

 Mais Seul, agora filtrada a preto-e-branco:

 Em Songong-ro, zona comercial mais fina, os clientes são puxados da rua para as lojas. Esta menina prometia empoleirada num banco 50% de desconto e teve vergonha de ser fotografada.


 Arranha-céus em Eljiro.


Zona de escritórios em Namdaemunno.


 Cantinho em Yulgok-ro.


O mais tradicional mercado de rua de Seul, no bairro de Namdaemunsijang, fica aberto até tarde.


 Calças curtas no imaculado metro de Seul.


 Vendedora de tudo um pouco em Gwanhundong: chás, flores, blocos, colheres de pau de vários calibres.


 Vendedora de quase nada em Namdaemunro: apenas umas tartes.


Em Yulgok-ro, mural sobre a eternidade da juventude.

Exposição fotográfica - Edição Seul (a cores)

Os intervalos de uma visita de trabalho a Seul permitiram-me conhecer um pouco da Coreia da Sul. O vizinho do norte é tão omnipresente no imaginário ocidental que a reacção da maior parte dos meus amigos quando soube que eu ia foi "Vais à Coreia? Grande maluco". Mas a vida na Coreia do Sul não tem nada a ver com os espectáculos de marionetes humanas promovidos pela monarquia absoluta de Kim Il-sung, filho e neto. Em Seul encontrei uma cidade de espírito muito asiático, em que os arranha-céus de pinta nova-iorquina coexistem com os cheiros adocicados dos vendedores ambulantes de comida, uma sociedade de vanguarda no uso e abuso da electrónica e tradicional na persistência da cortesia, afluente sem ser exuberante, metódica e ao mesmo tempo turbulenta, em que o ar esfíngico dos velhos faz contraponto à expressividade dos adolescentes que enxameiam pelas ruas.

Foi uma primeira tentativa de imagens com o iPhone, que se revelou tão razoável como máquina fotográfica quanto fraquinho como telefone.


De caminho para a parte velha da cidade, pela longa avenida Jongno, fica a Jongno Tower, pertencente à Samsung, típica representante de uma arquitectura de aço e vidro que encontramos por todo centro da cidade, muito destruído durante a Guerra da Coreia.


Junto à Jongno Tower, uma manifestação de deficientes em cadeiras de rodas motorizadas apitava ruidosamente sob o olhar do corpo de intervenção, em maior número do que os manifestantes. Aqui o batalhão 13-qualquer coisa-3, pronto a intervir no caso de voar alguma muleta.


 Continuando pela Jongno, algo de "very typical" anuncia a chegada à zona mais tradicional.


 Como se pode ler, estamos à porta de casa do Sr. Ung, na colina de Bukchon. Não fora o quadro eléctrico, poderíamos esperar ver sair um guerreiro de sabre. Bukchon-ro é uma zona de casas com arquitectura antiga, embora por vezes descaracterizada por materiais modernos, e algo "trendy" com as suas pequenas lojas de artesanato e produtos locais.

Do lado oeste de Bukchon, a silhueta do palácio de Gyeonbokgung.


Pormenor do portão que dá acesso aos jardins do palácio de Changdeokgung, do lado leste de Bukchon-ro.


De regresso ao centro através da rua pedestre Gwanhundong, uma zona cheia de vida com galerias de arte, restaurantes, lojas de moda. Aqui, um "atelier" de caricatura.


Metade dos milhares de passeantes em Gwanhundong exibiam com ar de gozo malandro um destes objectos peculiares. É uma espécie de fartura, vendida nesta próspera loja.


Regressando ao centro, em Myeongdong, zona comercial moderna, janta-se um "galbi", espécie de paelha temperada com dinamite. O centro da mesa é ocupado por um bico de fogão industrial. Os talheres e os guardanapos estão numas gavetas laterais da mesa e vai-se tirando. A eficiência operacional coreana.


No moderno metropolitano de Seul, cena típica: jovem coreana em roupa ocidental betinha, pendurada ao telemóvel; jovem coreana em roupa ocidental mais "streetwear", pendurada ao telemóvel; idoso coreano sem telemóvel a passar pelas brasas. Abaixo dos cinquenta anos, o coreano ADORA o telemóvel.


 "Very typical coca-cola ad", em Euljiro.


 Espectáculo de música tradicional na Marina de Seul.

sábado, abril 05, 2014

As coisas boas das coisas boas



Um casal idoso parte da sua terra na província para visitar os filhos que moram na capital. Os filhos recebem-nos com cortesia mas sem disponibilidade, embrenhados que estão no seu dia-a-dia. Só uma nora, viúva de um filho morto na guerra, se desdobra para os levar a passear, sempre com um sorriso. Para os manter ocupados, os filhos pagam-lhes uma estadia num hotel de uma zona turística junto ao mar, mas a agitação nocturna é excessiva para os velhotes que regressam inopinadamente, gerando uma situação embaraçosa uma vez que a filha que os albergava tinha nessa noite convidados a dormir em casa e não tinha lugar para eles. Por isto, a velhota vai dormir a casa da nora viúva e o velhote vai visitar antigos camaradas do serviço militar. Nessa noite, alguma franqueza vem à superfície: mãe e esposa de um homem morto na guerra comungam saudades e, noutro local, o velhote e o amigos bebem um copito a mais e confessam desilusões nas relações com os filhos, cujas carreiras defraudaram as suas inconfessadas expectativas. Depois, o casal regressa à sua terra, onde a senhora adoece gravemente. Os filhos acorrem ao leito de morte. Nesse momento intenso, mesmo os mais pequenos gestos ganham um significado enorme e tal não escapa ao velhote, proporcionando-lhe a ocasião para fazer com que, no final, o Bem triunfe.

Isto é o que se passa em “Viagem a Tóquio”, filme de 1953 de Yasujiro Ozu. Passa-se portanto no Japão e logo com a serenidade, a nitidez e a leveza de traço que encontramos na escrita de Tanizaki, na “manga” de Jiro Taniguchi, nas gravuras de Hokusai, ou mais geralmente na cultura japonesa, uma cultura fortíssima, imperturbável na sua perenidade de séculos reverentes, vergando ao seu poder a luz dos néons de Tóquio ou o glamor dos últimos modelos da electrónica de consumo.


Há certos livros e certos filmes  e certos quadros e certas conversas à volta de uma boa mesa dos quais não saímos os mesmos. Podendo ser mais ligeiros ou mais pesados, mais fáceis ou mais difíceis, mais alegres ou mais tristes, são objectos e momentos poderosos, diferentes e que por isso nos diferenciam. Quase sempre não se dão de graça, implicam um esforço, uma perseverança, por vezes uma luta. Pedem-nos inteligência, rigor, honestidade, tempo. Por serem distintos e por nos transformarem, sem medo poderemos dizer deles que são coisas boas, boas por mais férteis, mais esclarecedoras, mais belas do que a mediania ou pobreza que são o que mais vemos à nossa volta.

“Viagem a Tóquio” pertence certamente a esta privilegiada condição.  Alia um cuidado estético notável – para quem gostar de fotografia a preto-e-branco, cada fotograma é um quadro – a uma reflexão profunda sobre a condição humana, sobre algumas das suas aspirações e incoerências, sobre a importância que podemos ter nas vidas dos outros, sobre o ricochete que as boas acções fazem nos outros e nos tornam a nós pessoas melhores, sobre – sobretudo sobre – a essência do Bem. O tema do Bem é central neste filme, e Ozu convida-nos a desvendar uma visão do Bem completamente diferente do maniqueísmo primário que nos chove em cima nas séries americanas, de que o Bem é o oposto do Mal e que basta combater o Mal para fazer o Bem. Para Ozu, o oposto do Bem não é o Mal mas sim a ausência do Bem, e essa ausência pode ser tão terrível ou às vezes pior que o Mal, por mais insidiosa e menos visível.

As questões sobre as quais Ozu vai reflectindo no seu filme aparecem quase todas, senão todas, em qualquer grande obra, em qualquer coisa boa. São as questões que atormentam os grandes filósofos (e também aqueles que lêem as suas pessegadas herméticas) e que são poucas e simples e sempre mais ou menos as mesmas desde que os nossos antepassados pré-históricos olharam para o céu estrelado e deixaram o espírito vaguear. De onde vimos e para onde vamos? O que aqui fazemos? Existe um sentido para isto tudo? Quem sou eu e quem são os outros? Há uma verdade e uma mentira, um certo e um errado, um belo e um feio?

Os bons escritores e pintores e músicos e realizadores pegam nestas questões eternas e embrulham-nas de novidade, convidando-nos a vê-las por novos ângulos de entre a infinidade que o nosso mundo tri-dimensional permite. Produzem as tais coisas boas e ajudam-nos a que nós, em contacto com elas, pensemos e cresçamos. A arte é muitas vezes o condão de tornar simples o que é complexo e misterioso. Por exemplo: uns dias antes de “Viagem a Tóquio”, vira o “Conto de Inverno” do Eric Rohmer. O assunto: Deus como fonte de luz, a possibilidade da revelação, a graça divina que recompensa a fé, tudo cenas “top level”. O veículo: uma história aparentemente superficial sobre as relações amorosas e as dúvidas existenciais de uma cabeleireira do subúrbio parisiense. A lição: vale a pena procurar a felicidade porque ela acaba por surgir nas nossas vidas, porque a primavera sucede fatalmente ao inverno. Assim, em duas penadas e em duas horas de entretenimento.


A ideia deste texto sobre as boas coisas que as coisas boas nos proporcionam surgiu-me quando escrevia o texto imediatamente anterior e congeminava sobre as razões que levam a sociedade a presenciar acriticamente o mal ou a ausência de bem e a tudo aceitar, não só nos políticos como no vizinho do lado, sem um julgamento inteligente. Não fiz nenhum estudo de carácter científico, mas tenho a forte impressão que este comportamento, que revela ausência de referências senão de valores, vem de vidas pouco expostas às coisas boas das coisas boas.

Eu tenho mais dez anos de escolaridade que o meu pai, mas se no fim da vida tiver lido um terço dos livros que ele leu, vai ser um pau. E, paradoxalmente, sou entre os da minha geração um leitor compulsivo. Entre a geração do meu pai e a dos meus filhos, a televisão e o Facebook, que são meios fanhozíssimos, ocuparam uma grande parte dos tempos livres e fizeram que as pessoas perdessem exposição a coisas boas e às boas coisas que as acompanham. Quando faço afirmações destas, cá em casa olham-me como se estivesse a defender o manuscrito em rolo face ao livro impresso, ou o cilindro de cera face ao CD. E aproveitam a deixa para me olharem de cima da burra e me chamarem velho. Mas a questão não é tanto de suportes, é de conteúdos. O problema da TV não reside na transmissão por fibra óptica ou no visionamento por LEDs, reside no Big Brother, no arengar partidário dos comentadores convidados, no jornalismo oficioso, na violência estrutural das séries da Fox ou na presença sequer do Goucha, do Baião ou da Teresa Guilherme. Ver qualquer programa da Teresa Guilherme uma vez por acidente de “zapping” já não deve fazer bem à saúde. Ver Teresa Guilherme todas as semanas deve ter o mesmo efeito no intelecto que enfiar a cabeça dentro do reactor de Fukushima. Uma sociedade com Teresa Guilherme no topo das audiências está no ponto para ter um lindo enterro.

Não será certamente através da televisão de hoje, nem do pinga-pinga do Facebook, nem das vanidades da Caras que nós, enquanto sociedade, buscaremos os valores de que necessitamos para deixar de ser a marmelada diletante em que nos tornámos nos últimos tempos. Encontraremos valores seguros numa discussão franca com amigos, numa reflexão pessoal crítica e informada e também na vivência das coisas boas das coisas boas, que estão aí à disposição para nos preencherem o dia, de vez em quando. Eu acredito nisto, em parte por preciosa herança, em parte por calhar às vezes encontrar perdida nos bolsos, para surpresa minha, alguma coisa boa de uma coisa boa.