sábado, setembro 14, 2013

Crítica da crítica dos críticos a “A gaiola dourada”




Lembrando na ocasião o jovem que foi para Schondorf, trabalhou e voltou


Esta semana fui às Amoreiras ao ruminatório número 1. À entrada, filas de obedientes abasteciam-se de contentores de pipocas e de copázios com bebidas da The Coca-Cola Company. Ignorei as severas leis do “marketing” e sentei-me de mãos livres a ver o filme, cercado de mastigantes e sorvedores.

A fita intitulava-se “A Gaiola Dourada”. Fui motivado a assistir pela conjugação de dois factos: críticas bastante demolidoras no jornal Público por um lado e o afluxo maciço de espectadores pelo outro. O “crítico de cinema” português satisfaz muitas vezes as suas necessidades pequeno-burguesas de superioridade intelectual confundindo hermetismo e espessura. Por isso é normal que um filme quase-português, com porteiras, desencontros e bujardas, com um enredo linear que põe as massas à gargalhada, leve deles um medíocre. Esta gaiola dourada não tem nem a simbologia privada, nem a velocidade de ciclo geológico de um filme do César Monteiro, cometendo ainda o sumo dislate de se financiar com receitas de bilheteira. Logo, medíocre. Medíocre abençoado, que me levantou do sofá, fez pegar no carro, comprar bilhete e aturar a turba circundante que emborcava milho estalado com um alarde alarve.


A história dos portugueses que emigraram para a Europa nos anos cinquenta e sessenta é uma história de injustiças. A injustiça de um país que não lhes deu nem sobrevivência, nem escolha, que os deixou ir com meia-dúzia de tarecos e menos do que isso de letras. A injustiça dos que os receberam, que lhes agradeceram eles acartarem os seus tijolos e limparem as suas escadas com a ignorante soberba que caracteriza os que não conseguem ser mais do que meramente soberbos. A injustiça dos que cá ficaram, que assentados em cadeirões despreocupados, em Lisboa ou no Porto, gozavam com a algarviada franco-portuguesa que eles falavam ou com os azulejos das casas de férias que eles construíam. No fundo, por cá, os bem-pensantes  reprovavam que gente “daquela condição” pudesse ter aquele dinheiro, e por isso besuntaram a palavra emigrante com um verniz pejorativo, cometendo a injustiça adicional de fazer deles uma segunda vez emigrantes, agora na sua própria terra. Também a injustiça dos próprios filhos, que graças ao trabalho insane e à poupança abnegada dos pais, cresceram noutro meio e noutra condição, e não os entenderam e por vezes nem lhes disseram obrigado. Finalmente, a injustiça do Estado, que lhes agradeceu os milhões que remeteram anos a fio, equilibrando a balança de pagamentos, e o emprego que foram induzindo em zonas deprimidas com a construção das suas casas e as suas despesas de Verão, racionando de forma avara professores de português em Paris ou regateando a sua representação através do voto nas eleições nacionais. A estátua ao emigrante não deveria estar nas pracetas das aldeias da Beira mas antes na arcada do Terreiro do Paço, em frente às portas vidradas do Ministério das Finanças.

A estas injustiças, a esta Injustiça,  responderam os emigrantes, tantas e tantas vezes, com trabalho pesado a turnos e a desoras, com vidas próprias viradas para o mínimo, com auto-anulação em prol de outros, com uma saudade resiliente que os fazia regressar a uma terra que os maltratara, os maltratava e não os merecia de todo. Pondo as coisas com palavras mais claras, responderam com perseverança, brio, honestidade, honradez e amor aos filhos e à Pátria. Talvez de modo ainda mais claro, responderam com glória, uma glória muito deles porque os de fora, tanto lá como cá, não tinham capacidades intelectuais para a perceber.

Uma vez, estando eu em Caracas, fui convidado a uma sessão de fados numa associação cultural portuguesa. Cheguei e encontrei um ambiente festivo, os homens de fato, as mulheres com os seus melhores vestidos e jóias, maquilhadas, as crianças endomingadas em gravatinhas e laçarotes. Refém dos meus clichés idiotas, dei comigo a comentar mentalmente que tal era mesmo “coisa de emigrante”. A meio do espectáculo, anunciou-se uma ligação telefónica à vila minhota de onde muitos deles tinham vindo. Ouviram-se nos altifalantes, vindo do lado de lá da linha, vozes de emigrantes regressados à origem, antigos vizinhos, que arrancaram soluços à minha volta. Depois cantou-se um fado para, pelo telefone, ouvirem em Portugal. Olhando ao meu redor, vendo todos aqueles homens e mulheres com vidas de trinta e quarenta anos feitas fora do seu país, com filhos e netos já venezuelanos, deixar lágrimas incontidas rolar pela face e cair nas gravatas e nos decotes, percebi o pouco que percebia e percebi que em Portugal, onde andamos sempre com a boca cheia de Lusíadas e comunidades portuguesas, de amor à Pátria percebemos muito pouco.

Apesar de serem milhões, apesar de certamente terem muito para contar, os emigrantes portugueses dessa leva da segunda metade do século passado não mereceram a atenção da nossa arte. Que me lembre, há um filme do João Canijo, “Ganhar a vida”, que se passa no meio emigrante de Paris mas cujo foco é outro. Há um ou outro poema solto. Há uma lindíssima música instrumental de José Mário Branco, “Gare de Austerlitz”, que abre o disco “Mudam-se os tempos, mudam-se às vontades” e que encapsula em dois minutos e pouco a tristeza da partida, o espanto da chegada, a timidez de uma vida nova num mundo de repente enorme e hostil, a resignação, o destino e, até, uma ténue esperança no futuro. Infelizmente, depois deste brilharete, logo na música seguinte do mesmo disco, Branco borra a pintura de forma injusta e canalha, sucumbindo à cartilha e verberando o sucesso económico do emigrante que regressa como se a obrigação deste fosse manter-se saudavelmente miserável: “milionário que voltaste/dois tostões para os que atraiçoaste”.

O filme “A gaiola dourada” preenche este vazio. Realizado por Rubén Alves, filho de um operário e de uma porteira portugueses de Paris semelhantes às suas personagens principais, o filme mostra-nos de dentro, com uma franqueza que por vezes aleija, as idiossincrasias, as virtudes, os defeitos, os dramas, as aspirações, as alegrias dos portugueses de primeira e segunda geração em França. Ao fazê-lo, não procura teses subtis ou explicações sociológicas: dá simplesmente palco e voz a quem, transparente numa sociedade estratificada, nunca os teve. Talvez por isso muito das centenas de porteiras portuguesas que em Paris foram convidadas para a estreia se comoveram o tempo todo, dizendo que pela primeira vez se falava delas.


Para falar delas, destas pessoas, Rubén Alves não foge aos estereótipos sobre os emigrantes que pululam em França e Portugal. Pelo contrário: constrói com eles e a partir deles, sem vergonha e sem medo do que se possa pensar. Com a autoridade que lhe advém da sua luso-descendência, assume essas caricaturas, normaliza-as e fá-las desfilar numa comédia ligeira, de situações, de enganos, de personagens, que procura o espectador. A espaços, o riso que contagia a sala dá lugar a momentos de grande carga emotiva e cúmplice com o público. Para estes, contribui muito a excelência da representação da minha colega de liceu Rita Blanco, uma senhora actriz, em particular em dois discretos momentos: o tremor na voz, que me puxou uma lágrima, quando na chegada à casa do Douro comenta sobre o futuro neto que “este já vai nascer nesta casa”, frase que fecha um ciclo e dá sentido a duas vidas; e o olhar na cena da escadaria da casa de Paris, quando o filho tem vergonha de a reconhecer como sua mãe diante da amiga e ela, por amor mas rasgada por dentro, não se denuncia. Esta última cena constitui, estou convencido, um pedido de desculpas de Rubén Alves a sua mãe por algo semelhante que se passou entre eles: não consigo deixar de sentir que aquele momento do filme possui algo mais pessoal.

Perguntou-me o meu filho, no dia seguinte, se tinha achado um bom filme. Bom certamente que sim, pela boa disposição que gerou,  pelas emoções que lembrou, pela justiça que trouxe, pelas pessoas que repescou de novo para dentro de nossas vidas. Grande, não sei: não são as minhas palavras, nem as dos críticos mais encartados que fazem grandes os filmes. É mais o tempo que se encarrega disso. Os severos escribas do Público notarão que o realizador usa recursos fáceis para puxar o riso, como palavrões, esgares  ou tropelias exageradas. É verdade, mas também a eles recorreram Gil Vicente, ou Chaplin, ou Risi e Scola, ou os Monty Python ou os grandes nomes do teatro do século XVII que precisavam para poder comer que as filas do fundo também rissem. Os mesmos detractores apontarão a cena final como indigna de uma obra de autor. Eles que vão ver como Molière terminava as suas comédias, para abrir os olhos. Mas esta é uma discussão vã, porque estou certo que Rubén Alves não teve a pretensão de realizar o “Couraçado Potemkine”, mas apenas de falar sobre esta sua e agora nossa gente e poder com propriedade e sentimento de dever cumprido escrever no genérico a frase que o deixou quite: “Á mes parents”.


Os franceses, a maioria do milhão e tal de pessoas que já viu o filme, tiveram a oportunidade de mirar o interior dos sonhos da “communauté portugaise”, de entender que há vida e sentimento para além das janelas que se limpam e dos canos que se reparam e, de caminho, levados pela mão arguta e enluvada de Alves, testemunhar um pouco da cabotinice com que tendem frequentemente demais a disfarçar as suas próprias limitações, sobrando em arrogância para cima dos outros. Quanto a nós, portugueses, saídos da sala de projecção e deixadas assentar as ideias, poderemos concluir que aprendemos com humor um pouco mais sobre os nossos conterrâneos de Paris e sobre as suas qualidades e vícios que são muito os nossos, de todos os portugueses, onde quer que estejamos à face do planeta. Sobre os personagens de “A gaiola dourada” apetece repetir as palavras de Eça sobre o Gonçalo Mendes Ramires da ilustre casa:

- Assim todo completo, com o bem e com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.

domingo, setembro 08, 2013

Férias III - Galegos

Namorando no adro da igreja de Santa Maria, A Corunha

Feira na Alameda, Pontevedra

Dando de comer aos pombos na Praça de Ferrería, Pontevedra

Homem-estátua na Praça da Imaculada, Santiago de Compostela, debaixo de quase 40º

Criança brincando no fresco da Praça da Verdura, Pontevedra

Peregrino descansando os pés na Praça do Obradoiro, junto ao km zero, Santiago de Compostela

Mulher fugindo ao calor da Praça Maior, Ourense

Fumando um cigarro na Rua da Raína, Santiago de Compostela

Tômbola de presuntos, feira na Alameda, Pontevedra

Férias II – Modas de Verão



Fui repreendido pela crítica especializada por o tema do meu anterior “post” não se coadunar com o alto coturno intelectual que – hum, hum – caracteriza esta referência do ciberespaço que é o Mataspeak. Não concordo com o remoque: discorrer sobre as francesinhas do Porto é o mesmo que fazê-lo sobre um soneto de Shakespeare, a “Ronda” do Rembrandt, um drible do Messi ou qualquer outro píncaro das capacidades humanas. Mas para satisfazer tão exigente público, iniciei de imediato e de empreitada um texto sobre a influência da visão aristotélica no pensamento da classe política portuguesa. Provavelmente por não possuir formação em ciência política, não fui capaz de encontrar essa influência, nem qualquer outra, nem mesmo o próprio pensamento, pelo que desisti. Sai por isso mais um “post” sobre um tema levezinho.

À leitora que esperava mais substrato e que o manifestou aqui num comentário, recomendo que espere que o meu cérebro volte de férias, visto que não acompanhou o corpo no regresso, ou então que leia Kierkegaard  ou, se fôr mesmo muito exigente, o preâmbulo de qualquer portaria que venha no Diário da República.

Li este Verão uma excelente novela de Erri de Luca, “Três cavalos”. Nela, o personagem principal comenta que a vida de um homem dura tanto quanto as vidas de três cavalos e que ele estava a começar o terceiro, e último, cavalo. E assim estou eu, a um mês do meio século. Este facto, que aceito com tranquilidade, levantou à minha volta algumas excitações de família e amigos. Parece que tenho que fazer uma grande festa porque cinquenta anos só se fazem uma vez. É verdade, a mesma verdade que aos quarenta e nove e aos quarenta e oito. O ser humano tem uma certa fussanga por números redondos que sinceramente não partilho. Surpreendem-me às vezes os gasolineiros naquelas bombas onda ainda os há, que passam um minuto a dar micro-bombadas para tentar fazer chegar a contagem no mostrador aos 58,00 litros, carregando quase a medo no manípulo como se essa suave discrição tornasse o combustível um fluído mais compressível. Olham ansiosos para os dígitos a ver se batem no valor certo e exibem um esgar de dor quando lhes foge a mão e passam para os 58,01. E depois emitem o recibo num computador que, tal como eu, tanto se lhe dá como se lhe deu o número que lá tem dentro. Para mim, cinquenta é um número como qualquer outro na recta dos reais, mas a malta não desarma com a história da festa. Suspeito que está a ver se come, bebe e folga à minha conta, e por isso vai discutindo à minha revelia sítios, menus e aparelhagens de som.

Enquanto não fazem a festa, mulher e filhos vão-se inquietando com o meu visual e acham que eu não devia andar nestes dias de caloraça de calças mas sim com uns calções pelo joelho que agora vão de moda. Os argumentos são que fico mais fresco e pareço mais jovem e chegaram a oferecer-me um par que eu recambiei de imediato de volta para a loja. Tal como um “aileron” num Seat Ibiza não faz dele um Ferrari, não são uns calções que vão fazer de mim o rapaz que eu já fui. E depois “ome qu’é ome” não veste uma coisa daquelas, por muito fresco que seja ou talvez justamente por ser fresco demais.

Entretanto, esta polémica caseira levou-me a reparar que de facto muitos tipos da minha idade andam com os ditos calções ao fim-de-semana ou em férias. O quadro geral é este, de baixo para cima: sapato de vela sem meias, perna peluda, o referido calção, polo de marca distendido no estômago pela pança avantajada, colarinhos ladeando a papada, cãs nas têmporas ou em alternativa careca no cocuruto. Apocalíptico, não vos parece? Se isto é um jovem, eu sou um feto. Ainda por cima, como por regra o pinto-calçudo arrasta nas suas imediações uma dondoca atiazada, sobra um arzinho pacóvio e o inevitável cheiro a Cascais ao domingo. Quando o evangelista João quis representar a Besta no Livro do Apocalipse, descreveu-a cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres. Se João ainda vivesse e passeasse por um centro comercial, descreveria as bestas com bermudas e mocassinos sem meias, com muito pouca cabeça e não sei bem quantos chifres.

Houve outra moda de Verão com que me deparei este Agosto, em dois casamentos que beneficiaram da minha presença, e que me fez rir bastante. Como seria normal, os noivos eram jovens, dos verdadeiros, na casa dos vinte, e convidaram amigas, muitas, como seria expectável da mesma idade. Pude observar com atenção, enquanto não levei uma violenta reprimenda da minha cara-metade, que a “toilette” escolhida por praticamente todas para estes dias de canícula consistia num vestido ligeiro, de saia muito curta, vide curtíssima, e nuns sapatos com saltos que podiam chegar aos vinte centímetros e solas de meio-quilo de madeira. Calculo que seja uma tortura andar empoleirado naquilo, embora de facto dê altura e elegância. Qualquer taco-de-pia fica que nem o Michael Jordan. Mas o sofrimento necessário a ser elegante é bem notório: à mínima inclinação do chão, especialmente se empedrado, tanto donzelas como donas começavam a tremelicar dos canivetes, bamboleando em grupo como pinguins em migração (mas bastante mais bonitas de se ver), procurando em desespero um corrimão ou um braço galante que evitasse a queda eminente.

Os “designers” de calçado pertencem provavelmente ao conjunto dos mais acirrados inimigos das mulheres, juntamente com os talibãs afegãos e os assassinos em série das séries da Fox. Só um ódio patológico explica certas modas que procuram o feitio que mais cruelmente aperte as falangetas, os materiais que com mais certeza derrapem na calçada, as alturas de salto que mais emperiquitem o andar. Desta vez beberam a sua funesta inspiração nos coturnos com que os actores de tragédia elevavam os personagens de maior nobreza, na Grécia antiga, ou então nas monumentais sapatolas dos Kiss e dos Slade, grupos de uma parolice excelente de tão extrema, que animaram as minhas primeiras festas de garagem, nos idos de 1973, a menos de metade do meu primeiro cavalo.
  
                         

domingo, setembro 01, 2013

Férias I – Capa negra II




Como os leitores mais fiéis poderão deduzir, se conhecerem o Mataspeak de cor de trás para a frente, costumo dividir as minhas férias estivais entre quinze dias em Porto Covo com família e maralha e alguns dias de “marketing” matrimonial com quem me vai aturando. Este ano optámos para estes últimos por algo mais itinerante, indo conhecer Galiza e Norte de Portugal, dois países sem Estado povoados respectivamente por galegos e “homens do Norte”.

De caminho, ao passar o Douro, desvio logo no fim da ponte da Arrábida para o Campo Alegre, em demanda de uma francesinha. O Porto tem algumas coisas de que se orgulhar: um certo fascínio de cidade burguesa e libertária, uma cepa escondida de onde brota boa literatura, música e pintura, a vista da Ribeira para a Ponte D.Luís e as caves de Gaia e – admito-o a contra-gosto, num assomo de fraqueza e de franqueza – uma equipa de futebol jeitosa. Além destas, claro, tem a francesinha.

Surpreende que uma receita tão recente se tenha tornado em muito pouco tempo omnipresente numa região. Existe unanimidade em que foi criada no restaurante Regaleira, a Santo Ildefonso, nos anos cinquenta do século passado, por Daniel David Silva, que trouxe de França onde estivera emigrado o “croque-monsieur”, o desamaricou colocando salsicha e linguiça e o alagou num molho picante único na cozinha portuguesa. Nenhum outro prato nacional procura competir desta maneira com o “chilli” e o “tandoori”. É uma flor tropical que, garrida, se enraizou contra toda a probabilidade no cinzento do granito nortenho.
 

Paradoxalmente, a minha primeira experiência de francesinha tive-a no Algarve, pelos meus doze anos. Foi na grande casa junto à ria da Fuzeta pertencente aos padrinhos da minha mãe, onde eu passava sempre uns quinze dias de Verão, uma casa de muitos irmãos e primos e afilhados que apinhavam o vasto “quarto dos rapazes” e onde eu aprendi alguns dos principais princípios da vida. Os mais velhos, já estudantes na Universidade do Porto, organizaram certa noite uma patuscada de francesinhas para mais de vinte pessoas, para curiosidade da maioria dos convidados que nunca tinha ouvido falar em tal coisa.  Recordo-me que os universitários preparam dois tachinhos de molho: um, para a generalidade dos comensais, com meio pacote de piri-piri. Outro, mais pequeno, só para eles, com dois pacotes. Comi a minha francesinha com o molho “light” e fiquei para aí duas horas com a língua dependurada dentro de um copo de água fresca, a ver se passava. Sempre fiquei a imaginar como seria o molho “hard”, provavelmente uma coisa mefistofélica a meio caminho entre o ácido sulfúrico e o fogo dos infernos, mas que os estudantes aviaram com ar satisfeito entremeando com um comboio de cervejas Sagres. Em todo o caso, ambos os tachinhos respeitaram os cânones da receita: o piri-piri, tal como o sal, é “q.b.”.

Depois dessa experiência precoce tomei-lhe o gosto, que só consigo saciar na capital do Norte. Já experimentei algumas em Lisboa mas sempre sem sucesso: ou são uma trampa sem vergonha ou falta-lhes pelo menos um ingrediente qualquer, talvez a aragem que passa pelas águas do Douro.  Desforro-me pois nas idas ao Porto, cada qual com sua francesinha. Costumo comê-las no Capa Negra II, na Rua do Campo Alegre, como desta vez, ou no Convívio, ao pé do Bom Sucesso. Ambos estabelecimentos com uma pinta simpática a anos setenta, com generoso balcão americano, empregados de camisa branca e calça negra com ar de trinta anos de casa, e a um canto o cubículo da tabacaria, atapetado a revistas, mal deixando ver o postigo por onde a mão do lojista se estende para entregar o troco.

O Capa Negra II e o Convívio são duas apostas seguras, mas recentemente um colega do Porto, tripeiro de gema, daqueles que põe us no meio e és no final das palavras, explicou-me onde se encontra a melhor francesinha do Porto. Levou-nos lá, só que parámos o carro e batemos com o nariz na porta, que era dia de folga. Fomos portanto a outro sítio, onde ele declarou:

- Aqui é a melhor francesinha do Porto!
- Não era no outro sítio?
- Era se estivesse aberto. Como estava fechado passou a ser aqui.

No Porto, a melhor francesinha é em todo lado. É onde se calhar estar.