segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Exposição fotográfica (XLIII)

Passeio em Marvão, Agosto de 2012











A cena porca (De-evolução I)



No Expresso do sábado anterior, dois artigos falavam de porcos. Não os que estão a pensar mas neste caso porcos mesmo, mamíferos bunodontes não-ruminantes artiodáctilos da família dos suínos.

O primeiro era a crónica de Miguel Sousa Tavares, que a dada parte comentava uma sequência de acontecimentos que eu ignorava: um camião despistou-se e virou-se na auto-estrada A1, soltando pelo asfalto porcos mortos e porcos vivos; quando a GNR estava a arrebanhar os vivos para desobstruir a via, um dos guardas deu um pontapé no traseiro de um porco que se escapava; um transeunte filmou a cena e colocou-a no “Youtube”; gerou-se um clamor pelos “Facebook” da vida, exigindo o enforcamento alto e curto do guarda e uma indemnização financeira à vítima; a GNR abriu um processo e anunciou que o praça irá ser ouvido e uma tal Associação Animal, da qual ignoro se animal é substantivo ou adjectivo, reclamou uma “punição razoável” sugerindo uma suspensão temporária do militar.

O segundo era uma notícia sobre o procedimento de infracção que a Comissão Europeia vai iniciar contra Portugal e outros países, por não aplicação de uma diretiva relativa às “normas mínimas de proteção de suínos”. Esta peça de arte legislativa procura garantir que, entre muitas outras coisas, os cerdos disponham de “um ambiente que corresponda às suas necessidades de exercício e de comportamento exploratório”, com regras que visam garantir, a concretização dos “contactos sociais” que “as porcas estabelecem facilmente com outros suínos”, mas para os quais precisam de “liberdade de movimentos e um ambiente variado”. Assim sendo, proclama a directiva que “deverá, portanto, ser proibido manter as porcas em confinamento rigoroso contínuo”. Prevêem-se áreas mínimas (1,64 m2 para as marrãs e uns mais faustosos 2,25 para as mais avantajadas porcas) e um revestimento térreo melhorado (“pavimento sólido contínuo do qual não mais de 15% seja reservado às aberturas de drenagem”). O comissário europeu responsável pela saúde e defesa do consumidor, o maltês Tonio Borg, pretende sanções dissuasoras sobre os prevaricadores, sem esclarecer no entanto se o castigo de Abelardo será dissuasão suficiente.

Pausa para respirar fundo.

Nem sei por onde começar. Se pela hipocrisia, se pela estupidez, se pela discreta gravidade do que tudo isto revela. Talvez por esta última.

Existe hoje em dia uma fauna, dos gabinetes de Bruxelas às rodas de copos do Bairro, que julga que os direitos dos animais são direitos naturais, universais e inalienáveis, equiparados ou até iguais aos do Homem. Não entrarei aqui na discussão filosófica se existem sequer direitos naturais ou se qualquer direito resulta meramente de uma construção positiva do Homem. Vários doutores de cátedra não se conseguiram entender sobre este magno assunto, pelo que não sou eu, rasteiro “blogger”, que irei resolver essa contenda. Quanto muito posso mandar um palpite, uma “uneducated guess”, que resulta da minha condição ateia e da minha observação do planeta que habito. E o que eu vejo é que o estado natural das coisas consiste numa cadeia alimentar e numa lei do mais forte pela posse do território, da água, da fêmea mais fecunda. Nunca vi ou ouvi falar de um leão que não esfacelasse a gazela por objecção de consciência. E o mundo dos homens, quando deixado à solta, não anda muito longe disto, como aliás a crise que vivemos bem demonstra. Tendo por isso a pensar que os Direitos do Homem, bem como a frágil capacidade de os fazer respeitar em certos lugares e em certos momentos, são uma construção dos homens, linda como o templo das Cariátides ou a demonstração do teorema de Pitágoras e que muito nos honra, mas apenas uma preciosa construção cuja alternativa é o “estado de natureza” que nos descreveu Hobbes.

Justamente por serem uma construção, a força dos Direitos do Homem advém do grau da sua exclusividade, da sua inalienabilidade e da sua universalidade. Ou aceitamos como axioma de base que o homem é a medida de todas as coisas, isto para recuperar o “sound-bite” de Protágoras, ou em alternativa consideramos que os Direitos do Homem podem ser cerceados por outras realidades. E se formos por esta última via, temos as condições ideais para que, detalhe prático após detalhe prático, os Direitos do Homem vão sendo corroídos até se tornarem uma ruína irrelevante.

Por outras palavras, a defesa por vezes patética dos “direitos” – aspas minhas – dos animais é uma manifestação epidérmica de um cancro bem mais grave que é o decaimento do respeito pelos direitos humanos na Europa e no mundo.

Não entendo que a tal Comissão Europeia que se preocupa tanto com as “necessidades de exercício e de comportamento exploratório” dos suínos ao ponto de punir financeiramente os estados-membro que não os respeitam seja a mesma que obriga esses estados a mandar para a rua sem abrigo reformados em fim de vida ou a cortar os medicamentos mais caros a doentes crónicos ou a rejeitar qualquer ajuda a quem já nada tem, só para salvaguardar o risco de credores. Quando as “necessidades de exercício e de comportamento exploratório” dos recos se tornam mais importantes que as necessidades de saúde, educação ou trabalho dos seres humanos, está tudo dito no que a Direitos do Homem se refere. Quando se reservam 2,25 m2 de área para que as porcas se movimentem à vontade e os sem-abrigo que fogem ao frio nos recantos dos prédios têm quarenta centímetros de rebordo de uma vitrina para dormir, qualquer conversa sobre moral colectiva ganha contornos de ordinarice.

E esta indignação vale também para a associação animal, ou animalesca ou lá o que é, que quer suspender o pobre guarda da GNR que tentou evitar com o pé que um reco fugisse da auto-estrada. Se quiserem ser úteis, empenhem as suas juvenis energias para defender o “homo sapiens sapiens”, o biótipo mais barbaramente atacado e maltratado nos dias grisalhos que correm.

Com isto não estou obviamente a dizer que se deve ou mesmo pode maltratar gratuitamente os animais. Claro que não. Ou que não devemos ficar genuinamente embevecidos por uma demonstração de fidelidade de um cão para com o seu dono. Claro que devemos. Mas temos que entender que a nossa repulsa em relação à violência gratuita sobre os animais, ou a nossa admiração pelo arfar meigo e ansioso com que um cão espera o dono à porta de uma loja, ocorrem porque nós, humanidade, conseguimos a espaços dar um passo além da nossa condição animal e conceber a violência como mal e a fidelidade como bem. E como única espécie do planeta com essa capacidade de gerar consciência, não me parece muito grave que nos demos a nós próprios um lugarzinho especial na hierarquia dos direitos.


Se não dermos aos nossos direitos, de todos, essa primazia, se não os acarinharmos como únicos e especiais, se não puxarmos o lustro à memória dos que por eles lutaram, das Termópilas às Ardenas, estaremos maduros para levar – ou continuar a levar – uma grande porrada e retroceder cem ou duzentos na escadaria civilizacional. Ao preocupar-nos mais com o bem-estar dos porcos do que com os básicos das pessoas estamos a aumentar o risco desse trambolhão.


Recordo uma vez em que fui a casa de um amiga que gosta muito de animais, albergando em casa, em permanência, um certo jardim zoológico (actualmente dois gatos, um cão e uma cobra, para além de visitas ocasionais como eu), logo após um dos seus gatos se ter escapado e ter sido morto na vizinhança por uma matilha de cães. Conhecendo o seu carinho pelo gato fugido, esperava encontrá-la derreada mas achei-a até relativamente animada, para minha surpresa. Quando lhe comentei este facto, ela retorquiu:

- Fiquei um bocadinho triste, mas já passou. Era só um animal, não era uma criança.

Sabedoria de sobra, que chegava para a Associação Animal, para a Comissão Europeia e restante bicheza que por aí anda.