sábado, janeiro 19, 2013

Exposição fotográfica (XLII)

Passeio em Castelo de Vide, numa tarde de quarenta graus em Agosto











Três instantâneos



A primeira foto é em papel acetinado. Estamos os dois de bibe, minúsculos, os sorrisos que nem esgares virados para a objectiva, a mesa da sala do jardim infantil coberta de papéis rabiscados por cores de feltro que o preto e branco não nos diz quais são.

A segunda foto revelei-a eu no estúdio improvisado que tinhas montado numa casa de banho em tua casa, naquele papel baratucho da Orwo, importado da RDA, que íamos comprar numa lojita junto ao cemitério dos Prazeres. O tempo esbateu o contraste, mas lá estou eu a fazer o pino no jardim de casa dos meus pais na outra banda, todo vestido de negro com os meus adidas apontados ao céu, e tu a rires-te a segurares-me as pernas para eu não cair – sempre fui fraco de pinos – falando com um segundo plano de gozões que desfaziam provavelmente na minha falta de jeito.

A terceira foto ninguém a tirou, e é pena, mas está na minha memória como qualquer fotografia moderna está numa memória qualquer e por isso é para todos os efeitos uma fotografia. Foi  naquele abraço recente com que me recebeste à porta depois de quatro anos e tal sem nos vermos, um abraço sorrido e fraterno como muito do tempo que passou entre a primeira e a terceira.



Na altura da primeira foto, as coisas eram simples. Deixávamos a nossa imaginação garatujar as folhas que nos metiam diante. Íamos em fila de mão dada para as mesinhas da cantina. Protestávamos contra a sopa. Dormíamos a sesta quando nos diziam. Éramos amigos porque todas as crianças de quatro anos são por definição amigas.

Pelos anos da segunda foto, as coisas continuavam simples, só que com uma ilusão de esplendor na relva, de glória na flor.  Absorvíamos o saber com o gozo de uma corrida, jogávamos cada voleibolada como se fosse uma final olímpica, vivíamos cada mulher como se fosse a primeira ou a última ou a única (na realidade, mais raparigas que mulheres e em menor número do que gostaríamos), cada ida à praia como um caminho marítimo para a Índia, bebíamos cada noite como se não fosse haver aurora, discutíamos violentamente qual a melhor banda como se isso interessasse. Preparavamo-nos para os grandes feitos que estávamos convictos virem aí. Éramos amigos porque nos sentáramos casualmente lado-a-lado no autocarro da vida, na melhor parte do seu percurso.

Depois fomo-nos só aparentemente separando. Tu procuravas algo que eu talvez tenha encontrado longe de onde tu o procuravas. Eu dei-me por satisfeito, tu continuaste inquirindo. E um dia a tua demanda arrastou-te para longe e eu achei natural e desejei-te boa sorte. Durante quatro anos, quase cinco, deixaste de ter cara. Eras uma notícia, um rumor: parece que volta no final do mês, ou do ano.

E de repente regressaste. E à porta de casa da tua mãe tirámos a terceira foto e eu entendi que afinal nunca nos havíamos separado, que afinal não tinhas ido para longe, mesmo tendo ido para uns quilómetros valentes de distância no mapa, que não relevava o que procurávamos agora mas o que encontráramos antes.

Pelos anos da terceira foto, as coisas tornaram-se simples: éramos amigos, sem mais.

sábado, janeiro 05, 2013

Revelações de ano novo



No estertor do ano, muito provavelmente por acaso mas seria maravilhoso que assim não fosse, encontrei no “Youtube” excertos de uma entrevista radiofónica a Ian Dury em que ele fala sobre as suas principais músicas. Uma das que explica é “My old man”, que Dury tinha escrito para o seu falecido pai e cuja letra aqui deixei no dia da morte do meu pai, em vinte e cinco de Maio de dois mil e oito.

Essa música continua a tocar entre nós, entre eu e ele, passados estes anos. Sempre que me apetece chamar o meu pai, basta-me repetir mentalmente as palavras que Dury deixou gravadas no concerto do London Town and Country Club em 1990, com aquela pronúncia “cockney”:

- Play the “baiss”, Norman, play the “baiss”!

E logo na minha cabeça Norman Watt-Roy, os olhos esgalhados de anfetamina, os dedos de ferro em luva de veludo a arrebentar com as cordas do baixo, arranca com as notas que alcatifam o caminho para a entrada da voz falada, quase melosa, de Ian Dury e também de difusas e felizes memórias do “meu velho” e de mim.

Na entrevista recebi duas prendinhas da quadra.

Uma foi a lembrança, sempre útil nestes tempos em que a arrogância mundana arroga que tudo se pode pôr em causa, de que por respeito tudo tem um limite. Dury, o iconoclasta por excelência, que sem piedade gozava o prato em todas as músicas, que escrevia sobre sexo com todos  os efes e erres, especialmente os primeiros, sobre discriminação racial com os insultos que os racistas usam, para que se percebesse bem do que se estava a falar, sobre a sua deficiência física e as dos outros com um desbragamento que ofendeu os politicamente correctos censores da BBC, Dury, dizia, conta que teve um cuidado particular na escrita desse poema sobre seu pai para não melindrar a sua mãe. Há de facto um momento em que se para. Tomara tantos perceberem isso.

A segunda, todavia melhor, embrulhada em papel ainda mais vistoso, foi quando Dury explica que ao princípio, quanto cantava esta música em público, vinham-lhe as lágrimas aos olhos, mas que tal depois  deixou de acontecer:

- “Agora já não é uma tragédia. Passou a ser parte de mim” – conclui, fechando a entrevista.

Ao ouvir isto, constatei que comigo se passara um pouco a mesma coisa. O drama ficou lá longe, preso a uma data concreta, a um farrapo de tempo. E ele soltou-se e instalou-se de um modo recôndito em mim, e por cá anda. Óptimo que assim seja.