sábado, dezembro 15, 2012

De-evolução



Quando tinha quinze anos, pedi à minha madrinha que me trouxesse, de uma viagem ao estrangeiro que ela ia encetar, um disco que ainda não havia em Portugal: “Q: Are we not men? A: We are Devo?”, dos então ainda muito obscuros Devo. Quando regressou, para minha surpresa, disse-me:

- Olha, estive com ele na mão mas olhei para a capa e achei que não era coisa que se oferecesse a um rapaz de quinze anos.

Apreciei a franqueza – podia simplesmente ter inventado que não o encontrara – mas desapontou-me o que na altura me pareceu conservadorismo retrógrado. O disco ostentava na capa fotografias desfocadas de caras deformadas por meias de vidro e de um cientista desgrenhado de óculos de mergulho e luvas de cozinha. Para mim tal era meramente “muita louco” e nessas idades tende-se a achar que a loucura aloucada tem algo de contestatário ou disruptivo. Nada que merecesse portanto – pensava eu – tamanha acto censório.


Mas o que me parecia pura paródia era afinal assunto sério. Os Devo foram (e vão sendo, só que de cãs nas fontes) uma banda que construiu a sua carreira à volta do conceito de “de-evolução”, que surge nas letras, nas capas dos albuns, na coreografia dos espectáculos. “De-evolucão” porque a humanidade tinha parado de evoluir e tinha começado a regredir, a “desevoluir”, tendência que os membros do grupo percepcionavam no espírito de manada e nas disfuncionalidades da sociedade americana.  Esta visão cínica e pessimista da humanidade, travestida de gozo, fora amplificada pela perda de inocência resultante do massacre da universidade de Kent State, perpetrado pela polícia e em que morreram quatro estudantes, baleados a uma distância prudente, não fossem as forças da ordem levar com uma sebenta de Análise III na cabeça. Gerald Casale, um dos líderes da banda, estava presente e viu morrer uma amiga. Nesse dia, contou, deixou de ser “hippie” e talvez tenham nascido os Devo. 

Acto contínuo, saíu em 1978 o tal “Q: Are we not men? A: We are Devo?”, um rasgo na música “pop/rock” - ou não fosse produzido por Brian Eno. Continha momentos grandiosos, como o “Gut feeling” ou a versão discoteca do “(I can get no) Satisfaction”, e versos marados como “Something about the way you taste/Makes me want to clear my throat”, mas ficou sobretudo conhecido pela reprodução da banda sonora de um filmezito que ganhara um concurso de curtas-metragens em 1976. O filme chamava-se “The truth about de-evolution” e continha a canção “Jocko Homo”, sobre o homem anedótico em direcção ao qual a humanidade de-evoluía. No refrão, o cantor perguntava:

- Are we not men?

E o coro alienado retorquia, dúbio:

- We are Devo!


Lembrei-me dos Devo e da sua folestria informada numa destas sextas à noite, durante um jantar de bacalhau com natas, bom tinto e mousse de chocolates After Eight no amplo sotão de solteirão ou, melhor, divorciadão do amigo J. Discutiu-se a crise ao café e eu, teorizando sobre as causas, concluí uma frase com “por isso evoluímos até aqui”. Tal inabilidade semântica mereceu logo um aparte certeiro, todo ele de uma síntese “Churchilliana”, por parte do amigo Z:

- Evoluímos?

De facto, não, Z, tens razão. De-evoluímos. Voltámos para trás. Caímos de costas aos trambolhões. Regressámos acéfalos a mundos paleolíticos de canibalismo, mocas na mão e urros para amedrontar o oponente. E mesmo nesses remotos talvez encontrássemos por aí  gente mais evoluída, como aqui já contei. 

É sobre essa de-evolução, essa involução, que gostaria de falar nalguns dos “posts” que se irão seguir.

sábado, dezembro 01, 2012

Elogio do papo-seco



Vivo numa casa onde acontecem cenas milagrosas: a fruta aparece-me já descascada no prato e de manhã o pão multiplica-se na cesta a horas madrugadoras, qual Canã em Campolide. Alguns amigos dizem com meia-inveja na voz que tais maravilhas se devem ao facto de ser casado com uma santa, criticando-me com suma injustiça por ser um calão doméstico.

No fim-de-semana anterior o mais novo esteve doente, a santa esteve de guarida e tocou-me a mim ir ao pão, evento que tal como os jogos olímpicos ocorre de quatro em quatro anos. Para não sobrecarregar as minhas meninges com informação excessiva, as instruções recebidas foram sumárias:

- Trazes cinco bolinhas de água!

Saí à rua em demanda das esferas aquáticas. O destino era um pequeno café que também vende pão. Aí, pedi o pedido, a empregada levantou o pano que cobria a cesta e escolheu com a mão enluvada num plástico cinco pãezinhos redondos dum tipo que tem estado na moda lá em casa, de crosta maleável e massa ligeiramente escura. Entre as bolinhas, o meu olhar vislumbrou um papo-seco solitário. De repente, veio-me à boca um sabor de infância, de pequeno-almoço nas manhãs de praia ou lanche no regresso da escola, e memórias da leveza do saco do pão opado e do aroma estaladiço que às vezes me assaltava as narinas nas ruas das padarias. E foram essas memórias, mais do que eu próprio, que pediram à senhora:

- Ponha-me também esse papo-seco.
- Esse quê? – respondeu ela, sem perceber.
- Esse papo-seco. Isto! – apontei.
- Ah! Uma maminha! – retorquiu, juntando o papo-seco aos outros.

No mundo da minha infância, só me lembro em Lisboa de dois tipos de pão: o papo-seco de hoje, que era branco e estaladiço, e o papo-seco de ontem, mais enrugado e esponjoso. Toda a gente sabia o que era um papo-seco e toda a gente sabia o que era uma carcaça, que era o mesmo que um papo-seco. Depois, quando íamos à província, à terra como se dizia na altura, havia outros pães, muitas vezes grandes, cortados à fatia ou arrancados em generosos nacos, mas que só aí se podiam encontrar.


Conhecia bem essa realidade. Em Loulé, ao fundo de um baldio dando para a Avenida José da Costa Mealha, a avenida principal onde desfilava o carnaval com os gigantones de que eu tinha medo, os meus tios exploravam uma padaria que hoje a ASAE fecharia na sua sanha desinfectante. Produziam uns pães grandes, de massa densa e cor de pano-cru, de crosta castanha. O forno ardia noite e dia alimentado por lenha de um monte que ocupava permanentemente  o fundo do baldio, vários metros quadrados por três de altura que pululavam de uma fauna inquietante de rataria e lagartixas. Em frente ao forno, numa ampla sala revestida a azulejo branco, longas caixas de madeira forradas de panos claros iam testemunhando o processo produtivo: vazias ao fim de dia e durante a noite, quando se ouvia o zumbido eléctrico do peneiro mecânico ou da máquina de amassar; pela alvorada cheias de bolas brancas de massa crua, alinhadas como crânios numa parada, esperando que o meu tio as distribuísse com perícia pela vasta boca do forno, esgrimindo uma pá de madeira cujo cabo me parecia infinito; ou já pelo dia fora, carregadas com as esferas tostadas dos pães de quilo ou quilo e meio, esperando a clientela feita de velhotas de bata de casa ou homens de chapéu de feltro preto, que ao chegar gritavam cheios de urgência pelos de casa até que alguém os atendesse, demorando-se depois para vários dedos de conversa.

Por vezes a minha tia enchia até ao tecto com pães acabados de cozer o seu velho Fiat 127 vermelho, cuja caixa de velocidades nunca passou da terceira mudança – pelo menos assim o reza a lenda familiar. Ia vender pelas feiras e terras algarvias e regressava tarde, de carro vazio e de bolso cheio. Outras vezes eram forasteiros que assomavam à porta sempre aberta da casa do forno, perguntando esperançados se havia pão ou se a fornada estava para breve, que tinham ainda o regresso para fazer. Outras ainda apareciam vizinhas amparando com dificuldade largos tabuleiros de cabrito ou bacalhau para uma ceia de família, entregando-os ao meu tio que os carregava para dentro do forno, cujo calor de um vermelho vivo também se alugava.

Do meu tio tenho uma memória exclusiva de um homem vestido de branco, a cabeça coberta por um boné de pano branco, permanentemente enfarinhado na roupa, nas mãos, nas pregas envelhecidas do queixo onde o pontilhado preto da barba mal escanhoada se misturava com o branco do pó de trigo. Mesmo quando tento lembrar-me dele fora dali, na imagem de uma festa de família ou de uma das suas raras visitas a Lisboa, visualizo-o com improbabilidade no seu traje branco de trabalho, com a sua touca branca e a brancura da sua farinha espalhada por todo o lado, no cenário de um casamento ou da sala de meus pais.

Aparentemente não tinha horas de sono, porque a qualquer momento o encontraríamos nalgum recanto do seu pequeno mundo, abrindo uma saca de farinha tirada do monte que por vezes chegava ao tecto e que eu galgava como um alpinista, contente com a minha valentia, vigiando a consistência da mistura que o garfo de ferro negro revolvia na cuba da máquina, facejando as bolas de massa que depois dobrava com um movimento do cutelo da mão, dando-lhes a forma final ou empoleirando-as às meias-dúzias na espátula que as levava ao fogo de pinhas e ramagens. Por vezes aparecia junto da minha tia na casa térrea contígua à padaria, de salas sucessivas de paredes de cal tosca e tectos de cana onde ocasionalmente se passeavam uma ou outra osga pertencentes já à mobília. Sentava-se, comia algo empurrado com um copo de vinho tinto, via uns minutos de televisão e voltava para a sua vida. Era um homem de poucas palavras. Recebia-me com um sorriso diáfano murmurando simplesmente o meu nome oficial entre a família do Algarve: “Cárlínhos”. A frase mais longa que me recordo de lhe ouvir foi quando me propus mandar uma pedrada num rato que aparecera junto às sacas de pano da farinha, dita com grande meiguice na voz:

- Não se faz mal aos ratinhos que são a minha companha!

Para além do branco e da farinha, e do trabalho contínuo aparentemente sem queixa e sem esforço, o que mais me lembro nele é desta gentileza despretensiosa. Tenho saudades dele. E, claro, tenho também saudades do pão que as suas mãos de artesão, de operário, de artista – palavras quase sinónimas – criavam dia após dia de uma vida, como tantos outros desde tempos já sem memória. Saído do forno recendia, a crosta estalava, a massa tenra fumegava. O sabor era ímpar e amadurecia com os dias, tornando-se mais ázimo e enraizado. Ao fim de uma semana, os coutos sobrantes ainda permitiam as melhores torradas do mundo.


Mais cedo ou mais tarde acabava o veraneio e acabavam os devaneios e regressava a Lisboa onde não havia o pão do meu tio, mas continuavam os papo-secos. Depois vieram outros tempos que são os de agora, em que cada padaria oferece trinta variedades, cada supermercado outras trinta. Ao ponto que há quem venda papo-secos sem saber como eles se chamam, como a senhora do cafézinho da minha rua, que olhou para o papo-seco e viu uma maminha. Sem saber que papo-seco quer dizer janota, e que aqueles pães se chamavam assim por serem comida de gente fina, bem antes de se tornarem o pão de todos os da minha geração.