domingo, novembro 25, 2012

Elogio da lágrima


Ah, but those tears are pearl which thy love sheds,
and they are rich, and ransom all ill deeds.

William Shakespeare, in "Sonnets"



No entretanto, Obama foi reeleito presidente dos Estados Unidos, para um certo alívio da humanidade, por peculiar que este sentimento posso parecer. Afinal, nos últimos quatro anos, o mundo descobriu que Obama não era um profeta de uma nova era mas apenas mais um homem aos comandos da máquina  imperial, capaz de mandar os “marines” executar um inimigo ou de jogar o jogo de cintura para obter meios-acordos na câmara dos representantes.  E o seu adversário até parecia menos básico que a memória do Bush filho. Ainda assim, quando nas madrugadas por esse mundo fora as televisões foram anunciando a vitória de Obama, o planeta suspirou:

- Uff!

Eu explico isto de uma forma simples. Acho que estamos todos a precisar de alguma esperança no meio deste pântano todo onde soçobram expectativas e poupanças, para além de valores. Quando o barco foi ao fundo, o que interessa ao náufrago no meio da tormenta é se aquilo a que se está a agarrar é bóia que o sustenha ou âncora que o afunde. E se boiar, tanto se lhe dá que seja madeira ou esferovite. Por isso, visto do lado de cá do Atlântico, onde nos vão dando blocos de cimento a que nos agarrar, Obama faz figura de jangada.

Estive uma vez num curso sobre liderança em que o monitor começou por exemplificar o contrário de liderança:

- Imaginem que alguém chegava e dizia “Isto vai ser uma coisa horrível, mas sigam-me!”. Qual de vocês ia atrás dele?

Esta é uma lição simples que não chega aos ouvidos e às mentes ortonormadas de quem hoje manda na Europa e em Portugal. Já do outro lado, há um líder que sabe que um dos seus papéis é o de manter a chama viva, como os guardiões do fogo das tribos pré-históricas. Tal é bem explícito no seu discurso de vitória, inflamado, comungante e prenhe de esperança. Obama é um grande orador, espécimen raro numa era de comunicados oficiais e alheamento das massas. A sua conversa não é a da inevitabilidade da desgraça mas a da possibilidade do sucesso, por difíceis que sejam os tempos, se a luta da vontade individual for respaldada pela solidariedade colectiva. E verdade se diga que alguma coisa ele fez desde 2008: salvou indústrias inteiras e muito emprego pela intervenção do Estado, coisa só aparentemente tabu na América; conseguiu uma reforma do apoio social à saúde que meia dúzia de presidentes anteriores tentaram e não conseguiram; manteve a economia à tona e a crescer; e voltou a pôr os Estados Unidos no mapa civilizacional de onde Bush os tinha apagado.

No dia seguinte à eleição, Obama proferiu outro discurso, mais curto, nas instalações da sua candidatura, dirigido aos voluntários que por ele fizeram campanha, sobretudo jovens, agradecendo o seu trabalho. Comparou os jovens que eles são com o jovem que ele foi e as perspectivas de ambos e comoveu-se, chorando umas lágrimas. Estas lágrimas, que não tenho dúvidas quando as vejo que são genuínas,  são uma declaração política fundamental nos tempos que correm. Se os outros nos emocionarem, talvez entendamos o caminho, talvez façamos qualquer coisa. Os outros, cada um dos outros, as pessoas, têm que estar no centro da acção colectiva. Obama disse-o com palavras no discurso de vitória, nomeando exemplos individuais, mas disse-o com lágrimas no dia seguinte. E as palavras, especialmente se ditas na euforia de um circo eleitoral, podem ser mentirosas; as lágrimas, mais dificilmente.



Claro que para os menos atentos – para ser suave – o que eu estou a dizer é uma mariquice – outra vez suave. Quando vi o vídeo da alocação de Obama aos jovens da sua campanha foi no “site” do “Le Monde”. Claro que logo no primeiro comentário, mais abaixo na página, o inevitável franciú anónimo gozava com o “espectáculo teatral patético”. Eu, que conheço bem os franceses, sei que o excesso de cartesianismo pode facilmente resvalar para uma patetice endógena. E esta minha apreciação vale a quem a ela se candidate, independentemente da nacionalidade.

Somos ensinados de pequenos que os homens não choram. Na realidade só o Homem é que chora. A lágrima, como o riso, são nossas marcas exclusivas. Na sua forma mais pura, são os dois vectores com que se pode construir o plano da nossa inteligência.

domingo, novembro 18, 2012

As bruxas de Aquila




“Quis custodiet ipsos custodes?”

Juvenal


Em 1692, em Salem Village, hoje Danvers no estado do Massachussetts, crianças com um comportamento bizarro são pressionadas por adultos para denunciar quem as enfeitiçou. Acabam por delatar como bruxas alguns nomes fáceis numa sociedade puritana e fechada: uma mendiga, uma velha acamada, uma escrava negra. Rapidamente, a torpeza humana entra em acção e várias dezenas de outras pessoas sofrem acusações de bruxaria e outras rebaldarias com o demo. A essa proliferação terá ajudado certamente o facto de a única maneira que os visados tinham para escapar à pena capital era confessarem e denunciarem outros que como eles fossem culpados de más práticas. A histeria colectiva durou um ano e deixou um rasto de dezenas de mortos, alguns sob baixa tortura ou abandonados no cárcere. Para que nunca nos esqueçamos que pode sempre haver pior quando a estupidez humana sai da jaula, registe-se que uma das acusadas era uma criança de quatro anos.

O episódio das bruxas de Salem marcou a sociedade colonial americana, pela ignorância e pela arbitrariedade dos processos judiciais. Possivelmente os fundadores da nova nação americana tinham na memória esta ocorrência oitenta anos mais tarde quando redigiram algumas das salvaguardas da constituição. A literatura, o teatro e o cinema americanos continuam a recorrer de vez em quando às bruxas de Salem para alertar para a eternidade de certos perigos.


Felizmente, o Massachussetts de hoje é muito diferente do território amedrontado de 1692. Um dos estados mais avançados da união, alberga algumas das melhores universidades do mundo. Só pelo MIT passaram 78 prémios Nobel. A ignorância sectária teve assim que procurar outros terrenos de caça. Neste ano de graça de 2012, instalou-se confortavelmente em Itália: em Outubro passado, seis cientistas e um funcionário italianos foram condenados a seis anos de prisão cada por o comité de análise de riscos a que pertenciam não ter conseguido prever o sismo que destruiu a cidade, três anos antes.

Qualquer um sabe, mesmo sem grande conhecimentos de geofísica, que no actual estado do conhecimento sobre o fenómeno a ocorrência dos terramotos não é previsível. Pela lógica se deduz que a ausência de terramotos também não é previsível. Apesar disso, um juiz italiano contemporâneo, formado em direito numa universidade onde provavelmente nalgum departamento se ensinarão probabilidades e engenharia sísmica, um homem que redigirá os seus laudos num computador e andará de telemóvel no bolso, decidiu mandar para a prisão homens que se limitaram a emitir a sua melhor opinião sobre um fenómeno que todos sabemos imprevisível e que - para azar deles e de outros - falharam nesse julgamento. Condenou-os como se tivessem eles que assumir as culpas dos mortos e dos destroços. Acontece que não foram eles que mataram e que destruíram. Foi o sismo.

Esta sentença conta-nos muito sobre como é vã a nossa pretensão de modernidade ou de civilização. As certezas com que o juiz Marco Billi de 2012 enviou sete homens para a prisão são as mesmas com que o juiz William Stoughton de 1692 enviou dezenas para a forca. Ambas advêm da convicção ignara de que existindo um mal, deve haver um culpado. E as duas satisfazem turbas necessitadas de vingança, e receosas: em 1692, do desconhecido; em 2012, do incerto.

Ora a incerteza viverá com a humanidade até ao fim dos seus dias. A crença na infalibilidade da ciência tem tanto de fé como a crença noutra infalibilidade qualquer, por exemplo a do papa. Resulta tão somente do desconhecimento do que é a ciência, de como se formula e de como avança. Não só o cientista, como o leigo que procura entender a ciência, sabem que ela é conhecimento mas também limite do conhecimento. A existência desse limite implica que a nossa própria existência seja arriscada: podemos morrer porque não sabemos prever um sismo ou curar um cancro. Procurar um culpado para essas tragédias revela apenas que continuamos a não entender a essência da nossa precariedade.

Tá tudo bem...

... não se passou nada: foram só umas mini-férias por causa de trabalheira a mais e inspiração a menos. Citando o "exterminador implacável" (o dos filmes, não o do ministério das finanças):

- No problema!