sábado, setembro 08, 2012

Exposição fotográfica (XLI)

Dia 9 de Agosto em Sines: reflexos na vizinhança do novo centro cultural







Os outros eles


Antes de ir de férias passei na livraria do Instituto Franco-Português, uma aposta sempre sem risco, e comprei ao acaso meia-dúzia de livros de bolso fininhos, daqueles que se propoem no topo de uma pilha e se despacham numa tarde de praia, a maioria de autores que desconhecia para ver ao que sabiam.

Um desses livrinhos intitulava-se “Uma mulher” e escrevera-o Annie Ernaux, uma professora francesa de letras com uma obra essencialmente autobiográfica. “Uma mulher” conta a história da mãe da autora, nascida num meio pobre e rural entre as duas grandes guerras, que ascende a pulso a uma pequena burguesia comerciante e proporciona à filha o salto cultural para uma classe média urbana de fim de século, sem nunca a chegar a entender muito bem. Uma história que quase poderíamos dizer banal, não fosse o facto de cada vida ser única na sua infinidade de facetas, uma história parecida com muitas que de perto ou de dentro cada um de nós conheceu. Também eu ouvi aos mais velhos contar sobre vilas como a vila onde a mãe de Annie explorava um pequeno café, terras socialmente estratificadas em castas por debaixo da aparência de convivialidade, onde todos sabiam o lugar que o berço lhes reservara, desde o trabalhador rural ao operário ao lojista ao patrão ao médico ao senhor da terra, numa espiral de posses e de letras que só os anos sessenta vieram baralhar um pouco.

O que me surpreendeu na escrita de Annie Ernaux foi o modo sociológico, a pinça e escalpelo, com que a autora descreveu a vida e a personalidade e as capacidades e incapacidades da sua mãe, das suas diferentes mães – a criança nascida pobre, a adolescente trabalhadora, a mulher de armas que defendia o seu pequeno negócio, a viúva só, a velha senil – com a mesma objectividade nua com que o biólogo observa ao microscópio as errâncias do micróbio. E isto sem deixar de transparecer, em frequentes passagens da narrativa, um amor que se percebe incondicional, sem perguntas e sem a expectativa de respostas.  Ernaux separa totalmente a personagem histórica (todos somos personagens históricas, a História é feita tanto de mesteirais como de príncipes) da personagem afectiva e relacional. Expõe-nos a mãe com as suas idiossincracias de classe, enformada pelo seu contexto, com os seus tiques, aspirações e decepções de muito pequena burguesia ascendente. 


Esta crueza chocou-me um pouco, ao fechar e arrumar o livro na estante, pela sua frieza e quase crueldade. Mas pensando melhor, a autora não fez mais que transpôr para livro algo que também nós fazemos. Fazemo-lo de forma institiva, quase automaticamente, mas com uma lucidez que se atentarmos nos surpreenderá. Também nós, dentro das nossas cabeças, concebemos dualmente aqueles que nos são queridos, pais, filhos, familiares, amigos, separando-os neles e nos outros eles. Os primeiros são aquele novelo de emoções, de vínculos, de experiências convividas, de traços de personalidade, que formam o amor e a amizade. Os segundos, os outros eles, são seres sociológicos, que percebemos sem o confessar como fruto das suas circunstâncias, das suas origens e comportamentos de classe, das suas ascensões e decadências na escala social, das suas possibilidades e limitações culturais ou económicas. Identificamos esses outros eles de milhentas formas, numa reverência à autoridade, numa pretensão de melhor gosto, na defesa de uma aparência, na escolha de uma compra, num tique de grupo ou no ataque a um terceiro.

Normalmente não temos destes outros eles uma percepção consciente da sua presença. Vivemos a serenidade ou o  entusiamo do momento e gozamos o amigo, o pai, o filho, independentemente do outrém que eles sejam. Mais raramente, num momento de fastio, de aborrecimento ou de irritação poderemos deixar escapar um vislumbre destes outros eles em frases mal-humoradas como “às vezes tem a mania”, “falta-lhe ali qualquer coisa” ou “não se lhe pode pedir mais”, que usamos como desculpas de um comportamento que não nos agradou. Mas por pouco que estejamos atentos, estamos cientes. Se nos escrutinarmos com atenção e honestidade, acharemos dentro de nós todos esses outros eles. E se usarmos de suficiente franqueza, até o outro eu encontraremos.

domingo, setembro 02, 2012

Exposição fotográfica (XL)


 Porto Covo numa manhã de Agosto, à hora do mercado







sábado, setembro 01, 2012

O estranho caso do homem que não sorria


Agosto é mês de notícias bárbaras, repescadas por estagiários de jornalismo nos cafundós das agências noticiosas e da “internet” para preencher páginas de jornal quando a política e a economia de férias interrompem o fluxo certinho de intrigas e calamidades. Ontem, para fechar o mês, o Público ostentava em última página, no lugar da habitual crónica do Vasco Pulido Valente, a descoberta no Camboja de um espécie de peixes que têm o pénis na cabeça.  Eu por acaso conheço algumas pessoas, homens e mulheres, que têm o pénis na cabeça, só que metaforicamente falando, mas estava longe de imaginar que a selecção natural tinha mesmo pregado à natureza uma partida destas. Pergunto-me se a divulgação desta notícia irá aumentar as receitas turísticas do Camboja, com “charters” de reformadas nórdicas a banhos no delta do rio Mekong.

Mas a nova mais perturbante do mês veio logo no início, nos primeiros dias dos jogos olímpicos de Londres, quando a polícia britânica prendeu um homem que assistia à prova à beira da estrada, no meio da multidão, com base no mui suspeito indício de ele não estar a sorrir - o que a diligente autoridade considerou atitude estranha. Veio depois a verificar-se que o senhor tinha um ricto facial, causado por uma doença, que lhe impedia mover os músculos da cara, tendo sido libertado com um pedido de desculpas pela maçada.
                        

Razão tem o jornal humorístico Inimigo Público quando adopta como mote “se não aconteceu, podia ter acontecido”. Por muito que os humoristas se esforcem para ampliar as fronteiras do “non-sense”, a pose bacoca de agentes políticos, autoridades e outra malta que se tem por séria consegue num golpe de asa fácil ir sempre mais além. Nos anos setenta, os Monty Python realizaram um excelente “sketch” intitulado “Um conto de fadas”, que se passava num reino chamado Vale Feliz onde se dançava e cantava o dia todo e onde quem se sentisse triste ou infeliz ou tivesse problemas de qualquer tipo podia ser perseguido por desrespeito à “Lei da Felicidade” que o rei Otto tinha promulgado. No início do “sketch” assiste-se a um julgamento de um homem apanhado a resmungar. O advogado de defesa ainda tenta justificar o comportamento do seu cliente com o facto de a mulher dele ter morrido nessa manhã, mas tal desculpa esfarrapada provoca uma gargalhada no tribunal e leva o juiz a condenar o acusado a ser “pendurado pelo pescoço até que fique bem disposto”. Ao fazer esta rábula, os Python teriam bem ciente que a patetice alegre tem uma pitada totalitária, mas provavelmente nem eles esperariam que, quarenta anos volvidos, a  polícia de Sua Majestade lhes fizesse concorrência, suspeitando de um homem que não sorria e levando-o para averiguações.

Que os jornais tenham visto como uma anedota de verão que um homem seja preso por não sorrir no meio do convescote geral, e não se alarmem diante da evidência de um sintoma grave de mal-estar de uma sociedade amedrontada, diz muito sobre a imprensa que temos, sobre a sociedade que vamos tendo e sobre como ambas se realimentam como cobras mordendo caudas. Mesmo na “silly season”, este evento sabe muito mais a “season” do que a “silly”, infelizmente.

Este episódio lembra-me outro contado por Ray Bradbury. Nos anos de chumbo do McCarthysmo, Bradbury e um amigo passeavam a pé à noite quando um carro da polícia parou ao pé deles e um dos guardas lhes perguntou o que estavam ali a fazer. Bradbury respondeu “a andar”. O polícia pareceu surpreendido com a resposta e retorquiu, meio-desconfiado:

 - Está bem, mas não o voltem a fazer.

Esta ocorrência inspirou a Bradbury o conto “The pedestrian”, sobre um futuro ditatorial em que era proibido andar a pé.
De facto, um mundo em que a polícia se sente à vontade para suspeitar seja de homens que passeiam, seja de homens que não sorriem, não pode senão levantar receios de uma deriva totalitária a quem tenha dois dedos de testa. E a mim não me serve a desculpa oficial dos responsáveis ingleses, de que a polícia agiu prudentemente tendo em conta a multidão reunida, o mediatismo do evento, o risco do terrorismo, etc. e tal. Repetindo uma tirada de Benjamin Franklin que já aqui citei no blogue, uma sociedade que põe a sua segurança acima da sua liberdade não merece nem uma coisa, nem outra.