domingo, julho 29, 2012

Exposição fotográfica (XXXIX)

Fora e dentro das torres Petronas, em Kuala Lumpur, em Junho passado.


 


 





Carta militar à escala 1:25000


Quem já fez provas de orientação no campo sabe da utilidade dos mapas militares emitidos pelo Instituto Geográfico do Exército. Por muito perdidos que estejamos no meio do mato, um olhar atento e uma análise comparada da vizinhança com o conteúdo do mapa e as coisas começam a fazer sentido: um casebre lá ao fundo, uma linha de alta tensão passando mais acima, uma pendente abrupta à nossa esquerda, um canavial adiante que denuncia uma linha de água. Concluímos que devemos estar aqui e que o nosso caminho tem que ser por ali.

Ora desde há uns anos que andamos todos no mato sem saber para onde vamos. Instalou-se no mundo uma tenebrosa unanimidade onde uma minoria manda palpites e uma maioria repete-os, todos dizendo que só há um caminho e que é por ali, e alegremente nos empurram, inconscientes se no fim do trilho há um destino ou um precipício.

Completamente por acaso, veio-me parar às mãos um livrinho que está para os dias extraviados que correm como a carta militar à escala 1:25000 está para os momentos de desorientação no baixo de uma ribanceira. Encontrei-o no aeroporto de Schiphol e chamou-me a atenção a capa com uma avestruz em pose economista e o título “23 coisas que não lhe dizem sobre o capitalismo”. O autor, Ha-Joon Chang, não pertence, apesar do seu nome e do nome do seu livro, ao comité central do PC chinês: é sul-coreano e professor de economia na modestinha universidade de Cambridge.  Apesar da capa titular ainda “The No. 1 international best-seller”, género de referência que me deixa sempre de pé atrás, acabei por trazer e ainda bem.

O livro organiza-se em 23 capítulos mais uma curta conclusão. Cada um dos capítulos fala sobre uma “coisa”, uma ideia feita papagueada pelo grosso dos políticos, dos académicos e dos média, que Chang, com sabedoria oriental e humor britânico, se entretém a desmontar com argumentos, contra-exemplos e - pasme-se - números e dados reais. Depois de o ler, podemos pelo menos alimentar uma dúvida legítima sobre se existe mesmo uma coisa chamada mercado livre, se as companhias são efectivamente geridas no melhor interesse dos seus accionistas, se o crescimento da riqueza dos mais ricos arrasta de facto o crescimento da riqueza de todos, se precisamos para alguma coisa de mercados financeiros mais eficientes ou se até precisamos deles menos eficientes, etc., etc., etc.

Desmontando um a um cada um desses chavões que os fazedores de opinião nos vendem como sendo saber, Chang vai desenvolvendo a tese segundo a qual a forma de capitalismo que desde os anos oitenta do século passado é apresentada como a via única e o fim da História não passa de um versão parcial e ideológica, um pouco como o whabismo saudita que hoje se confunde geralmente com islamismo não representa a largura do pensamento e a profundidade da história do Islão. O que Chang diz é que o capitalismo é muito mais do que a salsada conservadora e neo-liberal que nos tem sido servida. Tem muitas virtudes mas também defeitos que têm que ser considerados, controlados ou contornados, usando de juízo e capacidade crítica.


E é a falta desta capacidade crítica que, no último capítulo (a “coisa” 23, intitulada “Boas políticas não precisam de bons economistas”), mais consegue revoltar Chang, afastando-o do seu misto de fleugma britânica e serenidade asiática. Professor de economia, dá uma violenta rabecada na classe e indigna-se com as desculpas esfarrapadas com que colegas seus da academia explicam a incapacidade que tiveram de antever a actual crise e, pior ainda, de ver retrospectivamente o papel que a visão única do chamado neo-liberalismo teve no acumular e explodir da crise. Chang reconhece que a economia tal como aplicada nos últimos trinta anos tem sido “pior do que irrelevante”: tem sido danosa para as pessoas. E adianta que isso acontece porque os economistas actuais esqueceram que a economia se pensa, que os grandes vultos se estudam e que olhando para trás ainda há muita informação útil para usar. Comparando, se o que aconteceu aos economistas acontecesse com os engenheiros, seria como se estes esquecessem de repente Newton, Maxwell ou Planck para seguir aqueles inventores charlatães que periodicamente clamam que descobriram o motor contínuo de primeira espécie que vai tirar a humanidade da miséria.

“23 coisas que não lhe dizem sobre o capitalismo” é um livro livre para leitores livres. Desvenda uma porta até aí secreta no cubículo sem saídas do pensamento actual. Cabe-nos a nós, leitores, perceber se queremos sair por essa porta ou ficar onde estamos, à espera que outra apareça.  

sábado, julho 28, 2012

As modernas sesmarias



Foi com algum desapontamento que vi no Expresso do último sábado, naquela secção dos altos e baixos da semana, o ministro Mota Soares alteado pela sua iniciativa de obrigar os beneficiários do Rendimento Social de Inserção a trabalhos úteis para a sociedade. É certo que os altos e baixos não são sítio para jornalismo de jeito, ou jornalismo de todo. E é certo que vivemos tempos propícios à asneira, tempos pastosos em que as noções de bem e de mal se perderam no breu da noite de abandono moral  que caíu sobre o mundo. Mas ainda assim não estava à espera de ler no Expresso - um jornal que se reclama de referência, um jornal que ousava falar de democracia quando publicado nos tempos já longíquos de uma ditadura formal - um elogio aos trabalhos forçados.

No outro dia, o meu filho mais velho perguntou-me o que eu achava de ele praticar voluntariado, como agora se diz, numa iniciativa qualquer da sua universidade. Eu respondi-lhe que me parecia bem, com duas condições: não se sentir no direito de julgar quem ajudasse e não esperar que lhe tivessem que ficar agradecidos. Se conseguisse reuni-las, teria sido de facto generoso e poderia deitar-se ao fim desse dia de consciência tranquila e dormir o sono de um justo. O papel de um pai é também este, o de alertar um filho para os perigos desta vida, e não há perigo maior do que pegar num acto nobre e abastardá-lo pela soberba.

Conheço gente que leva a cabo trabalho do mais meritório, do mais útil para quem sofre e para quem precisa, seja de um pacote de leite, seja de uma palavra de consolo. Tenho um grande amigo com obra feita nesse domínio, merecedora de qualquer encómio, que no entanto diz a quem o quer ouvir que os beneficiários do subsídio de desemprego deveriam ser obrigados a ajudar em obras de voluntariado. Perturba-me que ele não perceba que tal pensamento não só contradiz como apequena a sua excelente prática. Perturba-me isto até mais do que me confunde a noção de que o voluntariado pode não ser voluntário. Não deveria então chamar-se obrigatoriado?


Uma sociedade pode organizar-se numa base mutualista, em que todos pagamos impostos para ter direito a um seguro se por azar perdermos o emprego ou adoecermos gravemente, ou assistencialista, em que quem está em estado de necessidade tem que procurar a caridade para ser ajudado. Pessoalmente, acho a primeira via muito mais eficiente e civilizada do que a segunda e, como tenha a civilização em melhor conta que a barbárie, recomendo-a vivamente. A caridade deveria agir como último recurso apenas quando um sistema básico de solidariedade colectiva falhasse. Lamentavelmente, obrigar quem se ajuda a um qualquer trabalho, por muito socialmente útil que o mesmo pareça, não é nem mutualista nem assistencialista, do modo que acima defini. O adjectivo que assim à primeira me ocorre é esclavagista. Coagir quem se pretende ajudar a um qualquer trabalho ofende a dignidade das pessoas como ofende a dignidade do trabalho.

Pelos vistos, a ideia infeliz do meu amigo foi aproximadamente retomada pelo ministro Pedro Mota Soares. Quer o ministro que os beneficiários do Rendimento Social de Inserção procurem activamente emprego, se quiserem manter essa benesse. Parece-me bem que o façam: esses beneficiários estão a utilizar um recurso escasso que é o dinheiro dos nossos impostos que faz falta para que outros não percam o seu emprego, a hipótese de ter os seus filhos ensinados ou a oportunidade de ver o seu cancro tratado. Quer o ministro acabar com as fraudes no RSI. Parece-me excelente que o consiga,  pelas mesmíssimas razões: abusar do RSI é como roubar os medicamentos do coração ao velhote que anseia pela chegada da magra pensão para os poder comprar. Quer o ministro obrigar aqueles que auferem o RSI a trabalhos úteis. Parece-me péssimo. Que trabalhos? Em que condições? Com que paga? Que eu tenha conhecimento, ao longo da História, gente que trabalhava forçadamente ou era escrava, sob diversos nomes (servo, hilota, etc.), ou era prisioneira. Em qual destas categorias enquadraríamos os beneficiários do RSI coagidos a trabalhar? Escravos ou prisioneiros?


Talvez o ministro devesse tirar sentido do exemplo ocorrido com a Lei das Sesmarias de el-rei D.Fernando, que aprendemos na quarta classe. Procurara D.Fernando atender à dramática falta de mão-de-obra rural com um conjunto de regras, umas que ainda hoje fariam sentido para muita gente, mas outras, como a que recomendava que os “mendigos em idade e força suficientes fossem presos e obrigados a trabalhar pelo sustento ou por soldada”, que só fariam sentido àqueles que acham que a pobreza é pecado. Pois o que aconteceu foi que, apesar destas obrigatoriedades todas num tempo em que havia tropa suficiente e arbitrariedade muita para as fazer respeitar, a Lei das Sesmarias poucos resultados deu. O mesmo D.Fernando, noutra frente, fomentou duas bolsas de seguros marítimos, em Lisboa e no Porto, organizadas cooperativamente, que cobravam aos armadores dois por cento dos fretes e garantiam a recuperação do valor do navio àqueles que os perdessem. Tais bolsas, muito inovadoras à época, tiveram um grande sucesso e foram fundamentais para o desenvolvimento da actividade naval que suportou o surto das nossas Descobertas. Onde quis obrigar, fracassou. Onde procurou a cooperação, teve sucesso.

De todos os tempos, as sociedades de homens livres sempre se deram melhor que as sociedades de escravos. Porque não também hoje?

segunda-feira, julho 16, 2012

Fumo sobre a água

Morreu hoje de cancro Jon Lord, 71, fundador dos Deep Purple e que partilha com Ray Manzarek dos Doors e Dave Greenfield dos Stranglers o pódio indiscutido dos melhores organistas do "rock".

Lord tem sobre outros que vão indo a vantagem de não só deixar saudades como deixar músicas, grandes momentos à distância de um clique de rato no "youtube".

Mataspeak não é muito dado a obituários, mas o que tem que ser, tem que ser. Os Deep Purple são as minhas primeiras audições de "hard rock", os cabelos compridos que eu queria ter aos doze anos, os únicos acordes de guitarra que eu sabia tocar, o abanar o capacete ao som do "Made in Japan", a festa em Sassoeiros em que o "Highway Star" tocou repetidamente das duas até às oito da manhã após o que apanhámos o comboio e fomos em magote ao Rossio à pastelaria Suiça comer "duchesses" com a alarvidade dos dezasseis que chocou as velhotas matinais. E em todas estas memórias toca lá ao fundo o orgão de Lord.

O álbum Deep Purple in Rock, de 1970, é a ideia platónica de um disco de "hard rock", de que todos os outros são cópias degeneradas. Em homenagem a Jon Lord (e porque vale mais a pena do que desperdiçarem os próximos dez minutos e vinte segundos da vossa vida com outra treta qualquer) ouçam, desse disco, o "Child in time".


domingo, julho 15, 2012

Exposição fotográfica (XXXVIII)

Hoje voltei a Vila Nova da Barquinha visitar o velho Mata. No cais Pombeiro, o Tejo corria vazo.

 Pelas onze, já a vila se escondia nas sombras fugindo ao calor inclemente.

 O sol entretinha-se a pintar a carvão nos empedrados e paredes.






Mas há cores que só a cor pode reproduzir. Uma instalação do artista plástico Xana, residente em Lagos, com uma casa alentejana feita em caixas de mercado plantada em pleno Ribatejo.

NOTA: Durante algum tempo a legenda da imagem acima continha dois erros: Xana era dado como mulher algarvia quando é homem lisboeta. Os erros resultam ambos de precipitação minha: retirei o nome do autor e a referência a Lagos da plaquinha ao lado da obra e, sem o conhecer, deduzi o que não devia. As minhas desculpas ao Xana e o meu agradecimento à leitora que me comunicou o erro.