domingo, maio 13, 2012
EUA (VII) – A derrota total do terrorismo
Esta
esteve para estar no “post” anterior, mas merece um só para ela.
Na St.
Paul’s Chapel em Nova Iorque, entre outras homenagens a polícias e bombeiros
que morreram enquanto tentavam salvar pessoas dos destroços das torres gémeas,
há um painel em que estão presas mãozinhas de cartão, pintadas com cores de
lápis ou feltro, com letras de criança ou adulto, com uma mensagem de paz, ou
uma prece, ou uma promessa de eterna memória.
Bem no
meio, comoveu-me uma que entre traços garridos e coraçõezinhos diz muito
singelamente: “Leon, obrigado pela última dança”.
A
rapariga que escreveu esta frase, dispondo de poucos minutos e de poucas
palavras para registar o que sentia, não se focou na dor, na morte ou na
saudade. Deslastrou momentaneamente esse fardo e pensou no abraço, nos dois corpos
que respiraram abraçados num só sopro, na cabeça que encostou num ombro, nos
pés que caminharam o caminho da música, nas mãos que afagaram uma madeixa. E
agradeceu: “Leon, obrigado pela última dança”.
Os
terroristas que mandaram abaixo as duas torres e sacrificaram a vida de três
mil pessoas fizeram-no em nome de uma ideologia totalitária que tem uma das
suas imagens de marca na visão da sexualidade como um acto de propriedade e das
mulheres como seres impuros. Onde eles mandam, a música, a dança, o amor, as
mãos que se dão, constituem crime. Por isso, naquela mãozinha de cartão está
gravada a expressão máxima da sua derrota: “Leon, obrigado pela última dança”.
Na sua
cegueira, conseguiram mandar abaixo toneladas e toneladas de betão e aço, mas
poderiam até ter arrasado Manhattan inteira que aquela memória continuava de pé,
a troçar deles: “Leon, obrigado pela última dança”.
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Admirações
sábado, maio 12, 2012
EUA (VI) – Aprendendo com as paredes
Escreveu Paul Simon, que bem cantou as esperanças e as
agruras do sonho americano, que as palavras dos profetas estão escritas nas
paredes do metro e nos átrios dos prédios de subúrbio. Mas não só... Passeando
pela América fui lendo pelas fachadas e tabuletas.
Alexander Hamilton possuía uma granja onde fica hoje o
bairro Hamilton Heights, sobre uma colina no noroeste de Manhattan. Em 1889, já
Hamilton morrera com um balázio após duelo entre cavalheiros teimosos, a Igreja
Episcopal de São Lucas adquiriu o terreno e construiu aí um templo. A granja
desceu a rua 141 até lá abaixo, depois voltou a subir até meio da ladeira onde
se encontra hoje. Na janela da igreja, alguém, ou talvez o fantasma do próprio
Hamilton, colou um papel dizendo:
- A democracia... É o governo de todos para todos.
A frase é aqui atribuída a um Theodore Parker mas podia ser
de qualquer um com dois dedos de testa. Ainda assim, um excelente – e muito
necessitado – lembrete.
No Rose Center do Museu de História Natural de Nova Iorque,
três painéis com bastante matéria para reflexão.
Primeiro, com Aristóteles, estávamos no centro do universo.
Depois, com Copérnico, deixámos de estar. Com os vários que descobriram e
teorizaram o “big bang”, voltámos a estar, porque tudo é o centro. Por isso,
temos o filme completo, do sempre e do todo, à frente dos nossos olhos. Isso
devia-nos imbuir de alguma responsabilidade.
Absolutas só as leis da física, o livrinho de instruções que
vem com o produto cósmico. Outras leis, como as do bom senso ou do mercado, por
exemplo, são invenções, quando não grilhetas.
Se Deus existe, deixou-nos assunto suficiente para nos
maravilharmos e não ter que pensar muito Nele. Se não existe, a maravilha
continua aí e não precisamos de procurar o sentido da vida em gurus ou clérigos.
Bem escrevia Shakespeare que há mais coisas no céu e na terra do que aquelas
que a nossa filosofia pode sonhar.
A St. Paul’s Chapel é o mais antigo edifício de Nova Iorque
e sobreviveu milagrosamente à queda das vizinhas torres gémeas. Na altura
tornou-se pela proximidade base de apoio dos socorristas e hoje exibe um memorial
dos dias e do modo em que pessoas se arriscaram para salvar pessoas. Este
testemunho, de um colega engenheiro, recorda como podemos ser grandes perante a
adversidade mas lembra também como podemos voltar a ser pequenos com toda a
facilidade.
Não basta dar por frete, deve-se dar generosamente.
Ironicamente, como se pode ler no baixo da plaquinha, a igreja matriz fica em
Wall Street. A do mundo em que vivemos, também.
No frontispício do tribunal de Nova Iorque, lê-se que a verdadeira
administração da justiça é o mais firme dos pilares de um bom governo. Não um
dos. O. Como em Portugal bem sabemos, não é?
No Central Park, recomenda-se: não alimentar a vida selvagem. Desde 2008 que não fazemos
outra coisa.
[...]
Tirada no Museu do Ar e do Espaço em Washington. Tsiolkovsky
viveu numa época em que não existia ainda tecnologia para dar corpo às suas ideias,
mas esta frase é de quem não tem dúvidas que elas vingariam. Exactamente o contrário
do cepticismo, que continua a ser a única coisa que nos puxa para baixo com
mais força do que a gravidade.
A célebre frase de Kennedy, aqui gravada na pedra em frente
ao seu túmulo no cemitério de Arlington. Em Portugal tem-se desvirtuado muito
esta tirada, associando-a abusivamente a sacrifícios para sair da crise, como
se Kennedy estivesse a falar de economia. Mas a frase é sobre a liberdade,
coisa muito mais importante do que a economia, para ele que não para muitos.
Assim, deste tamanhão, para entrar pelos olhos adentro, na
avenida da Constituição em Washington, mesmo em frente ao Capitólio, não se vão
os representantes do povo esquecer. Que tal uma destas na rua de S.Bento? Ou à
porta do XL?
No monumento a Lincoln, o “Gettysburg adress”, momento
belíssimo, já aqui referido.
“Cartoon” no museu de História Americana. Na essência da
democracia vive a escolha e a escolha faz-se entre alternativas. Dizer que “não
há alternativa” subsume-se a dizer que não há democracia. Tão simplesmente
quanto isto.
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Meditações
domingo, maio 06, 2012
EUA (V) – Lendo Lincoln
Livros há como os melões que só depois de abertos se sabe o
que lá vem dentro.
Na loja do Smithsonian do Museu de História Americana em
Washington, comprei um pequeno volume de discursos de Abraham Lincoln sobre a Guerra
Civil Americana. Comprei mais por lembrança do que por leitura, como poderia
ter levado qualquer pechisbeque como um íman de frigorífico ou um pisa-papéis
em formato de Casa Branca: era pequenino, barato, com uma encadernação
engraçada, cabia num canto da mala. Porém, para minha surpresa, ao folheá-lo no
avião de regresso, revelou-se grande leitura de viagem e quando aterrei em
Lisboa já tinha virado a última página.
O livrito, editado pela Penguin, foi lançado para comemorar
os cento e cinquenta anos da guerra e acolhe nove discursos proferidos por
Lincoln com o confronto entre nortistas e sulistas como tema central ou pano de
fundo. Inclui o célebre “Gettysburg Address”, uma curta alocação proferida na
inauguração do cemitério militar local, quatro meses e meio depois da decisiva
batalha do mesmo nome, um textozinho em filigrana sobre a responsabilidade que
é honrar a memória e a herança dos que morreram pela liberdade dos outros e que
inspiraria um século mais tarde o “I have a dream” de Martin Luther King.
Inclui a mais documental Declaração de Emancipação, os “Inaugural Addresses”,
discursos de tomada de posse como presidente, e discursos de forte combate
político sobre o tema da escravatura. No seu conjunto, têm uma escrita
agradável e elaborada, uma imagética poderosa – se bem que por vezes um pouco barroca
– e sugerem uma oratória convincente.
De entre todos, o discurso para mim mais notável e o que
mais revela a visão e a estatura de Lincoln como homem de Estado é o que abre o
volume e foi dirigido um quarto de século antes da guerra aos alunos do liceu
de Springfield no Illinois, sua terra natal. Lincoln tinha então vinte e oito
anos e era um jovem advogado e deputado estadual, já com fama de bom paleio mas
ainda longe da capital e da presidência. Para este longo discurso (quinze
páginas), o tema que escolheu foi a perpetuação das então ainda recentes instituições
políticas americanas.
Começa por relembrar a situação geográfica americana para
concluir que o perigo nunca virá de fora, mas pode vir de dentro. Lincoln descreve
então alguns casos de linchamento ocorridos em vários pontos da União, alguns
deles de carácter racial, para concluir que embora sejam casos pontuais e
nalguns deles as vítimas até fossem criminosas, o crescimento na população do
sentimento de que as leis podem ser continuamente pisadas e desprezadas, que os
direitos individuais estão “ao alcance do capricho de uma turba”, alienará mais
cedo ou mais tarde o povo dos que o governam. E daí virá o perigo. Para conter
esse perigo, a solução que preconiza é difundir uma veneração total pelo primado
da Lei: “que cada um se lembre que violar a Lei é chafurdar no sangue dos seus
pais, destruir o próprio carácter e a liberdade dos seus filhos”.
Mesmo assim sendo, Lincoln vê nuvens negras no horizonte.
Por um lado, tem como muito provável – por inerente à natureza humana – que mais
cedo ou mais tarde apareça um homem com génio e ambição suficientes para tentar
o poder absoluto; por outro, à medida que vão desaparecendo os homens da
geração que participou na revolução americana, as suas memórias e o seu exemplo, que serviam em cada família de
baluarte contra o autoritarismo, vão
pesando menos:
- Eles eram os pilares do templo da liberdade; e agora que
ruíram o templo irá cair, a menos que nós, seus descendentes, os substituamos
com outros pilares talhados da sólida pedreira da razão sóbria.
E termina com um incentivo aos rapazes que o ouviam que
defendam essa herança até ao fim. Isto sintetizando muito a riquíssima verve do
homem...
Há em todo o discurso uma notável visão premonitória, vinte
e cinco anos antes, de que vinham aí momentos complicados e que aqueles jovens teriam
que estar preparados para eles. Isto porque Lincoln tinha claras algumas ideias
que só o bom senso, valência rara na nossa espécie, permite. Primeiro, que a
liberdade de todos pode permanentemente ser posta em risco por poucos – não há
nunca um fim da História. Em segundo, que ao longo do tempo se vai perdendo a
componente afetiva dada por aqueles que conquistaram a liberdade e que só a
razão pode levar os que se seguem a defendê-la. Finalmente, que quando os componentes
mais fundamentais de uma democracia começam, mesmo que episodicamente, a ser contornados
ou corroídos, as coisas vão fatalmente acabar mal.
A leitura deste discurso poderia não passar de um curioso
exercício intelectual se não nos déssemos ao trabalho de comparar o alcance da
visão de Lincoln com a miopia das lideranças de hoje. Onde ele viu a vinte e
cinco anos, não se vislumbra hoje a vinte e cinco dias. Ele percebeu que tocar
no que é básico, mesmo que só às vezes, é o caminho certo para o desastre
enquanto hoje os líderes europeus vão experimentando tirar esta pedrinha aqui e
este tijolo acolá, na esperança que o edifício aguente. Ele avisou a malta para
estar por isso pronta para tudo, estes nem sabem a que malta se dirigir.
Portanto, como destapa-olhos, vale a pena ler Lincoln.
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