sábado, abril 28, 2012

Exposição fotográfica - Edição especial USA - Cores de Nova Iorque

 
St Paul's Chapel: homenagem das polícias aos colegas mortos nos salvamentos do 11 de Setembro
 
 Baxter Street em Chinatown: Centro de estudos budistas

 Mott Street em Chinatown: Mercado de rua

 O teatro Cherry Lane em Greenwich Village

 Operário descansando no City Hall Park

 Edifício Daily News na rua 42

 Poste em East Village

Mural em Hamilton Heights

 Pintura de Sol LeWitt no Museum of Modern Arts

 Radio City Music Hall na sexta avenida

 Central Park West
 Bar em Greenwhich Village

Times Square à noite

 Times Square de dia

David Sanborn no Blue Note

EUA (IV) – Um país com medo

Na ponta sul de Manhattan, ali onde os holandeses começaram a construir em 1625 a sua Nova Amesterdão, as ruas abaixo de Wall Street ainda têm aquela geometria anárquica das velhas cidades europeias. Wall Street, onde hoje se fazem fortunas em “high-frequency trading” ou se afundam países ao toque de um teclado, deve o seu nome a ficar junto a uma paliçada que o governador Peter Stuyvesant mandou construir com medo dos índios. E assim começou uma história de medos.

Deambulamos por essas quase-vielas de prédios cor de tijolo, com ares de Mar do Norte, numa manhã de segunda-feira, feriado nacional, dia do Presidente. A folga esvaziara as ruas e parecia distante a azáfama de metrópole que nunca pára nas avenidas mais a norte, como se tivéssemos viajado um oceano e não apenas uma dúzia de paragens de metropolitano. Acabamos na Praça Peter Minuit, onde vamos apanhar o “ferry” para Staten Island, um cacilheiro local que vai e vem àquele subúrbio e que passa mesmo em frente à Estátua da Liberdade e a Ellis Island. Por isso – e por ser a única coisa à borla em Nova Iorque – transporta sobretudo turistas como nós, que vão até ao outro lado e voltam no seguinte e admiram a estátua de caminho.


Na estação fluvial, apinhada por uma multidão multilingue que espera o abrir das cancelas, os medos continuam lá: um cartaz alerta para que estejamos vigilantes e denunciemos coisas suspeitas às autoridades. Ora eu suspeito que deve haver autoridades que não batem bem da bola mas abstenho-me de denunciar, preferindo embarcar sem escândalo juntamente com o resto da marabunta. No interior do barco, no acesso às balustradas, outro cartaz já não alerta, suplica! “Ajudem-nos a combater o terrorismo! Se virem alguma coisa, digam alguma coisa. Liguem para o número XPTO”.

Subo ao “deck” e apoio-me na guarda para tirar umas fotografias do lado de Brooklyn. Sopra um vento grisante que me enregela os dedos. As gaivotas fazem razias, gritando. Para minha surpresa somos escoltados por um barco da guarda costeira, um “zodiac” com ar galáctico onde à proa um tipo coberto de um revestimento à prova de bala, com ar de Darth Vader, está em posição numa metralhadora fixa. Passo para a amurada do outro lado e lá está outro igualzinho, em apetrecho de combate. Seguem-nos lentamente, num passo soturno. Os passageiros apontam e comentam, momentaneamente distraídos da beleza do rio Hudson. Chegado o “ferry” à outra margem, voltam para trás e desaparecem. Ainda cheguei a pensar que seria um procedimento normal em qualquer travessia deste barco, mas no regresso já não vêm. Fico sem saber se acompanham pontualmente, de forma aleatória, ou se alguém viu alguma coisa e telefonou para o número XPTO da linha anti-terroristas maus.


Estes e muitos outros episódios e detalhes durante esta semana na América revelam uma sociedade amedrontada, obcecada pela pancada que levou a onze de Setembro, suspiciosa de um inimigo sem rosto e que se reconforta inabilmente com esta deriva autoritária que alimenta uma indústria de milhões. Um exemplo extremado disto mesmo ocorre nos aeroportos, na apresentação dos passaportes, em que os estrangeiros são tratados como gado perigoso, “scanados” e catalogados  por paquidermes alimentados a “big macs” que fazem perguntas supostamente esclarecedoras como “quando é que vai embora”. Isto debaixo de cartazes de boas-vindas. De cada vez que estou a passar a fronteira num país de terceiro mundo, com os formulários, as filas e os carimbos inúteis, faço por imaginar que poderia estar a entrar nos Estados Unidos e acalmo-me.

Sei pouco de matérias de segurança, mas sempre tive a impressão que este aparato securitário só impressiona quem vem por bem e não impede quem vem por mal. E pergunto-me muitas vezes se o objectivo principal não será exactamente o primeiro: intimidar o cidadão comum, instilar o medo, para mais facilmente exercer o poder. Gostaria que não, que tudo isto não passasse de estupidez pura, como a daquele folheto verde que se tem que preencher à entrada dos Estados Unidos que pergunta se cometemos crimes condenáveis pelo tribunal de Nuremberga. Tantas vezes me apeteceu responder:

- Claro! Fui eu! Para cem anos de idade estou bem conservado, não estou?

Mas nunca tive coragem para o fazer e ser recambiado no avião seguinte.

EUA (III) – Um país pobre


Na minha primeira manhã em Washington, um som surdo na porta do quarto de hotel ergueu-me da cama para ir ver quem era o malandro. Era o jornal. Esparramado no chão, um exemplar do USA Today, a modos que o Correio da Manhã local, informava-me na página de capa que pela terceira vez um mulher ia disputar o campeonato de “stock cars” na oval de Indianapolis. A despropósito, viria depois a vê-la na televisão a partir o carro todo contra o muro periférico e a sair inteirinha.

Folheei. No interior, uma manchete afirmava que o número de famílias em estado de pobreza extrema tinha duplicado nos Estados Unidos, entre 1996 e 2011. Pobreza extrema refere-se aqui a famílias que vivem com menos de dois dólares por dia. Euro e meio. Duas bicas. Um jornal incompleto. Quinze minutos de cinema. São 1,46 milhões de famílias nesta situação ou seja à volta de cinco milhões de pessoas.

Por cabeça, menos de um dólar. Ora no país teoricamente mais pobre do mundo, a República Democrática do Congo, o congolês médio teve que se aguentar em 2010 com 347 dólares, mesmo assim quase um por dia. Melhor do que estes americanos pobres ou pobres americanos, não sei bem. Na Eritreia, na secura do Corno de África e apesar de uma guerrilha permanente, já fazem figura de remediados com o dobro diário. E no Lesoto, a aproximar os cinco dólares por dia, são comparativamente uns nababos.

É verdade que cinco milhões de pessoas representam apenas um por cento da população americana, mas é muita gente e muito indigente. É como se num cantinho da América, nos Apalaches ou nos Grandes Lagos, houvesse um Togo ou um Ruanda, só que mais miserável. E a maior pobreza talvez seja a naturalidade com que estas desgraças se aceitam: na mesma notícia um Robert Rector, abanando o título de “senior research fellow” da Heritage Foundation, um grupo de reflexão(?) conservador, tentava compor a vergonha e a ideologia invocando as ajudas públicas aos pobres, que os devolveriam a um conforto quiçá excessivo. Este “fellow” permitiu-se todavia ir mais longe e tirar a conclusão muito científica de que à vista desarmada estas famílias não parecem passar as privações que os números sugerem. Uso aqui a palavra “números” enquanto plural majestático, porque entre zero e um dólar por dia é tudo número sem esse. 



Tenho que admitir que o “fellow” Rector tem uma certa descontração natural, ao tentar contrapôr o seu olhar clínico social às ferramentas estatísticas de casas modestas como as universidades de Michigan e de Harvard, conhecidos antros de mentecaptos e responsáveis pelo estudo que determinava o crescimento desta pobreza extrema. E eu, como sou cândido, senão mesmo idiota, ainda alimento a vaga esperança de que se o “fellow” Rector conhecesse Magdalyn March, trinta anos de idade, residente nas ruas e abrigos de Birmingham no Alabama, mãe sózinha de dois filhos, trabalhando num “fast food” como empregada de mesa, os olhinhos pequenos de uma miopia que não tem dinheiro para pagar óculos e os dentes podres por falta de um luxo asiático chamado dentista, talvez fechasse a cloaca. É Magdalyn que diz, no final do pequeno artigo do USA Today, a verdade última, a verdade que nem o olho ideológico de Rector, nem as análises numéricas dos professores universitários captam: “Tens que arranjar um esquema qualquer. Sem isso não consegues viver. Não consegues mesmo.”

Não sei onde fica a Heritage Foundation, mas não deve ficar em Washington, capital do império, senão o “fellow” Rector veria como eu vi, regressando ao hotel à noite, a cada porta dos edifícios de escritórios, um homem dormindo no chão sobre um cartão, enrolado numa manta que o separava de uma neblina a dois graus centígrados. Veria como eu vi fieiras de catres pelas beiras dos passeios onde uma silhueta jazente exalava um bafo que o frio tornava névoa e suspirava um pedido de dez cêntimos. E veria que isto não se passava num arrabalde sombrio e deserdado, mas na Avenida F do Penn Quarter, que culmina na Casa Branca.

Mas, enfim, o “fellow” Rector não passa de um pobre cretino, como seria de esperar de um tipo cuja sonoridade do apelido faz lembrar troços finais do intestino grosso.

O "fellow" Rector, indignando-se

Um país não é rico por ter ricos ou riquezas, é rico por não ter pobres. Um país é pobre em duas situações, que normalmente coexistem: ter pobres que palmilham as ruas e pobres de espírito como o “fellow” Rector com tempo de antena para os seus dislates. Neste sentido os Estados Unidos, independentemente da tonelagem dos seus porta-aviões e da pujança dos seus índices de bolsa, são um país pobre. São-no exactamente pela mesma razão que faz com que uma camisa com uma pequena nódoa não esteja limpa, um corpo com um pequeno tumor não seja saudável e uma verruga no meio da penca torne feia a mais bela carinha.

sábado, abril 07, 2012

As crianças que não faz mal que morram

“Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.”

Eça de Queirós, in “Bilhetes de Paris”


Num dos seus bilhetes de Paris, Eça discorre com a sua prosa inigualável sobre o modo como nos emocionamos mais com o pequeno sofrimento da vizinha do que com a grande catástrofe ocorrida nos antípodas, com mortos aos milhares. Muito positivista, chega a enunciar uma lei da física a propósito, afirmando que a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som, enfraquecendo-o até que se some.

Será mais uma lei humana do que uma lei da física, porque continua hoje tão válida como em vida do escritor. Vê-se no modo como se alinham as notícias: um deslizamento de terras que desaloje uma família algarvia merece por cá honras de primeira página, enquanto um descarrilamento de uma composição apinhada em Bombaim, morrendo passageiros às dezenas, dá para uma curta nas folhas interiores. Lembrei-me desta lei e deste texto, que eu estudara nas aulas de Português pelos meus treze anos, a propósito de desgraças recentes.

Março de 2012 foi um mês mais nefasto do que o habitual para esta pobre humanidade. No princípio do mês, um soldado americano entrou de noite em três casas de Kandahar no Afeganistão e matou dezassete pessoas, entre as quais nove crianças. A 14, vinte e oito pessoas, entre elas vinte e duas crianças belgas, morriam num acidente de autocarro num túnel da Suiça, quando regressavam de férias escolares na neve. E a 19 um homem matou um professor e três crianças numa escola judia de Toulouse.


A morte de uma pessoa traz sempre dor a quem é próximo e pelo menos perplexidade diante da fragilidade da nossa essência a quem está mais distante. Isto até quando falamos de pessoas que viveram uma existência plena e longa, cujo fim resulta sem mais de uma lei da vida que todos racionalmente compreendemos e aceitamos, mesmo que a contragosto. Mas a morte de crianças marca-nos mais, muito mais. É ilógica e é injusta. Mexe por mimetismo com o melhor e mais profundo vínculo que como espécie desenvolvemos, que é a relação com um filho. De uma certa maneira, qualquer criança que morra é uma parte de nós que morre também. E se na morte de um velho podemos encontrar consolo na memória da vida vivida, na de uma criança não conseguimos deixar de sentir a derrota por um futuro que não se cumpriu, por uma promessa que poderia ser a melhor hora da humanidade e para mal dos nossos pecados já não o será. Por estas razões, Março foi mês para nos comovermos com isto tudo.

Nestes acontecimentos, funcionou um pouco nos noticiários a lei do Eça. Vinda de longe, do Afeganistão, de um sítio esquecido pela fortuna, a matança dos nove pequenos afegãos fez notícia mas não abriu noticiários, enquanto a das três crianças francesas e o brutal acidente que levou os vinte e dois belgas, já mais próximos, já na Europa, mereceu primeiras páginas e abertura de telejornais, análises e explicações, imagens do luto das terras e das lágrimas dos amigos que perderam amigos.

A lei do Eça, se pensarmos bem, é mais uma lei da imperfeição do que da perfeição humana. Não faz sentido que sintamos mais a perda do pequeno Jean do que a do pequeno Ali, só porque uma ocorre a dois mil quilómetros e outra a vinte mil. Ambas são definitivas, ambas são infinitas e para gente de bem não há crianças de primeira e crianças de segunda. Sei que haverá certamente quem não pense assim mas este “post” não se dirige a essa escumalha. Talvez a lei do Eça seja uma defesa: perante a nossa incapacidade em suportar tanto sofrimento, arranjámos um mecanismo de filtragem, que nos protege de uma qualquer demência. Aceito portanto que sejamos assim, mas com alguma pena.

Nestes dias de Março, comecei no entanto a ler e ouvir coisas que já iam para além da lei do Eça e que essas já não consigo engolir sem um reflexo de vómito. Nos dois casos que tinham uma envolvente política, os políticos e sobretudo a imprensa deram em fazer uma destrinça no tratamento dos dois assassinos que na prática resultava na tal tese insuportável das crianças de primeira e das crianças de segunda, ou terceira, ou última.

Dizia-se que as crianças de França eram “vítimas de um terrorista”, enquanto as do Afeganistão tinham sido “mortas pelo soldado norte-americano”. O abuso e a manipulação da palavra “terrorista”, usada reles e selectivamente ao sabor das imbecilidades e das conveniências, tem sido uma chaga na política e na comunicação social ocidentais desde o onze de Setembro. Para a criança a quem apontam a arma à entrada da sua escola de Toulouse ou no seu quartinho de Kandahar, o terror é exactamente o mesmo. Para os pais sobreviventes condenados na mais dura das penas à memória dos filhos partidos e à imaginação do medo que eles terão sentido nesses segundos fatídicos e ao sentimento de culpa por não os terem conseguido defender, o terror é exactamente o mesmo. Para as comunidades vergastadas no seu âmago pelo ódio mais rasteiro, o terror é exactamente o mesmo.

 Enquanto ao “terrorista” se inquiriam ligações funestas, irmãos salafitas, derivas religiosas, viagens de treino aos santuários fundamentalistas, ao “soldado”  procuravam-se explicações racionais e razoáveis desculpas: o stresse da guerra, um acesso de loucura num bom pai de família, só faltando terminar o assunto com um “desculpem lá qualquer coisinha”. Mas para as lágrimas que correm ou ao futuro que se gorou, essas considerações fazem alguma diferença? Não poderíamos afirmar serem ambos os assassinos terroristas, sem perda de verdade? Será que os terroristas assassinam e os soldados desembestados só matam? Será que umas crianças são vítimas de terroristas e outras meros danos colaterais numa guerra que não pediram?


Não consigo tolerar este “doublespeak” que se apoderou do discurso ocidental, iniciado pelos políticos, amplificado pelos jornalistas e aceite pelos votantes. Posso até entender os primeiros, mas nunca os outros, o que nos inclui a nós. Se aceitarmos este género de conversa, se nos deixarmos manipular desta maneira pacóvia, já estaremos a ir muito para além da lei do Eça: estaremos a dizer com a maior das serenidades que há crianças que não devem morrer e outras que não importa que morram. Que um francesito rosado é precioso e que um afegãozito moreno é descartável. Isto é r-a-c-i-s-m-o, com todas as letras. Que os fins justificam os meios e que há causas que desculpam um tiro numa cara de seis anos e outras não. Isto é to-ta-li-ta-ris-mo, com todas as sílabas.

Pensem nisso e revoltem-se um bocadinho, da próxima vez que ouvirem alarvadidades dessas na vossa rádio ou têvê.

sexta-feira, abril 06, 2012

Os sãos e os loucos

Na quarta última, um homem quase octogenário saiu de sua casa, tomou o metropolitano até à principal praça da sua cidade, encostou-se a uma árvore e diante da multidão que fervilhava à hora de ponta sacou de uma pistola e despejou um balázio na própria cabeça. No bolso do morto, uma nota explicava que não queria deixar dívidas à filha.

Chamava-se Dimitris Christulas, era um farmacêutico reformado e a cena passou-se na praça Sintagma, em Atenas.

A nota que deixou dizia ainda que ele, não estando já em idade para pegar em armas, não encontrava outra solução senão dar-se um final digno, antes de ter que começar a procurar comida no lixo. No jornal onde eu li esta notícia, o circunspecto El Pais, um parágrafo associava este evento ao aumento das doenças mentais e dos suicídios na Grécia desde o início da crise. Lamentavelmente, mas também expectavelmente, o jornalista não mostra capacidade para perceber o gesto daquele homem. Ele não era certamente louco. Pelo contrário, se algo ressalta nele é uma lucidez extrema, uma percepção clara de que há limites que não se passam sem perder a condição humana e que se o risco existe de esses limites serem quebrados então algo há que fazer. Por isso o seu gesto está a arregimentar gregos e o poder, assustado, procura minimizar os danos.


O jornalista não mente no entanto quando nos diz que a insanidade está a crescer. De facto há os sãos e há os loucos. E hoje até são muito mais os que são loucos do que os que são sãos. Loucos os jornalistas que preferem discorrer sobre estatísticas do que realçar a dignidade no meio da indignidade. Loucos os que vêem a democracia a estiolar às mãos do medo, às mãos dos expedientes, às mãos da soberba e nada fazem e, pior, nada pensam. Loucos os que julgam que se pode carregar indefinidamente para baixo e que a massa informe que desprezam tudo suporta e tudo suportará. A História mostra que nem sempre é assim e um dia o último empurrão gera a reação que a todos varre, loucos e sãos. Injustamente os sãos, com bastante justiça os loucos.

E esse momento de reação está mais próximo quando um, depois dois, depois muitos percebem que mais vale perder o medo do que perder a dignidade. E na Grécia sempre houve bons exemplos disto mesmo, desde o tempo em que Dienekes, um dos trezentos de Leónidas nas Termópilas, respondeu o célebre “Óptimo. Combateremos à sombra” quando lhe disseram que os arqueiros persas eram tantos que as suas flechas ocultariam o sol. Quando este espírito se apodera de muitos, temos 1383 ou 1776 ou 1789 ou 1848 ou 1968 ou 1989 ou a chamada “primavera árabe”, com o que de bom e mau trouxeram, para surpresa dos que pensavam que tudo podiam.

Se isso acontecer na Europa, por um lado terei pena, porque estava aqui uma coisa com potencial que foi mandada fora pela cupidez de meia dúzia e a cegueira de dúzia e meia. Por outro lado, quanto mais olho para esta União Europeia, mais vejo uma cave a precisar de uma limpeza de alto a baixo.

O senhor Christulas, antes de descer à praça Sintagma para o seu gesto definitivo, passou no seu senhorio e saldou a renda da casa. Pôde ir assim tranquilo, como naquela citação de Camilo de que o meu pai gostava, "como homem que devera e que pagara".


domingo, abril 01, 2012

Mistérios de Lisboa

Ele há coisas que não se percebem.

Na sexta-feira, só por acaso reparei, perdido no meio de um anúncio de página inteira da FNAC num caderno Ipsilon do Público que me preparava para mandar para o lixo, que os Wraygunn iriam tocar nessa noite na loja do Colombo. Mudei logo planos e fui.

Levei Mataspeaka e um dos Mataspeakenos e jantámos um bife na Portugália, convenientemente a nadar naquele molho amarelo da casa que faz a fortuna dos médicos cardiologistas. Como é hábito em Portugal, demoraram mais tempo a cozinhar a conta do que o bife e foi já a morder as canelas às dez e trinta que me acerquei em passo apressado da FNAC, temendo deparar-me com magote e tumulto à entrada. Para minha surpresa, nada disso. No pequeno auditório que fica no meio da loja, os instrumentos esperavam já, reluzentes, bem como umas filas de cadeiras vazias e algumas pessoas de pé, comentando o que aí vinha.

Deambulei pela loja, folheando livros, até que percebi por uns rufares de tarola e acordes soltos que o espectáculo ia começar. Regressei. As cadeiras estavam agora ocupadas e por trás dela um pequeno ajuntamento esticava o pescoço. Ainda assim menos de cem pessoas.

No palco, os Wraygunn apresentavam o seu novo álbum, L’Art Brut. E foi exactamente como o nome indica, tal e qual. Sem medo e sem concessões que não fossem à sua própria originalidade. A guitarra rockeira e desenfreada de Paulo Furtado debatendo com o coro dual e minimalista de Raquel Ralha e Selma Uamusse, sempre protegidos pela robusta sessão rítmica com Sérgio Cardoso no baixo, Pedro Pinto na bateria e João Doce na percussão, todos justificando a luta por um título que poucos lhes reconhecem de melhor banda rock portuguesa.

Ora para mim resulta coisa misteriosa que a melhor banda portuguesa do género toque à borla numa loja do Colombo e que não haja filas de gente até à rua, engarrafamentos de quilómetros na vizinhança, polícia de choque de tocaia, barracos da Sagres a toda à volta, bagunça e confusão. Se soubéssemos dar valor ao que temos, era o que acontecia. Infelizmente, vai antes tudo a correr pagar para ver os Xutos e Pontapés, de lencinho “motard” e papada flácida, tocar a sua música pimba electrificada. Seja! Mais fica.