domingo, março 25, 2012

Exposição fotográfica - Edição especial USA - Nova Iorque

Ponte de Brooklyn

Estátua da Liberdade vista do "ferry"

Christopher Street em Greenwhich Village

Homenagem a John Lennon em Strawberry Fields, no Central Park

Lincoln Center

Ossadas de autarcas portugueses no Museu de História Natural

Rose Center for Earth and Space

Catedral de São João o Divino em Morningside

Cais fluvial em Staten Island

Entrada do "ferry" para Staten Island

Strivers Row no Harlem

O "subway"

Cemitério da Igreja da Trindade, em Lower Manhattan

sábado, março 24, 2012

EUA (II) – Da democracia na América

“Zapping” de fim de tarde pelos quarenta canais disponíveis no quarto de hotel, todos norte-americanos, as pernas moídas por umas quantos milhas de Manhattan nos butes. Aplico o método das observações instantâneas ao que vai aparecendo no ecrã e deduzo que o tempo de antena se distribui a 40% para publicidade e em partes aproximadamente iguais de 20% entre desporto (nesta altura sobretudo basquete universitário), séries (policiais ou “sitcoms” de gargalhada enlatada) e noticiário. De facto muito anúncio para pouco no meio. Pergunto-me se os americanos aguentarão pacientemente ser interrompidos de dez em dez minutos por reclames que entram de chofre sem separador nem aviso prévio. Provavelmente sim, porque aqui na terra dos “mad men” o “marketing” não dá ponto sem nó e se alguém paga milhares pelo anúncio é porque há seguramente muitos mais milhares a vê-lo. Apesar da praga, tento concentrar-me nos noticiários.

Aqui, muitos telejornais são centrados no “pivot” como se de um artista de variedades se tratasse. É o “show” de fulano, o “daily news” com sicrano. Fulano convida os comentadores da notícia, sicrano debate com os seus convidados. Fulano e sicrano opinam. Opinam muito e opinam forte. E seguindo e amplificando uma tradição bem anglo-saxónica da imprensa, tomam partido.

As primárias republicanas são o tema da semana. Sob a pressão da extrema-direita evangélica do “Tea Party”, o candidato oficioso Mitt Romney tem que se fingir muito conservador para ofuscar o oponente Rick Santorum, um imbecil puro e duro para padrões europeus mas que no “deep south”, como aqui chamam às berças, arrasta muita simpatia. Ora o meu quarto de hotel na 45ª avenida de Nova Iorque está bem no meio da Nova Inglaterra, numa zona do país tradicionalmente liberal, no sentido que essa palavra tem na América, que agrega tolerância nos costumes e um certo esquerdismo político traduzido na aceitação de algum papel social do Estado. Hoje (nem sempre foi assim) o partido Democrata vence nestas zonas. Por isso, os canais que apanho têm sobretudo “pivots” alinhados pelos Democratas, que zurzem sem piedade no reaccionarismo dos republicanos. Recordo por exemplo um título de notícia que era “O espectáculo de palhaços continua nos republicanos”.

Para um europeu médio como eu, educado na crença que só a assepsia traduz objectividade, isto pode parecer pouco sério. Mas, vendo bem, não é. É muito sério. Quando Rick Santorum ataca a separação da Igreja e do Estado com expressões como “isso faz-me vomitar” ou defende a proibição de casais casados usarem contraceptivos “porque o Estado tem obrigação de intervir na vida das pessoas”, faz sentido que um “pivot” de televisão diga com todos os efes e erres “é a democracia que este gajo está a pôr em perigo”? Vendo com olhos de ver, faz todo o sentido.


De repente, entre os anúncios a detergentes e os directos ao basquetebol com gazelas negras a afundar a bola no cesto, o meu plasma no quarto 1426 põe-se a debitar discussões acaloradas sobre separação da Igreja e do Estado, sobre a liberdade de consciência, sobre o equilíbrio de poderes entre a esfera legislativa, executiva e judicial,  sobre o simbolismo da democracia. No ecrã, fulano e sicrano esgrimem com os seus convidados um debate ideológico sobre quão perigoso é beliscar sequer as bases do edifício democrático sem que ele comece a ameaçar ruína.

De repente, tudo me parece tão diferente desta Europa em que instituições financeiras conseguem trocar governantes eleitos por tecnocratas recomendados por credores sem que na imprensa ou nas ruas se levante um vozeirão a dizer “é a democracia que estes gajos estão a pôr em perigo”. Em que os países mais fortes impõem aos mais fracos que inscrevam nas suas constituições uma ideologia particular sem que os “pivots” de televisão, normalmente tão excitados com a pequena política dos Passos Perdidos ou dos prefácios presidenciais, se aventurem a pôr a nu que “é a democracia que estes gajos estão a pôr em perigo”. Em que o populismo consegue levar a  julgamento na Islândia um primeiro-ministro por um nóvel crime chamado má governação, sem perceber que a responsabilidade de quem elege é igual à de quem é eleito, e não há uma alminha pensante que se indigne e grite “é a democracia que estes gajos estão a pôr em perigo”.

De repente, baixo a minha bolinha de europeu presunçoso com os meus preconceitos sobre os americanos ignorantes e constato que não é só na economia que eles estão melhor do que nós.  Pelo menos aqui estão a debater os assuntos sérios com ar sério e chamando os bois e os burros pelos nomes. Pelo menos aqui há mais do que um pensamento autorizado. Pelo menos aqui há gente a dizer em “prime time” que há limites e que quando se passa para além dos limites deixa-se de estar do lado de cá dos limites.

Para o visitante, seja Tocqueville há quase duzentos anos, seja eu agora, a abordagem norte-americana à questão democrática não pode deixar de fascinar. Logo a começar nas origens, em que meia centena de burgueses analisaram a História e construiram a regra e esquadro uma constituição igualitária, baseada na crença que só a dispersão do poder e a sua verificação através de mecanismos de controlo mútuo poderia perpetuar o regime e protegê-lo de ameaças totalitárias. Daí os “checks and balances” entre estados grandes e estados pequenos, entre os estados e o Estado central, entre o poder executivo e o poder judicial, entre a câmara alta e a câmara baixa, entre os poderes formais e os fácticos como a imprensa.

Fascina também o apego reverente que têm ao simbólico da sua democracia, aos nomes dos pais fundadores  que a desenharam, ao significado da representação e da responsabilidade políticas, ao valor da liberdade individual e do seu contributo para a mobilidade social, ao papel da memória colectiva. Fascina até, de uma forma que aos olhos do nosso cinismo parece quase infantil, o respeito aos símbolos da nação - bandeira, hino e presidente - como representações de uma construção colectiva.
 
Obviamente, a sociedade americana tem muitos e graves defeitos, como qualquer amálgama de homens e mulheres. Deles mais à frente falarei. Nela dormem monstros que periodicamente acordam e vêm à superfície e fazem grandes estragos e quase parecem que a vão dominar de forma irresistível: o esclavagismo e depois o racismo instituído, o complexo militar-industrial, a máfia policial de Edgar Hoover, o “McCarthismo”, hoje o fascismo religioso. Apesar disto, a democracia americana conseguiu sobreviver dois séculos e meio. Durante esse tempo, para se defender dos inimigos internos, conseguiu fazer sempre o necessário, por extremas que fossem as consequências: Lincoln combateu uma guerra civil, Roosevelt reergueu o país com o músculo económico do Estado, Kennedy mandou as tropas para garantir que um estudante negro tinha aulas na faculdade, dois jornalistas levaram um presidente à demissão e o povo mostrou votando que, contrariamente ao que ocorre na Europa, um membro de uma minoria étnica pode chegar à Casa Branca.


Parece pois que Washington, Madison, Hamilton, Jefferson, Franklin e os outros que com eles começaram esta curiosa experiência política chamada Estados Unidos podem dormir descansados o seu sono dos justos. O edifício tem-se aguentado e vê-se que há muitos moradores empenhados na boa conservação do prédio.  Já Schumann e Monet, coitados, devem estar às voltas na campa com o que vêem hoje na construção europeia, ameaçando ruína às mãos de um bando de “hooligans”.

sábado, março 03, 2012

Exposição fotográfica - Edição especial USA - Stars and stripes

Empire State Building, NY

St. Paul's Chapel, NY

Trabalhos no "Ground zero", NY

Atravessando o rio Hudson no Staten Island Ferry

Quinta avenida, NY

Peter Minuit Plaza, NY

Vietnam's Memorial, Washington

George Washington Memorial, Washington

EUA (I) - Passeando no Harlem a um domingo de manhã

O forasteiro que saia em Nova Iorque do túnel de metro para a superfície rodopia algumas vezes sobre si próprio de cabeça para o ar e mapa na mão para se localizar na quadrícula ortogonal das ruas de Manhattan. Um erro de orientação e podem ser uns quarteirões em vão, com um ir incerto e um vir desapontado.

Cumprido esse ritual, seguimos pela 125ª, também Martin Luther King Boulevard, para um primeiro passeio nova-iorquino pelas ruas de Harlem. Apesar de ser domingo, muito comércio não perde oportunidade. Bancas na beira das calçadas generosas propõem roupa barata ou enigmáticos perfumes caseiros, embalados em vidrinhos refundidos com etiquetas escritas à mão. A personalidade de bairro da comunidade negra ou, como aqui recomenda o politicamente correcto, afro-americana,  é inequívoca: os quantos brancos e amarelos que se vêem estão a passeio, de máquina fotográfica a tiracolo, guia na mão ou olhar hesitante. De conversa animada à porta dos cafés, carregando pesados sacos com as compras matinais ou janotas e de andar célere a caminho da missa, vê-se que os negros estão em sua casa. Chegam-nos laivos de vozeiro dominical com um sotaque que conhecemos dos filmes discutindo as primárias republicanas ou os resultados do basquete.

Do outro lado da rua, o centenário teatro Apollo aparece como primeira referência. Olho para o mapa, vamos no sentido certo. O Apollo foi construído em 1913 como casa de ópera reservada a brancos. Só em 1934 o empresário Frank Schiffman, ele próprio um branco, o abriu a todas as raças na plateia e a ases de espadas e paus no palco como Duke Ellington ou Billie Holiday. Às quartas-feiras tinha lugar a “amateur night”, um concurso em que o público votava o vencedor, premiando ilustres desconhecidos como a menina Sarah Vaughan ou o jovem James Brown. Todo o grande “jazz” por ali passou com regularidade: as “big bands” de “swing”, Charlie Parker, Thelonius Monk, Dizzy Gillespie, etc., etc. Como infelizmente sofre obras de restauro, deixamos para trás aquele pedaço de História entaipado e viramos para norte na sétima avenida, aqui já crismada Adam Clayton Powell Junior Boulevard em homenagem ao primeiro negro congressista.

A mitologia induzida nas nossas ignorantes cabeças por anos de cinema e séries policiais levava-nos a vir com receio de encontrar um lugar perigoso e algo miserável. Burrice: o Harlem é um bonito bairro residencial seguro, de avenidas largas, passeios amplos e prédios de estatura moderada com a típica arquitectura nova-iorquina do princípio do século XX. Se algo o diferencia dos seus vizinhos brancos mais a sul é a ausência do frenesim perpétuo de Times Square ou da quinta avenida.

Domingo de manhã é manhã de missa no Harlem. Nas ruas vemos grupos dirigindo-se de passo estugado para as celebrações ou vindo delas, em alegre conversa. Em Harlem a missa é assunto sério e vai-se como se vai a um casamento: os homens de fato e gravata, as mulheres de vestido de cerimónia. As mais jovens com vestidos coleantes sem ser ousados, as mais idosas com pregadores luzentes e vastos chapéus espectaculares que lembram os das inglesas nas aristocráticas corridas de cavalos em Ascot. Vários pequenos locais de culto espalham-se pela avenida, sumidos no casario dos quarteirões. Quando a porta de um deles se abre, ouve-se o coro num sonoro “gospel” e o pastor num cantar gritado lembrando à congregação que há que louvar o Senhor.

Tentamos ir assistir à cerimónia na Igreja Baptista Abissínia, a mais célebre do bairro. Infelizmente não somos os únicos: a fila de estrangeiros multilingues dá a volta ao quarteirão, organizada por dois ou três paroquianos – se é que esta palavra se aplica entre protestantes, o que duvido. Vão-nos repetindo que apenas há duzentos lugares para visitantes e informando-nos das datas das próximas celebrações. Enquanto aguardamos um rapaz aproveita a aglomeração para tenta vender o seu próprio cêdê pirata, apregoado como o verdadeiro “hip-hop” do Harlem: “the real thing”. A dado momento, um faíscante Ferrari vermelho descapotável estaciona em segunda fila e dele saiem dois jovens negros impecáveis nos seus fatos cinzentos e gravatas lisas. Deixam o Ferrari aberto e seguem tranquilamente para a missa. Manifestamente sabem que não lhes mexerão na viatura, o que nos leva a suspeitar de malta da pesada (cá está a má influência das séries policiais).


Infelizmente não conseguimos entrar nos duzentos eleitos e seguimos caminho. Contornamos o quarteirão e passamos no número 108 da rua 139, onde morou uma Billie Holiday à procura do primeiro emprego, depois pela burguesa Strivers Row onde alguns portões ainda recomendam cautelas de outras eras: “ leve os cavalos a passo”. Deixamos o bairro pela avenida Saint Nicholas, em direcção à vizinhança chique de Hamilton Heights, dominados lá do alto pelo xisto e a arquitectura gótica do “City College” e pela colunata colonial da residência de Alexander Hamilton. Para trás fica o sossego do Harlem de domingo de manhã que apagou da minha memória o Harlem suspeito e inquietante das histórias filmadas como um ficheiro esmaga outro no ronronar de um disco rígido de computador.