terça-feira, fevereiro 28, 2012

Exposição fotográfica - Edição especial USA - People in art

 No Museum of Modern Art, Nova Iorque, a 20 do corrente

 Homem numa pintura de Jackson Pollock

Homem numa pintura de Barnett Newman

 Senhora num bronze de Donald Judd

 Família numa instalação de Daniel Buren

 Jovem numa pintura de Andy Warhol

  Jovem numa pintura de Frank Stella

sábado, fevereiro 11, 2012

Regresso à noite


Tudo começou num SMS do meu amigo P1, apitando façanhudo em cima da cómoda numa quinta já tarde: “Tokio noite amanha. Queres?”

Circula um mito urbano que o P1 não domina bem essa parte do telemóvel, minimizando por isso as mensagens como antigamente se poupava nos caractéres dos telegramas, o que explica as linhas herméticas que costuma enviar. A cripticidade da mensagem, com aroma de serviços secretos, poderia intrigar terceiros mas não a mim: Tokyo, não capital do Japão mas discoteca ao Cais do Sodré. Nos finais dos anos setenta, quando todas as discotecas de Lisboa ribombavam “funky” e “disco”, havia apenas três portos seguros para ouvir outra música, todos alinhados na Rua Nova do Carvalho, imperturbados no meio dos Copenhaga e Arizona de marujos e mulheres da vida que polvilhavam a rua: o Jamaica, o Tokyo e o Shangri-la. Num deles nos encontrariam possivelmente nas noites de sexta e sábado, de cerveja na mão, ouvindo Clash ou Peter Tosh. Ao Tokyo não havia voltado nos últimos trinta anos.

Cheguei ao fim do dia seguinte arrebentado de um dia e de uma semana extenuantes. Pensei em desmarcar a minha ida ao Tokyo, mas tinha empenhado a minha palavra e fiz um esforço, decidindo no entanto que regressaria cedo depois de ter picado o ponto. E assim fui, recolhendo de caminho o P2, a X e a I em casa do primeiro.

Aparcámos no Largo do Corpo Santo, entre árvores que bebem a água salobra do Tejo. Um sem-abrigo aproximou-se, envolto em roupas díspares e mantas que se acumulavam em torno dele como películas de uma cebola, arredondado-lhe o perfil. Pediu-me a moeda da praxe e em retorno informou-me que a cancela abriria à meia-noite, permitindo uma borla. Ambas praticantes de voluntariado, a X e a I inquietaram-se com o homem, perguntando-lhe se já tinha jantado e receberam em troca da bondade uma licenciatura instantânea:

- As doutoras também costumam trazer comida?

Nos painéis digitais, fogachos de contemporaneidade num pedaço de Lisboa adormecido no passado, os termómetros anunciavam três graus. Era a noite mais fria do ano, mas de um frio límpido, seco, invisível, sem névoa, que só se notava nos corpos atabafados e nos pescoços encolhidos dos passantes. Grupos de jovens cruzavam-nos, deixando-nos nos ouvidos farrapos de façanha, risos femininos. Num passeio, dois sem-abrigo ensaiavam uma estranha coreografia, de uma demência etilizada. Um gritava frases soltas enquanto batucava uma pandeireta nos braços erguidos. O outro simplesmente assistia de olhar vazio. Não me lembro de há trinta anos haver tantos homens miseráveis na rua. Na altura não se instalara ainda a patetice desculpabilizante do “politicamente correcto” e chamávamos-lhes vagabundos, embora provavelmente eles não saíssem do seu sítio. Mas ou os meus olhos não estavam então tão abertos – o que é possível – ou então o número aumentou, inflado pelo nosso muito europeu progresso – o que é provável.

Na Rua dos Remolares entrámos na nossa primeira paragem, um bar irlandês revestido a madeiras e debilmente iluminado por uma luz coada por abajures verdes. Ao fundo, empoleirados ao balcão em bancos altos de “saloon”, o P1 e a J já esperavam, de copo na mão. Saudaram frases inaudíveis, sumidas no estrilho da música irlandesa de bandolim e violino e duendes e trevos e mulheres ruivas e pronúncia anasalada que um trio soltava de cima de um estrado perante a indiferença dos clientes. Aproveitei o espírito da coisa e berrei ao ouvido de um empregado que queria uma Guiness. Veio negra, de espuma suave, gosto adocicado e morna o suficiente para saber bem numa noite gélida. Beberiquei. Anunciei a quem me conseguiu ouvir que me iria embora cedo, cansado que estava de uma semana longa, de um dia longo, de muitos anos, e arranquei protestos. Intimamente já sabia que era mentira.

O nosso grupo conseguira arrastar cadeiras suficientes para se estabelecer em círculo, estrategicamente encostado ao balcão onde os empregados, um mulato com porte halterofilista e uma morena razoavelmente furada de “piercings”, nos iam tratando bem. À nossa volta misturavam-se silhuetas de várias idades, do brinco na sobrancelha até às cãs na fonte. Falávamos dois a dois, alternando cadeiras, o único modo de comunicação que a música poderosa permitia. Falámos de trabalho e filhos e dos que lá não estavam e de outras coisas que há trinta anos não interessariam. A certo momento, P1 disse assertivo: “vamos para o Tokio”. Todos foram. Fui também.

Porta fora voltámos à Praça do Duque de Terceira e enfiámos pela viela que se escapa sorrateira da Rua do Alecrim para dentro da Rua Nova do Carvalho. Grupos de gente sucediam-se rua fora, bebendo jolas e gritando alto, dando uma impressão de magote. Juntamente com a iluminação pública e os néons dos bares, transmitiam uma sensação de calor que contrastava com o frio de empedrado e noite escura que deixáramos para trás. A fauna da rua mudara algo em trinta anos. Menos marinheirada e prostitutas de baixo orçamento, mais pessoal novo usando os atributos convencionados pelas modas de hoje, como nós usáramos os de então. À porta do Tokyo, um porteiro com idade para ser o meu porteiro de 1980 abriu-nos a porta para uma pista ainda deserta e uma sala de paredes frias sob as luzes móveis.

Tocava Tubeway Army. Aparentemente só eu me lembrava dos Tubeway Army e do Gary Numan com aquele ar alvar de “zombie” simpático perguntando com voz de falsete se os amigos eram eléctricos. Os meus quase. Nunca pensei que isto ainda tocasse em Lisboa mas o Tokyo sempre foi bom em boas surpresas, nos bons tempos como agora. Àquela hora, seriam uma e meia, o nosso grupo de oito meava com meia dúzia de gatos pingados. Dantes, quando tudo fechava às quatro menos casas suspeitas de entrada quase clandestina, uma e meia já seria hora de ponta e a sala abarrotaria. Hoje, com limite às seis ou além, ninguém entrava antes das duas excepto velhos incautos como nós. Aproveitámos o vazio temporário para marcar uma mesa com casacos e pedir bebidas no balcão liberto. Dançámos.


Na hora seguinte a sala foi-se enchendo, a música foi acelerando e as pessoas foram-se acotovelando, dispostas em círculos imaginários entre os quais se cruzavam outras em demanda do bar ou da casa-de-banho, a qual continua tão genuinamente infecta como dantes, notei com alguma alegria na hora de reciclar a Guiness. A clientela que se meneava era heterogénea. Grupos de estudantes universitários, daqueles já a arrastar o fim do curso, vestidos de negro e um quanto alfinetados, quarentões e cinquentões em “smart casual” já com muita careca e cabelo branco à mistura, trintões vindos quase directamente do trabalho – um, ainda de fato, tirara a gravata e atara-a à volta da cabeça, ao estilo navajo, o que lhe dava uma pinta patusca. Uns bebiam, com ar de quem viera para beber, silenciosos e estáticos no bar ou encostados às paredes. Outros tentavam uma conversa quase impossível, esticando os pescoços e gritando aos ouvidos no meio da algazarra. Noutros grupos havia uma tensão sexual evidente. Nos mais novos, os jovens machos tentavam fazer-se notar bamboleando-se estrepitosamente o mais próximo possível da fêmea pretendida ou, em desespero de causa, invocando o colectivo e apelando pateticamente ao “moshe”. Nos mais velhos, a atitude era mais serena, discreta, apenas como que uma coreografia de prenúncio, mas os olhares, fixos ou fugidios, a contenção simulada, o ligeiro exagero no cuidado da roupa ou do maquilhado não permitiam dúvidas sobre o destino da noite. Nós, entretanto, meramente dançávamos.

Dançávamos como dantes, talvez mais livremente e despreocupadamente que dantes, entre amigos. Dançámos tudo o que veio, do mais eléctrico ao mais electrónico. Dançámos os oito minutos e meio e as quatro partes distintas do “Paradise by the dashboard light” do Meat Loaf. A cada mudança brusca, a X, uns anos mais nova do que eu e portanto de um tempo em que os sucessos só podem ter três minutos e uma melodia, perguntava-me “e isto agora o que é?”, ao que eu respondia “continua a ser Meat Loaf”. Fomos perdendo uns pelo caminho, que cansados acenaram um adeus sorrido no meio da barulheira e saíram. Os que ficámos continuámos dançando.

Próximo das quatro, só sobravam eu, a X e a I e com uns sinais no escuro combinámos ir embora. Na rua silenciosa, enquanto apertávamos os casacos, percebemos pela conversa que saíramos por pensar que os outros queriam sair. Reentrámos. Dançámos mais vinte minutos. Finalmente saímos de vez.

O frio da noite adensara-se com as horas e com o esvaziamento das ruas. Mas sentia-me magnificamente: para quem queria ir cedo para casa, não me tinha aguentado mal. Se tivesse que escolher uma palavra para me definir naquele momento, seria “exorcizado”. Tinha bebido um ou dois copos a mais, tinha abanado o capacete numa figura indecente e tinha mandado os demónios de um dia lixado para os fundos do inferno em folga de fim-de-semana. Como escreveria depois a I no seu “facebook”, dançara com a madrugada e soube-me que nem ginjas.


Junto ao carro verifiquei que tinha a cancela do parque aberta, tal como o vagabundo prometera. Distribuí as senhoras pelas casas respectivas. Cheguei à minha depois dos meus filhos, feito glorioso numa sexta à noite. Dormi que nem um calhau com sono. Ao acordar tinha para fechar esta história outro SMS do P1 no telemóvel: “gostei muito”. Respondi “eu também”.