sábado, abril 09, 2011

Cromos da minha caderneta (II) - A ramona

Em Março de 1975, com onze tenros aninhos, abordei timidamente o meu pai pedindo para ir a Cascais ver um concerto dos Genesis.


A vinda a Portugal dos Genesis no seu auge, meses depois do lançamento do fabuloso “The lamb lies down on Broadway”, passa sem protestos por uma de entre cinco manifestações de carácter divino a ocorrer em Portugal ao longo de oito séculos de história. As outras: o milagre de Ourique, as rosas no regaço de Santa Isabel, a aparição da Virgem aos pastorinhos na Cova da Iria e o sete-a-um ao Benfica no velho Alvalade, esta última a única que presenciei, em estado de êxtase e beatitude.


Em pleno PREC, uma banda de primeiro cartaz constituía novidade revolucionária. Diz quem viu que o concerto deslumbrou. Tudo no genésico grupo era superior nesses anos de ouro: o Peter Gabriel felizmente ainda cantava e o Phil Collins felizmente ainda não cantava, limitando-se a ser um excepcional baterista. Tony Banks, Steve Hackett e Michael Rutherford completavam um quinteto de eleição.


Isto sei eu hoje, porque na altura nem via bem quem eles eram. Apenas tinha ouvido uma música, o “Carpet crawlers”, que vinha num “single” aparecido desgarradamente no meio dos presentes de Natal. À época o que eu queria mesmo era ir a um concerto à noite, nem que fosse da banda dos bombeiros. Só que o meu pai riu à gargalhada da minha pretensão, de um modo tal que eu, conhecendo-o, percebi que não valia a pena insistir.


Depois deste desaire, passou uma olimpíada até eu voltar à carga com o tema. Em Março de 1979, com quinze anos já não tão tenrinhos, abordei menos timidamente o meu pai para lhe pedir para ir a Cascais ver um concerto do Rory Gallagher. Eu também não conhecia o Rory Gallagher, mas era estrangeiro e a malta toda tinha combinado ir porque sendo de fora devia ser bom. Desta vez o meu pai acedeu, com a condição de me ir pôr e buscar. Perante o meu protesto, usou como pretexto que lhe estava a apetecer dar uma volta pelo Estoril, vontade que lhe dava de quinze em quinze anos e por coincidência logo nessa noite.


Assim aconteceu. Fui deixado em frente ao Hotel Baía, onde seria o reencontro. Subi até ao pavilhão do Dramático onde me juntei aos meus amigos. Passámos alegremente, como se uma delícia fora, o suplício da longa fila, das grades colocadas à trouxe-mouxe, dos seguranças meio pedrados. O Dramático de Cascais foi durante esses anos a Meca do rock em Portugal, muito antes dos festivais de verão em arrabaldes poeirentos misturarem bandas londrinas com fado “world music” e dos concertos de estádio trazerem a peso de ouro mega-estrelas cheias de fama e artrite. Recinto de hóquei em patins, com uma acústica miserável, não arcaria mais de dez mil pessoas sem ameaçar ruir. Apesar disto, quando Gallaguer entrou em palco a esgalhar o “Shin kicker”, acompanhado da sua Fender, de Gerry McAvoy e de Ted McKenna, soou-me a música celestial e fiquei amigo dele e do seu “rhytm and blues” irlandês até hoje.


No regresso, os velhotes esperavam-me dentro do carro. Eu oferecera boleia de volta a uns colegas de escola e perguntei ao meu pai se não se importava. Ele disse que sim sem ter o cuidado de os contar e de repente a carrinha Fiat Mirafiori estava apinhada com oito pessoas, três a frente e cinco atrás. Assim arrancámos, que nem o expresso de Bombaim, e o meu pai meteu-se por uma ruazinha estreita que subia da baía até ao local do concerto. Apanhou com dez mil pessoas a descer em sentido contrário, em estados variáveis de alienação. Durante minutos que pareceram infindáveis o carro ficou imobilizado, cercado por uma massa humana fluindo pastosamente, roçando portas e vidros, proferindo bocas jocosas, soltando palavrões e mandando umas murraças ocasionais nos vidros e no tejadilho. O momento alto da cena ocorreu quando uma amiga da malta, reconhecendo-nos no interior da viatura, subiu pelo “capot” e, espalmada contra o pára-brisas, ficou a acenar freneticamente, mandando beijinhos e abraços, perante o olhar esgazeado da minha progenitura. A turba acabou por escoar, libertando a via, e seguimos para Lisboa em silêncio. Chegados a casa, o meu pai comentou que à próxima talvez fosse melhor eu ir de comboio. Bingo!


Foi portanto de comboio e autocarro que durante os dois anos seguintes me desloquei ao Dramático de Cascais ou ao pavilhão do Belenenses para assistir à primeira grande vaga de concertos “rock” que houve em Portugal, muito à base da variedade de oferta da “new wave”: Stranglers, Clash, Ian Dury, Lene Lovich, Ramones, Dr. Feelgood, Police, Elvis Costello, Joe Jackson, mas também Supertramp, Peter Gabriel e as paredes de sintetizadores dos Tangerine Dream.


Cada espectáculo tinha uma banda de suporte, ou própria que fazia toda a “tournée” com os cabeças-de-cartaz (vi os Simples Minds antes de se tornarem conhecidos com a merda do “Don’t you forget about me”, xaropada infame que infelizmente ainda não consegui varrer da memória), ou nacional contratada para o momento (assisti aos Xutos e Pontapés ainda sem papada, aos Delfins, Arte e Ofício, UHF). Toda a gente tinha muito pouca paciência para estas bandas de entrada, considerando que ao pagar trezentos escudos pelo bilhete ganhara o direito a não ter que as aturar. As manifestações de desagrado resumiam-se geralmente a trinta minutos de apupo contínuo, mas podiam ser mais espectaculares. No concerto dos Clash, os UHF fizeram a primeira parte. Eu estava na bancada lateral e de repente vejo um risco vermelho sair da plateia e explodir em estilhaços na testa do José Manuel Ribeiro, que com pose suposta de roqueiro se entretinha a cantarolar pr’aí o “Rua do Carmo” para bocejo da assistência. Uma tomatada podre arremessada a mais de trinta metros, linda, com uma precisão fabulosa, só suplantada mais de trinta anos depois pelo lançamento da miniatura do “Duomo” que partiu os dentes ao Berlusconi.


E dos artistas principais, que lembrar? Escolho o concerto dos Ramones, que assisti na primeira fila da plateia. Eu levara comigo o meu irmão, na altura com doze anos, e em casa fora fortemente recomendado para nunca o perder de vista. Assim que cheguei ao pavilhão encontrei duas amigas que iam para a bancada e consegui que elas tomassem conta do rapaz – recomendando que não o perdessem de vista – e fui lá para baixo, esgueirando-me até me ver no centro da primeira fila, esmagado contra as grades pela pressão de milhares atrás de mim.


Fora o H que no ano anterior me dera a conhecer os Ramones. Vindo de França, o H notabilizara-se na escola por usar uns óculos escuros que lembravam os de um soldador e por vestir como aquela banda peculiar, cuja grandeza publicitava pelos recreios, e que muitos imediatamente caracterizaram como “punk”. O H inconformava-se, quase ofendido: “Não é “punk”, é “rock’n’roll”, ouviram? Rooock’n’roooooll!”.


Fosse o que fosse, o som turbinado de Joey, Johnny, Dee Dee e Tommy Ramone tornou-se indispensável nas tardes de rádio e nas noites de festa, onde o “It’s alive” podia tocar trinta minutos seguidos sem que ninguém saísse da pista. Todos sabíamos que a música era primária, dois minutos com três ou quatro acordes repetidos e uma batida sempre igual e letras básicas de meia dúzia de versos de pé-quebrado. Mas todos gostávamos daquela velocidade em estado puro.


Escolho os Ramones, que vos deixo agora de seguida num concerto de Ano Novo em Londres, muito parecido com o que eu presenciei no Dramático. Escolho os Ramones porque me lembram a rapidez com que, visto à distância, me parece que aqueles anos passaram, para não mais voltar.


Gabba gabba hey!