domingo, outubro 24, 2010

Exposição fotográfica (XXV)

Do baú digital, mais tiradas em Alfama.










quinta-feira, outubro 21, 2010

Histórias da crise

História 1


Carvalho da Silva da Intersindical e João Proença da UGT foram mancomunadamente entregar no Ministério do Trabalho, na londrina praça, o pré-aviso da segunda greve conjunta desde o vinte e cinco de Abril.

Convocaram as televisões e estas foram, diligentes. À porta, os dois sindicalistas declararam as habituais declarações. Carvalho da Silva antevia uma “boa greve”, com um sorriso de evento de quem antecipa um grande jogo de bola.


Eis senão quando surge uma velhota. Que manifestamente não gostava deles. Começou a invectivá-los, a mandá-los trabalhar, puxando galões de reformada após uma longa vida laboral. E logo diante das câmaras: que maçada! Ao princípio, os dois homens tentaram ignorá-la mas ela, para cão ignorado, ferrava bem a mandíbula. A polícia acudiu democraticamente, não fosse a anciã pôr em risco a sindical compostura. As câmaras viraram-se para a senhora e os dois homens. O caldo entornou e o tom empepinou.


A Carvalho da Silva e João Proença falta-lhes aquela sagacidade milenar das culturas africanas ou japonesa, nas quais um velho não se contradiz: ouve-se ou no limite atura-se com bonomia, que os anos e os cabelos brancos são para respeitar. A certo momento, Carvalho da Silva – como sói dizer-se – passou-se. Dirigindo-se à senhora, largou repetidamente:


- Quem é que a mandou cá?


De facto, a retórica estalinista é uma coisa notável, de uma homogeneidade perene e imaculada. Podem botar em cima doutoramentos em sociologia e gravatas de seda que na hora do aperto o sistema fechado, como lhe chamava Karl Popper, vem ao de cima. E neste sistema o povo não exprime o seu desagrado livremente: foi mandado como é próprio de quem obedece, manipulado como é próprio de quem não pensa, telecomandado por interesses com tempo e paciência para estas coisas.


Quando Carvalho da Silva finalmente foi embora, vieram as equipas dos serviços municipalizados e passaram a tarde a varrer do passeio as lascas do verniz.



História 2


Em 20 de Janeiro de 1961, John F. Kennedy proferiu o seu primeiro discurso como 35º presidente norte-americano: o mais jovem de sempre, com 43 anos, o primeiro irlandês, o único católico e o único, também, a deixar a marca presidencial no maior “sex symbol” do planeta da época coeva. Nessa alocução, consta que inspirado numa frase do poeta libanês Kahlil Gibran, Kennedy disse a célebre “Ask not what your country can do for you - ask what you can do for your country”.


Com certeza aflita com a crise que caiu em cima, a estação de rádio TSF anda a perguntar a toda a gente que vagamente dê ar de figura pública, com a voz de Kennedy em “jingle”, sobre o que é que podem fazer pelo país. Por acaso a frase de Kennedy não se referia a nenhuma acção relacionada com a economia. O contexto do discurso era o da Guerra Fria e a frase alude à defesa da liberdade.


Assim, por estes dias, ligo o rádio do carro e lá vêm os presidentes de uma empresa ou de uma associação agrícola, ou um vereador do Pinhal Interior, ou um promotor cultural de Cinfães, todos intentando tranquilizar-nos com o que têm em mente para ajudar Portugal e nos tirar deste mau passo em que nos achamos. Para minha grande surpresa, todos começam o seu minuto a afirmar que pensam continuar a fazer rigorosamente aquilo que têm feito até agora.


Pois. Mas não foi exactamente assim que aqui chegámos?



História 3


Hoje. No telejornal da TVI, Pedro Passos Coelho afirma à jornalista Constança Cunha e Sá quais as magnas razões que o levaram a escolher o caminho de arame e a alavancar a negociação do Orçamento de Estado. “En passant”, eu acho que ele foi totó e que se vai entalar (o que não me preocupa) e que corre o risco de nos entalar (o que já me inquieta um pouco mais), mas não é disto que quero falar agora.


A dado momento, a periodista, com a voz de um grave tabágico e aquela pose altiva de quem tem um Sá para lá no meio dos apelidos, começa:


- Mas para que os portugueses percebam…

- Os portugueses perceberam muito bem, respondeu Coelho.


De facto eu e todos os portugueses já tínhamos percebido muito bem porque, não possuindo embora as capacidades einsteinianas da Constança, não somos completamente imbecis. Fiquei por isso contente com a resposta de Passos, que me vingou de vezes sem conta em que tive que aturar esta, a Fátima Campos Ferreira, a Maria Elisa, a Manuela Moura Guedes, a Judite de Sousa e esse monte de gajas a quem malfadadamente pespegam um microfone nas mãos, a traduzirem-me para português “do povo” uma frase que se percebia à primeira. Bem hajas, ó Pedro. Só nesta, claro…



Moral das histórias


Moral? Bem, moral não têm, mas explicam muita coisa.


domingo, outubro 17, 2010

Princeps

Príncipe, meu príncipe
Possam ventos de auspício enfunar tuas velas
E cintilar no breu, chamando, tuas estrelas
Possas tu ser artífice
De noites adamantinas, de dias dourados
Que com eles bordejes qual arminho
O longo veludo que feito caminho
Te conduza aos destinos almejados

Príncipe, meu príncipe
Teu reino sem ti agora sombreja, estranho
Bruxas voando sobre memórias d’antanho
Lampejam como ápices
Átomos de esplendor, risos na sala do trono
Um passado sem mácula nem obstáculo
Numa torre em que no mais alto pináculo
Florescia a rama verde do sonho sem sono

Príncipe, meu príncipe
Lá longe, da tua nau bruxuleia a chama
Por cá, de teus passos a saudade clama
Príncipe, meu príncipe
Que venças seguidas tuas duras pelejas
Não erre teu olhar como Orfeu para trás
Sussurremos nós, por onde quer que vás
Prece sofrida pela vitória que ensejas

terça-feira, outubro 12, 2010

A casa meretrícia do Gogol


Dizia o velho Mata, referindo-se a certos agrupamentos políticos, que pelo andar da carruagem se vê quem lá vai dentro. Aplico muito essa máxima na aquisição de livros e discos: compro por impulso, pela pinta do invólucro. Aliás a música é palavra feminina, por isso extrema o cuidado com a aparência para melhor seduzir. Boas capas nem sempre significam boa música, mas quem faz boa música não se contenta com uma capeca qualquer. Às vezes nem têm que ser grandes: basta que pisquem o olho. De vez em quando enfio barretes até ao calcanhar, mas felizmente vou não resistindo, com mais sucessos que fracassos.


Ontem fui à FNAC trocar dois “Massive Attack” que o amigo PW me oferecera de aniversário pelas minhas


[ ] 21

[ ] 22

[ ] 23

(marque com um X a resposta certa)


primaveras. Desconhecia ele o meu poder de antecipação: cumprindo promessa aqui feita, já os tinha comprado todos.

Levei em câmbio um Rigoletto, versão integral da Deutsche Grammophon com o Plácido Domingo como duque de Mântua, a preço de saldo e quando procurava a segunda troca dei com uma coisa chamada Gogol Bordello. Gostei da composição da capa e do ar marialva do bacano nela constante. Fiquei interessado. E depois lembrei-me que o meu pai se gabava, como quem fala com orgulho de uma cicatriz de guerra, de ter lido de fio a pavio os grandes chatos russos, entre os quais destacava Tchekov e Gogol. Era um sinal dos céus: venha!


Chegado a casa, quando mostrei as minhas compras, o meu júnior descartou com desprezo o Verdi para cima do sofá e ficou embevecido a olhar para o segundo: “compraste Gogol Bordello!”. Nesse momento subi quinhentos pontos na consideração dele, o que me permitiu ficar só em 12375 negativos.


O marialva da capa, líder da banda, chama-se Eugene Hütz e nasceu na Ucrânia. A banda é nova-iorquina e os músicos são ucranianos, russos, israelitas, etíopes, americanos, escoceses, equatorianos. Uma sociedade das nações a tocar música cigana enxertada em “Sex Pistols”. Vejam com os vossos próprios ouvidos:





Quando vim para aqui alinhavar isto, o rapaz disse-me: “Ouve Crystal Castles”. Assim fiz enquanto escrevia, cortesia do “Youtube”e gostei. Nisto de música andamos simbióticos: ele faz-me descobrir o brilho do presente e eu apresento-o às glórias passadas. De vez em quando leva um Focus ou um The Clash para o quarto ou para o “iPod”.

sexta-feira, outubro 08, 2010

Exposição fotográfica (XXIV)

Em Antuérpia, a 12 de Setembro deste ano


Estação Central, junto à praça Rainha Astrid, zona dos diamantes


Na rua Meir.


Junto à Groenplaats, a cor de um café quentinho


Igreja de S.Paulo, de 1517, com um dos interiores mais belos que eu já vi.


Narguilé com vinte por cento de desconto para estudantes. Há que incentivar o estudo!

Fonte Brabo na Grote Markt, a praça do mercado grande. Na Bélgica, o nome das ruas e praças nas zonas antigas das cidades ainda nos conta sobre a vida noutros tempos.

A Grote Markt. Nela tocava este "jazz band", que entusiasmou indígenas e forasteiros com uma versão muito própria do "Smoke on the water". O público aplaudiu de pé, dado não haver cadeiras.

quinta-feira, outubro 07, 2010

A coisa pública

Sempre percebi à minha volta, na minha infância e juventude, uma associação de ideias entre a figura da República e o progresso, a igualdade e a liberdade. Ouvia dizer sobre velhotes venerandos que haviam sido republicanos, o que era uma maneira de afirmar que tinham demonstrado valentia ou propalado ideais. Geralmente complementava-se o “republicano” com “opositor ao regime”. Mau grado o tal regime, o Estado Novo, se corporizar ele próprio numa república. Tal associação entre republicanismo e oposição ao fascismo reforçou a imagem da Primeira República como momento áureo e iluminado das liberdades em Portugal, ideia comummente adoptada pelas fatias da oposição que vieram a dar origem aos dois partidos do actual arco do poder.

Como lado B deste conceito, aparecia a monarquia enquanto anacronismo reaccionário. De “per se”. Ideia ainda frequente nos actuais livros escolares e nas reportagens de televisão neste ano de centenário do 5 de Outubro.

Ora se a estatística não for uma batata, nem a História outra, há aqui muito que não se aguenta bem de pé.

Pegando na lista dos países com maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), uma medida usada pela ONU que agrega indicadores de esperança de vida, literacia e riqueza “per capita”, no topo reside uma monarquia (a Noruega). Dos três primeiros, dois são-no também. E entre os primeiros dez, seis. E nos vinte primeiros, doze. Claro que são monarquias constitucionais, com monarcas com campos de actuação limitados e simbólicos. Por isso se diz, quando alguém não possui nenhum poder efectivo, que é uma rainha de Inglaterra. Exactamente a mesma em quem alguns destes países, sem complexos de soberania, como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia, delegaram o papel de “chefe de Estado”: num monarca estrangeiro!

Isto não demonstra que um regime monárquico promova mais o desenvolvimento do que um republicano, nem o inverso. Mas permite pelo menos afirmar que a monarquia não constitui um “handicap” ao progresso ou um óbice à democracia. E impõe alguma prudência: quando chegarmos ao nível de uma Noruega, já não digo em IDH, mas meramente em dedos de testa, talvez os republicanos portugueses não façam figuras ao associar automaticamente regime monárquico e noite das trevas.

Por outro lado, analisando friamente alguns números da nossa Primeira República, podemos concluir que as coisas não correram lá muito bem. Algo que tornou menos fácil viver em Portugal nesse período foi o facto de se morrer mais: entre 1910 e 1920, a mortalidade por mil habitantes aumentou 19% e a mortalidade infantil uns impressionantes 36%. O produto nacional por cabeça, medido em libras-ouro, desceu no mesmo período uns robustos 40%. Entretanto, o valor da moeda dividira-se por sete. O país viu-se mais pobre e emigrava-se duas vezes mais. Apesar do pequeno aumento da população, o número de eleitores inscritos baixou ligeiramente e manteve-se na casa de uns meros 20% da população adulta. O número de hospitais decaiu. Apenas na educação se verificou de facto alguma evolução, especialmente no ensino liceal, e a taxa de analfabetismo baixou nesses anos de 75 para 71%.

A democraticidade do regime seria nos nossos dias qualificada de musculada, apresentando-se com liberdades formais mas tolerando – senão promovendo – assaltos aos jornais adversários e bandos de moca em punho à caça de oponentes. Parece evidente que a defesa e a disseminação da Liberdade não estavam entre as preocupações centrais do regime, ao contrário do que claramente aconteceu a seguir ao 25 de Abril. Neste particular, os progressos face ao período da monarquia não entusiasmam, se por acaso os houve. E o papel das mulheres na vida pública continuou menorizado pelos homens do poder.

À guisa de cereja em cima do bolo, a instabilidade política foi permanente. A dado momento, houve governos que duraram dias… Não surpreende muito que a mesma burguesia que aclamara a República em 1910 aceitasse pacificamente o golpe de 1926 e tudo o que veio a seguir e que a meu ver não trouxe nada de bom.


Apesar do que acima expus, e que serviu apenas para esclarecer que acho a discussão sobre o tema, em Portugal, muito mal centrada e feita de ideias feitas, eu sou republicano. Por duas razões. Uma, porque na prática se verifica que o bom governo da nação é igualmente possível numa república ou em monarquia. A Suécia tem um rei e a Finlândia um presidente. E também se constata que uma péssima governação pode aparecer em qualquer um dos sistemas: no Iémen republicano como na monárquica Arábia Saudita.

A segunda, que se esteia na primeira, é que, podendo qualquer um dos sistemas funcionar, não me parece que haja grandes justificações teóricas para que se escolha um regime em que um cidadão tem um certo grau de poder político, por pequeno e ilusório que seja, reservado só para ele e para a família. Tão simples quanto isto.

Entendo que uma família real funcione como referente aglutinador de um povo, como traço de união, como espelho da memória dos tempos. Percebo que nalguns países, como a Bélgica, ou até a Espanha, um rei constitua hoje em dia um dos mais fortes alicerces da unidade nacional. Percebo que noutros a realeza seja um tradicional traço diferenciador de um povo, como acontece no Reino Unido. Mas, percebendo, não me chega.

E em Portugal ainda menos se justifica. O comboio da História não pára e a nossa monarquia quedou-se numa estação já muito lá para trás, no dia em que Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orleães Sabóia e Saxe-Coburgo-Gotha, “aka” D. Manuel II, embarcou na Ericeira no iate real “Amélia” rumo a Gibraltar. Que me desculpem os meus amigos monárquicos.


Dito isto, não senti grande motivação para celebrar os cem anos da instauração da República. Talvez porque não haja assim muito para festejar. A “res publica” está cada vez mais coisa e cada vez menos pública. Talvez porque não seja um assunto essencial: o que nos distingue da Noruega não é ela ser uma monarquia; o que nos separa é ela ser uma democracia a sério, mais solidária, mais participada, mais equitativa, exemplar até quando a constituição garante que parte dos rendimentos do presente se destinam às gerações futuras, contrariamente a cá, em que vamos chutando para cima dos desgraçados que hão-de vir a dívida, o desemprego, as longas carreiras contributivas e outras malvadezas a que habilidosamente nos safámos.

Mas já que estamos numa de celebração e memória, que daí tiremos pelo menos algum proveito. Para tal, mais do que assinalar como a Primeira República começou, convinha lembrar bem como terminou. Para que a História não se repita. É que o Diabo, tal como os PECs, tece-as.