sábado, julho 24, 2010

Os frequentes

Recomendam as associações de pais aos seus membros que vigiem por onde andam os filhos pela “internet”, porque com facilidade se desemboca em “sites” esquisitos e menos recomendáveis. Pois eu apanhei-me sozinho e assim me aconteceu. Sem saber bem como, fui parar à página da Assembleia da República – que a tem, de pinta modernaça mas velocidade algo lenta e resposta aleatória: os servidores públicos, mesmo quando compostos de circuitos integrados, têm uma relação muito própria com o trabalho.

Serve este intróito para explicar aos “Matareaders” mais suspeitosos por que raio me lembrei eu de ir xeretar no “site” parlamentar. Lá anda o gajo sem nada para fazer, dirão. Mas não: apenas um mero acaso, uma navegadela à deriva no ciberspaço, que ali desembocou. E, como na anedota do alentejano apanhado de calças na mão, já que ali estava…


A primeira coisa que descobri foi que o nosso deputado é um ilustre desconhecido. Aquilo está cheio de malta de quem nunca ninguém ouviu falar. Eu considero-me um tipo razoavelmente informado, leio o jornal todos os dias e papo o noticiário todas as noites. Embora já me vão dando umas brancas, gabo-me de razoável memória. Pois corri o rol dos 230 tribunos e há 167, ou seja 73%, sobre os quais eu nunca ouvi a mais leve referência ou a mais obscura notícia, nem bem, nem mal, nem na quarta fila, nem mais gordos, nada. São nomes que me dizem tanto quanto a lista de suplentes do Sintrense num embate contra o Samora Correia.

Se querem prova do que vos conto, dêem-se a este exercício: Mariana Aiveca, Lucinda Biscoito, Bravo Nico, Paulo Pisco, Antonino Chuta, Marta Copinha. Três deles são deputados da nação. Os outros nomes acabei de inventar. Adivinhem quais e mandem-me uma mensagem que eu dou-vos um doce na volta do correio, se tiverem acertado.

Detalhando a mesma análise por partidos, constato que há 27 conhecidos do PS (28% da bancada), 18 do PSD (18%), 6 do CDS (29%), 6 do Bloco (38%), 5 do PCP (38%) e uma do Partido Ecológico Os Verdes, com o inolvidável e muito arcádio nome de Heloísa Apolinária, que constitui só por si metade do casal parlamentar deste partido tantas vezes injustamente esquecido. As mais altas taxas de notoriedade do Bloco e do PCP podem-se explicar em parte por uma maior militância e por outro lado por eles fazerem como as equipas de hóquei no gelo, que de vez em quando trocam todos a meio do jogo menos o guarda-redes.

Mas mesmo destes conhecidos, muitos são-no por razões que não têm um courato a ver com a sua actividade parlamentar. São exemplos o Afonso Candal (por ser filho do Candal pai), o Arménio Santos (por liderar a discreta tendência social-democrata da UGT), o António Preto (por umas notícias foleiras que vieram nos jornais), o Fernando Negrão (por ter chefiado a judite), a Inês de Medeiros (entra em filmes, dos de celulóide), a Isabel Neto (médica que tratou o meu pai), a Manuela de Melo (foi locutora da RTP Porto), a Maria Rosário Carneiro (por ter dez filhos, se não me falha o conto), o Marques Júnior (militar de Abril), o Mendes Bota (organiza todos os anos no Algarve uma festa que dá no telejornal) ou o Ricardo Rodrigues (gamou os gravadores a uns jornalistas ou foi forçado a contragosto a enfiá-los no bolso, consoante a versão venha da oposição ou do PS). E mais uns antigos ministros agora discretamente refundidos e alguma gente que aparece nos frente-a-frente da SIC Notícias. Tudo somado, sobram muito poucos deputados cuja fama venha de deputarem.

Que fazia esta malta na vida, antes de aterrar no hemiciclo? Nada menos que 80, ou seja 35% do total, são formados em Direito, o que pode explicar muita coisa sobre o torto estado da nação. Economistas constam 25, com a missão de explicar o descalabro. Há quatro médicos, duas farmacêuticas, um dentista e duas enfermeiras. Dava para montar uma pequena clínica. Mas só dois psicólogos, número manifestamente insuficiente para tratar tão alargada clientela. Engenheiros são 16, um dos quais de Minas, que encontrou finalmente um buraco onde se enfiar, mas só dois de Mecânica (a verdadeira fina-flor da nação). Pena! Filósofos temos sete, meio desapontados por na Assembleia, ao contrário da Academia, também entrar quem não é geómetra: antropólogos, sociólogos, agrónomos, biólogos, um geólogo à cata de pedra (deve ser do Bloco), um arquitecto, um silvicultor, três professores de ginástica, quatro geógrafos, nove filólogos e muita malta daqueles cursos manhosos: gestão da comunicação, estudos europeus, serviço social e quejandos. Para guardar este rebanho todo, um único tropa, o supra-citado Marques Júnior.

Catorze deputados não possuem curso superior. Apenas 6% a representar os mais de quatro quintos de portugueses nas mesmas circunstâncias. Nota-se aqui algum enviesamento na representação do povo.

Na verdade, isto são mais habilitações académicas do que carreiras. Sobre percursos profissionais, pouco conseguimos descobrir. Há um imbecil, um dos 80 com uma licença para advogar, que assinala como profissão “jurisconsulto”. Cagão! Nem deve saber o sentido da palavra, que eu lhe recomendo que verifique num dicionário de jeito. Era como se um dos engenheiros pusesse como profissão “génio da ciência”. Uma das nossas deputadas indica como profissão “autora”. Assim, sem vergonha. Só não sabemos se de obras, se dos dias de alguém. Temos felizmente, nas antípodas destes maus exemplos, pessoas como Jerónimo de Sousa, um senhor, que assinala que exerceu o mester de “afinador de máquinas”. Ficamos a saber que se aplicou em trabalho honrado, enquanto de muitos dos outros paira a sensação – lida nas entrelinhas e no currículo partidário – que se foram baldeando de sinecura em sinecura.


Mas o que mais acabou por me impressionar neste breve passeio pelo mundo dos nossos parlamentares foi que 51 deles, 22%, sentiram uma necessidade parva de inscrever como credenciais académicas a frequência de cursos que não terminaram. Tenho para mim que o que se começa acaba-se. Poderão ter ocorrido circunstâncias extraordinárias, que não falta de persistência, que impediram um ou outro de concluir o iniciado. Certamente não o caso de todos. Por isto, parece-me extraordinário que, em vez de demonstrarem algum embaraço pelo falhanço, o publicitem no currículo como se aquela frequência de um mestrado qualquer em gestão de folhas de couve lhes trouxesse aura de sapiência ou laivos de estatuto. É uma atitude que revela o carácter. Em que uma serôdia necessidade de aparência os impele para o abanar fútil de um canudo incompleto, que lhes fica no meio do currículo com o mesmo ar bacoco de um anão de loiça no centro do que poderia ser um jardim honesto.

Serão eles assim em tudo? Gabar-se-ão sempre daquilo que não conseguiram levar a cabo? Imagino dois deles num recanto de um bar, em conversa de saias:

- Então? Que tal o jantar com Beltrana?
- Óptimo! Depois fomos para casa dela e a coisa proporcionou-se…
- Grande leão!
- Bem na realidade não consegui euh… consumar… sabes: tinha já bebido uns copitos!
- Ah! Entendo.
- Mas frequentei! Já cá conta na lista!
- Claro! Também é importante!

Se calhar não leram o “Os Maias”, mas frequentaram no liceu, nas páginas que a professora indicava. Provavelmente frequentaram uma carreira profissional, que deixaram antes do meio por causa do “trabalho político”, por acaso uma das principais justificações para as faltas justificadas dos nossos tribunos, cuja análise também pode ser feita no “site”. Análise que nos permitiria concluir que ser eleito põe em perigo a saúde. Os deputados adoecem em média muitos mais que o pessoal no meu emprego e às vezes padecem à terça e à quinta, só com um dia de saúde pelo meio.

Podíamos pois chamar-lhes “os frequentes”. Frequentam. Têm frequência de…

E infeliz e frequentemente, esses (que são demais) apenas frequentam o lugar para que foram eleitos, sem o levar às últimas consequências. Por isso passam ao de leve e incógnitos, meramente frequentando, como suplentes de alguma comissão de especialidade, levantando o braço ovinamente quando o líder da bancada assim o manda. Nunca correndo o risco de por arrufo de consciência poderem perder um lugar elegível nas eleições que se seguem.

Não percebem que no seu currículo, melhor que a frequência de umas inconsequentes cadeiras de primeiro ano, ficaria a constatação de que votaram sempre pela sua cabeça e por quem os elegeu, mesmo quando tiveram que mandar a disciplina partidária às malvas.

quinta-feira, julho 08, 2010

A carne para canhão

Durante o fim-de-semana que passou (mais depressa do que eu queria), entre mergulhos no tanque onde o termómetro flutuante ia ostentando uns 29 Celsius bem satisfatórios, encetei a leitura de “A Argélia argelina”, um livro de Jean Lacouture sobre o processo de independência daquele país. Reúno muitas vezes com argelinos por osso de ofício e pouco conhecia sobre a sua história. Nem tarde, nem cedo, foi desta, à torreira dos 38 que esbraseavam a serrania alentejana.


Ainda não acabei o volume, mas já fui aprendendo umas coisas que para mim são de utilidade muita relativa mas que para outros poderiam dar algum jeito: por exemplo àqueles que ainda hoje se aventuram na aventura colonizadora.


A França ocupou a Argélia em 1830, terminava o reinado de Carlos X. Até ao final do mono-império de Napoleão III, a política oficial para a colónia oscilou entre uma tutela teoricamente benevolente delegando alguns poderes nos locais e grandes e deliberados ensaios de porrada. Pelo meio foram espoliando terras e trazendo colonos. Contas feitas, estima-se que entre 1830 e 1872 um argelino em cada três morreu de morte violenta, epidemia ou fome, tudo brilhantemente patrocinado pelo humanismo gaulês. Compreende-se que ainda hoje os tipos não gostem deles.


À medida que o tempo passou, que a França perdeu potência e que as condições políticas mundiais se tornaram pouco afáveis para os colonizadores, o problema foi-se complicando. Desde a metrópole, a política oscilava entre uma visão integradora que preconizava que a Argélia fosse parte do território nacional, o que acarretava a chatice de ter que dar aos indígenas os mesmos direitos e voto nas matérias e tudo o mais e outra que a definia como colónia a manter “manu militari”. No local, a tendência era para não ligar puto aos telegramas de Paris. A influência conservadora dos colonos, que tinham tudo a perder (e que acreditavam no “status quo” eterno), e a rédea solta dos militares impediam qualquer actuação que fosse favorável à autonomia, à independência ou mesmo a alguma justiça para a arabiada.


Do lado dos argelinos, uma elite pensante foi-se desenvolvendo e dividindo entre os que preconizavam uma via reformista, de lenta aquisição de direitos, de uma Argélia argelina dentro de uma França amiga, e os que preconizavam a acção directa e violenta para uma separação total entre povos que tinham apenas em comum os metros quadrados que pisavam. A tendência francesa foi a de perseguir uns e outros.


A seguir à guerra mundial, a situação agudizou-se após os massacres de Constantine, em Maio de 1945, quando cerca de uma centena de colonos foram mortos por extremistas argelinos e a reacção francesa foi completamente desproporcionada: estimam-se quinze mil mortos. Quando no final dos anos quarenta os franceses foram à procura dos moderados argelinos para falar, já não os encontraram. Só a guerra e a independência estavam em cima da mesa. O confronto armado, uma guerra suja de parte a parte, começou em 1954 e os franciús fecharam discretamente a sua loja colonial em 19 de Março de 1962. Quanto aos colonos, piraram-se em massa para o outro lado do Mediterrâneo, às centenas de milhar, muitos com uma mão à frente e outra atrás. Afinal, aquele peito todo não lhes serviu de muito.


Ao ler este pedaço de tempo passado, não me pude impedir de fazer um paralelo com a situação dos colonatos que Israel vai alegremente estabelecendo pelos territórios palestinos da vizinhança, aproveitando o facto de não se lhe aplicarem as resoluções da ONU que se lhe aplicam. O uso da força, o sentimento de superioridade, a criação de uma massa de colonos como força de bloqueio, a hesitação entre o discurso da integração e o da divisão, tudo parece tirado a papel químico.


O que o governo israelita está a fazer àquela gente, à sua gente, raia a indecência. É pô-la do lado errado da História onde será fatalmente atropelada, mais cedo ou mais tarde. Se não ela, os seus filhos ou netos. A força pode aguentar a situação dez, vinte, cinquenta, cem anos, mas um dia fraqueja. Depois vai tudo a eito como foi na Argélia. E aí, tarde demais, vão perceber que os usaram como carne para canhão.


As situações meta-estáveis têm destas coisas: um dia, de repente, instabilizam mesmo.

segunda-feira, julho 05, 2010

Disclaimer on orthographic obsolescence

Parece que arrancou final e oficialmente a aplicação do acordo ortográfico e por esses jornais e revistas fora houve muita consoante que perdeu o pio de vez.

Pois aqui no Mataspeak vai ficar tudo na mesmíssima: burro velho não aprende línguas e eu já qualifico nas duas categorias.

O fim-de-semana...

Los mosquitos - pégasos del rocío -
vuelan, el aire en calma.
La Penélope inmensa de la luz
teje una noche clara.

Federico Garcia Lorca, in "Se ha puesto el sol"


... que me andava a fazer falta, no fundo do Alentejo profundo.


Com fogo,

Água,

Terra,


E ar, entre outras.