sábado, maio 22, 2010

A marrada na parede

Muitos anos depois da experiência laroca da Engª. Pintassilgo, Portugal volta a ter uma primeira-ministra. Igualmente gordinha, igualmente química, mas loira, chama-se Angela Merkel e reside em Berlim onde faz um gancho como chanceler.

Quando era Secretário de Estado, Henry Kissinger ironizou certa vez perguntando se quisesse falar com a Europa para quem ligava. Obama já sabe: liga para ela. No fim-de-semana passado, tendo já despachado Papandreou, Merkel nacionalizou o nosso ministro Teixeira dos Santos e o seu homólogo espanhol e encomendou-lhes o cardápio: subidas de impostos, taxas extra, reduções de ordenados, cortes a eito, consoante. Um vê-se-te-avias. Neste entretanto, não atendeu o telefone a Durão Barroso e pôs em sentido Sarkozy, que julgava que só a Carla é que o olhava de cima.


Consequentemente, vamos penar uns bons anos. Entalados entre obedecer ou voltar ao escudo, com corrida aos bancos, curralito, desvalorização súbita, etc., amochou-se. E, infelizmente, ainda bem. O ministro das finanças vai cumprindo como pode, de dicionário português-alemão debaixo do sovaco, e o nosso Sócrates passou-se de vez, desasado perante a perspectiva de ter que explicar às pessoas que a coisa não correu nada bem, matéria em que não é especialista.

Agora, e ainda assim num cenário simpático, os portugueses vão ter que passar uns cinco anos a viver com menos dez a vinte por cento do que tinham. Para muitos, parte disto até pode ser fácil: passar a aguentar o carro uma dúzia de anos, não comprar o último plasma de trezentas polegadas enquanto o velho televisor não der o prego, jantar em casa um sábado ou outro. Se calhar até vão aprender a poupar umas massas (poupança: conceito macroeconómico desaparecido em finais do século XX que consiste em ter um saldo positivo entre receitas e despesas).

Para muitos outros, a coisa será dramática. Para os que já estavam à rasca, para os que vão ficar e para os que necessitavam do Estado social. Os serviços médicos, a escola, a segurança, asfixiados pela dialéctica entre reduções orçamentais e direitos adquiridos, vão decair. Os buracos nas ruas vão demorar mais algum tempo a ser tapados. Já nem falo na justiça, que estava numa situação tal que nem se vai dar pela diferença.

Alguma desta dor poderá ser minimizada se se aproveitar esta germânica oportunidade para arrumar a casa do Estado português, que arrasta como uma canga o peso de um aparelho burocrático e inútil, arrogante de privilégios que se confundem com direitos, com uma super-estrutura mandante onde desaguam os dejectos de um mundo partidário atrofiado ao pé do qual o Conde de Abranhos brilharia como estadista.

Mas não acredito. Seriam precisos líderes que fossem capazes, por exemplo, de levar a cabo a mais esquerdista e socialista das medidas: liberalizar os despedimentos na função pública, permitindo limpar a máquina do Estado da grilheta dos que nada fazem excepto gala em não fazer, dos que acham que têm direitos eternos e nenhuns deveres, dos que não se preocupam pela geração seguinte minguar a recibos verdes para que eles possam ter diuturnidades que não merecem. Não são todos. Provavelmente apenas uma minoria. Mas os suficientes para que o Estado-providência português mirre e morra, entalado entre os pagamentos da dívida e as poses dos Picanços e dos Mários Nogueiras e as clientelas todas e mais algumas.

Seriam necessários governantes que tivessem a coragem de falar às pessoas de uma coisa chamada realidade. Que explicassem que não podemos viver anos a aumentar constantemente a dívida externa em dez por cento do PIB. Que o dinheiro não pertence ao Estado, mas a nós e que cada cêntimo mal gasto e que cada minuto na palheta significam menos médicos para operar cancros e menos polícias nas ruas. Que a energia barata não é um direito divino e que se for carota o pessoal não se esquece de desligar as luzes. Que uma enfermeira que responde torto e desumanamente aos doentes num hospital, porque sabe que tem as costas aquecidas pelo sindicato, e que não recebe rapidamente guia de marcha, está a tirar o lugar a uma jovem que custou milhares de euros a formar e que pode estar ansiosa por dar o seu melhor.

E seriam necessários cidadãos mais implacáveis. Que percebessem que votar num corrupto porque faz obra é como abrir a porta de casa a um ladrão só porque leva poucas pratas e deixa algumas. Que por muito amor clubístico que tivessem se recusassem a aceitar dar um tostão que fosse de dinheiro público para construir dois estádios em Lisboa, quando o AC Milan e o Inter (clubes pobretanas) jogam no mesmo. Que educassem os partidos e que ao mínimo escândalo ou devaneio votassem maciçamente na oposição, sem medo, obrigando aquela malta a sanear a sua atitude e a despachar as maçãs podres mal fossem descobertas.

Mas como há maior probabilidade de o D. Sebastião voltar para a semana envolto em nevoeiro do que isto que eu agora disse, continuaremos às ordens da Merkel, como mais um “lander” da República Federal.

E sobre a crise internacional, ainda isto: não simpatizo particularmente com a chanceler alemã, mas foi ela que disse a frase politicamente mais relevante e acertada dos últimos tempos, que o poder tem que estar na política e não na economia. Carradas de razão. Há algo que une Merkel, Obama e Sócrates e que os separa dos economistas-chefe da Moodys, do “chairman” da Morgan Stanley e, já agora, do presidente da Coreia do Norte. É que os primeiros podem ser destituídos pelo voto e os segundos não. Por isso, o primado da política sobre a economia é uma questão – básica – de Democracia. Que se regule então forte e feio.

Até porque se há coisa que esta crise demonstrou foi que viver num mundo com estes “traders” à solta resulta desagradável. Aquela amálgama de atrasados mentais a que se convencionou chamar mercados simplesmente não funciona em auto-gestão. Por muito que custe aos sectários da mão invisível, seria como esperar que um bando de macacos à solta dentro do “cockpit”, a mexer nos botões ao calhas, conseguisse aterrar um Airbus na pista da Portela.

sábado, maio 08, 2010

S.M.I.L.E.

Todos os anos, a associação de alunos do Liceu Francês de Lisboa, minha escola de sempre, a quem confiei os meus filhos para que se lhes dessem umas luzes, organiza um espectáculo de beneficência. Chama-se S.M.I.L.E. Nunca falto. Ignoro o que significa a sigla, se é que algo se esconde por trás daqueles pontos. Sei que a entrada custa um euro e a fatia de bolo um euro e o copo de plástico a desbordar sumo um euro também. No final, na caixa, não muito dinheiro, mas que sempre dará algum jeito no Camboja, destino tradicional da colecta, por razões que já se perderam no tempo.


Smile, portanto.


Ao palco, cada um traz o que sabe, mesmo que não saiba. Uns tocam, por vezes mal. Canta-se, desafina-se também, esganiça-se a espaços. Dança-se, entre o síncrono e o assíncrono. Crianças trazem pequenos “sketches” com vozes e poses de crianças. Em anos, exibem-se artes marciais. Noutros, concursos de teatro. Os microfones falham e quando não falham as apresentadoras falam para a frente e para o lado, deixando cair palavras ao chão. Vai-se percebendo. Ora não se ouvem os instrumentos, gerando-se protestos de silêncio na sala, ora as colunas distorcem, lançando mãos aos ouvidos. Com tudo isto, um dos maiores espectáculos do mundo.


Smile, relembro.


Desde o palco, dá-se. Na plateia, recebemos. Lá em cima, vence-se a verdura dos anos, vence-se a vergonha de encarar uma sala cheia, vence-se o riso que espreita, dobra-se a falta de tempo de ensaio. Cá em baixo, os amigos não se importam, ululam, aplaudem, comungam, vivem, agitam isqueiros e telemóveis iluminados. Uma rapariga entoa o “Summer of 69”: “those were the best days of my life”. São, de facto. E nós, os mais velhos, temos saudade da generosidade, da intensidade, da urgência, do riso sem mácula e do beijo que num recanto escuro da sala dois corpos ainda não acabados trocam, com um enlace como se fosse o único, com uma sofreguidão como se fosse o último. Saudade é uma palavra simpática para inveja.


Smile, dizia.


A alegria, por muito que esfuzie, não esquece. Há uma semana viveram a dor da morte de um colega, mas não deixaram de o levar à festa. Um amigo, que com ele tocara no passado, fecha o espectáculo tocando em sua memória uma música dos Radiohead, que certamente ouviram lado-a-lado. Uma moça, quase pequena para a guitarra que segura, dedica-lhe com voz hesitante uma das músicas que interpreta e que compôs. Fala de um bom rapaz que foi e do sentimento dos que ficaram: “free falling”. Acabado o seu momento, com um cantar certinho, desce os degraus laterais, sai para o fundo da sala e chora em sossego.


Smile, tá certo.


O espectáculo termina, como sempre, com todos ao estrado, para um último coro, um derradeiro aplauso, um abraço que vai de uma cortina à outra.


Por coincidência, tenho um amigo inquieto que parte amanhã para o outro lado do mundo, julgo que para ver gente feliz. Procuramos sempre longe à brava aquilo que sobeja à nossa porta.


Smile, já disse!

Poema muito curtinho

Ao sol de domingo, no Alto de São João, rapazes de dezassete anos zangaram-se em surdina, trocando as palavras agrestes e camaradas dos dezassete anos, porque uns tinham carregado, de olhos vermelhos, o féretro de um amigo e os outros não tinham podido.

domingo, maio 02, 2010

Exposição fotográfica (XXII)

Rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa, a 30 de Novembro passado