domingo, fevereiro 07, 2010

O proxenetismo cercado de água por todos os lados

Há luxos que excedem as posses do possessor. Carros de marca que mirram o orçamento em revisões e reparações de farolins. Cavalos que necessitam de estábulo, tratador, veterinário. Barcos atracados em marinas usurárias, chupando galões de combustível em cada trajecto entre ancoradouros. Amantes exigentes, requerendo jantares exclusivos e suites presidenciais.


E esta verdade, se verdadeira para as pessoas, também o é para os países. Portugal arrasta um luxo pesado demais para a sua parca bolsa: as regiões autónomas. Em particular, a da Madeira.


Da primeira vez que fui à Madeira, em 1991, levei quase duas horas de carro do Funchal a Porto Moniz, numa estrada serpenteando pelas levadas. Da segunda, há três anos, foi coisa para vinte minutos em auto-estrada sem estrada, uma vez que praticamente uma sequência de túneis e viadutos, com um custo por quilómetro semelhante ao de uma expedição lunar da NASA. Entre essas duas visitas, no Lido, os hotéis tinham crescido como cogumelos; os clubes de futebol da região disputavam lugares europeus; o rendimento por cabeça ultrapassara a média nacional. Para lembrar a Madeira de outrora sobravam apenas as crianças de Câmara de Lobos que continuavam com o mesmo ar de miséria e a mesma fama de malandras na boca da burguesia funchalense.


Para este milagre económico contribuíram algum crescendo da actividade local, em particular turística, bastantes fundos comunitários, os capitais que circulam pela zona franca, mas, sobretudo, eu e você. Apesar de no final dos anos noventa a República ter perdoado duas vezes um montão de caroço devido pela região, a Madeira continuou a cravar e aguenta hoje um serviço de dívida que excede o seu produto. O conjunto dos Portugueses tem 4600 milhões de euros de obrigações financeiras associadas a região. Só cá em casa são quase dois mil euros de património que estão de alguma forma onerados pelas necessidades madeirenses, praticamente o mesmo valor que para com o total dos municípios do “Continente”, como eles dizem, provavelmente assim chamado por ter que se conter nas suas próprias despesas para poder ajudar ao desmando insular.


Esperar-se-ia que a Madeira ficasse um poucochinho grata por esta demonstração de simpática coesão nacional. De algum modo, ando eu a lixar as suspensões do carro nos buracos da minha rua em Lisboa para que os mil habitantes de Santana cheguem num tirinho ao centro do Funchal. Enquanto eu tremo que nem varas verdes quando chega a carta do IRS, o madeirense abre-a tranquilo, sereno nas suas excepcionais condições fiscais. Mas não: afinal, pela voz do soba local, eleito sistematicamente com maiorias quase tão gordas como as peles da sua papada, verifica-se que não se acham satisfeitos. Mais: insultam-nos, apodando-nos de cubanos nos dias amenos e de imbecis para cima nos dias restantes, mordendo a mão que, mais do que lhes dar de comer, os banqueteia opiparamente.


A condescendência com que no tal “Continente” tratamos as sacanices e as alarvidades de Alberto João Jardim sempre me intrigou como um dos maiores mistérios da vida política portuguesa. Talvez porque eu seja ingénuo e pense que a covardia tem limites. De facto, aquela reacção que se vê nos partidos e em muita imprensa, de lhe achar graça por ser um palhaço inimputável, uma espécie de bobo da corte a quem tudo se perdoa, é uma forma de fingir amedrontadamente que nada se passa e que não há ali muitas questões a resolver, nem que seja em nome da decência. Os bobos da corte medievais estavam autorizados a desbocar-se à frente do rei, mas não andavam a derreter o tesouro real e sabiam que se pisassem o risco respondiam com o seu pescocinho.


E eu cá não acho piada nenhuma a Jardim. Nem o creio louco. Pelo contrário: é um autocrata inteligente que sabe manipular quer os anseios e receios dos madeirenses, quer os complexos e defeitos dos continentais para financiar e perpetuar uma coutada de poucos paga com o dinheiro de todos. E que envergonha o país com o simulacro de democracia que ocorre no território, mais até que quando passeia de cueca na avenida ou nos insulta de chapéu de palha no comício do Chão da Lagoa.


A inacção da República face a Jardim surpreende-me tanto mais que tirá-lo de lá não me parece complicado. Para um primeiro-ministro, existem tarefas fáceis mas aborrecidas e outras difíceis mas divertidas. Ver-se livre de Jardim será simultaneamente fácil e divertido e um desígnio nacional. Não se percebe pois que nunca dedicaram a tão útil missão o tempo necessário.


Bastaria uma auditoria fiscal permanente e exaustiva, vinda de Lisboa, sobre as empresas de algumas famílias da região, seleccionadas, descobrindo tudo e punindo pelo máximo. Passado pouco tempo as tais famílias perceberiam. Passado um pouco mais Jardim sairia pelo próprio pé. Aquele tipo de regimes funciona assim.


Outra hipótese, que reconheço viola o respeito que os políticos devem à integridade do território nacional, seria ameaçar com a concessão da independência, deixando-a tornar-se uma república das bananas de corpo inteiro. Imagino o pânico na ilha perante a perspectiva de terem que se desenrascar sozinhos. Da maneira como se endividam em menos de nada tornar-se-iam uma Guiné flutuante.


Compreendo, obviamente, a especificidade dos Açores e da Madeira no todo português. Mas não entendo como é que a Madeira, que são só duas ilhas e não nove, tendo por isso menos repetição de infra-estruturas, acumula cinco vezes mais dívida que os Açores. A estes níveis, já não podemos falar de custos de periferia. Com perdão da má palavra, isto é chulice pura e dura.


E a propósito de palavrões, nesta sexta-feira Jardim conseguiu ch… obter mais umas centenas de milhões, em pleno quadro de uma crise de credibilidade de Portugal nos mercados financeiros que vamos pagar com língua de palmo. Fazendo valer o peso dos militantes do PSD Madeira numa altura em que as eleições para um novo líder estão aí à porta, vergou a seu bel-prazer o PSD, arrastando ainda o PCP, o Bloco e o PP, todos numa de quanto pior, melhor, para a aprovação de uma lei de finanças regionais que já seria indecente em tempos normais, quanto mais agora.


Ficámos pelo menos a saber quanto vale este PSD. Achei particularmente indecoroso o Aguiar Branco, com o penteadinho marialva e o seu ar mais verdadeiro, a garantir aos portugueses que a baratíssima aprovação desta lei não influenciaria o “rating” internacional do Estado português, exactamente na mesma altura em que em toda a “Internet”, da Reuters ao Financial Times, os analistas anunciavam que a capacidade do governo em travar a lei seria um sinal da seriedade com que Portugal iria enfrentar a questão do défice.


Escreveu Camões, sobre o nosso D. Fernando, que um fraco rei faz fraca a forte gente. Com a oposição que temos, passa-se o efeito inverso. Ao lado das Leites e dos Pachecos, até o Luís Filipe Menezes, dos poucos do PSD a quem ouvi dizer que esta aprovação era um disparate, parece um estadista. Até o Teixeira dos Santos bota figura de mago das finanças. Pasme-se: até o Sócrates soa a salvador da pátria!