quinta-feira, dezembro 31, 2009

Mais do mesmo em fim de ano

Ontem, a popularíssima república chinesa executou por injecção letal um inglês com problemas mentais, Akmal Shaik, que servira de correio de heroína a proveito de traficantes da província de Xinjiang, possivelmente sem o perceber. Foi um de milhares a ser executados durante o ano no Império do Meio, aquele no mundo que mais condena à morte. Apenas causou um pouco mais de efervescência por ser um europeu: segundo a imprensa, o primeiro-ministro britânico criticou a ocorrência em “termos fortes”, ao lamentar que os pedidos persistentes de clemência não tenham sido satisfeitos.


A força destes termos nem deve ter chegado para perturbar a hora do chá da nomenclatura chinesa. Afinal, um demente longínquo cabe na cova do dente ao partido que tem no currículo o Grande Salto em Frente, a maior fomeca jamais fomentada pelo homem, que no final dos anos cinquenta matou inadvertidamente uns muito largos milhões ou a Revolução Cultural dos anos sessenta, com o seu cortejo de tropelias a afectar outra vez uma data de milhões, centenas de milhar dos quais no seu próprio direito à vida. Isto só para citar dois dos disparates mais evidentes.


À estonteante força verbal britânica, as autoridades chinesas reagiram nestes termos pacatos: “Ninguém tem o direito de dizer mal da soberania judicial da China. Expressamos o nosso forte desagrado e determinada oposição às injustificadas acusações britânicas. E instamos o Reino Unido a corrigir os seus erros e a evitar prejudicar as relações bilaterais.” Por outras palavras: “se queres continuar a fazer negócio, deixa-te de tretas.” Claro que se vão deixar.


A persistência da pena de morte neste malfadado planeta mostra como nos encontramos, globalmente, ainda tão longe de ser civilizados. A pena de morte é a barbárie com papel passado. Não há razão ética que justifique que homens terminem a vida de outros tendo como alternativa não fazê-lo. E qualquer uma das razões práticas que frequentemente se invocam em sua defesa não passa de um mito. Não existe qualquer correlação positiva entre a aplicação da pena de morte e a redução de criminalidade. O número de erros judiciais que se descobrem “a posteriori” da execução diria só por si o suficiente. Ineficaz e iníqua, a pena de morte serve apenas para ajudar ditadores a resolver os seus problemas ou para acalmar as ânsias por um mundo sem riscos de mentes pequeno-burguesas que seriam incapazes de serem elas a fazer o trabalho sujo.


Dizia Camus, a pensar nos valentes de peito feito que clamam por rigor extremo contra a bandidagem, que só não desprezaria um defensor da pena de morte se este fosse o próprio a apertar o gatilho.


Não serve como consolo o facto de os países que mais levam a cabo execuções corresponderem normalmente a sociedades de menor calibre civilizacional, como a China, o Irão, os Estados Unidos, a Arábia Saudita ou o Paquistão. Todos os outros, que não praticam, fecham rapidamente os olhos assim que há algum dinheiro em cima da mesa ou por baixo dela.


Mas, surpreendentemente, pode haver pior. Tal como há infinitos com mais números que outros, também há horrores mais deprimentes que outros. Na Arábia Saudita, neste 2009 que agora expira, uma mulher de 75 anos, Khamisa Mohammed Sawadi, foi condenada a quarenta chicotadas, quatro meses de prisão e deportação para a Síria, de onde é originária. O seu crime: ter sido apanhada pela Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, a polícia religiosa saudita, no mesmo espaço físico de dois homens que lhe tinham vindo trazer pão, uma vez que a senhora é doente e pobre.


Acontece que, na Arábia Saudita “wahabita”, a simples presença simultânea de homens e mulheres que não sejam parentes no mesmo espaço físico configura potencialmente um crime religioso. Que isto assim seja indicia uma deformação psicológica e uma tara sexual, graves, numa parte significativa da população saudita. Digamo-lo sem medo das palavras: esses tipos são atrasados mentais. E só assim se compreende que condenem a chicotadas igualmente os homens que, ao trazer pão à senhora, evidenciaram apenas uma das mais nobres características humanas: a solidariedade.


Não existem muitas diferenças entre quem promove esta Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício que chicoteia velhotas e os nazis que organizaram a “Solução Final” que asfixiava velhotas e crianças em campos de extermínio. Apenas uma: a Arábia Saudita produz e regula o preço do petróleo de que o Ocidente necessita. O que explica muitos silêncios. Ficamos a pensar que se a Alemanha, em 1939, possuísse o monopólio de alguma matéria-prima fundamental talvez tivesse podido invadir a Polónia com maior tranquilidade, sem provocar aquele banzé todo.


Nesta quadra em que jornais e revistas elegem o facto mais relevante ocorrido no ano, a condenação a quarenta chicotadas de Khamisa Mohammed Sawadi poderia muito bem ser candidata ao título. Mas não teria o meu voto: eu elegeria, pelo que tem de revelador sobre quem nós somos na realidade, a discrição comprometida com que o resto do mundo aceita que se torture uma velhinha a troco de barris de petróleo.


Apesar destas desgraças, Mataspeak deseja a cada um dos seus leitores um Feliz Ano Novo.


segunda-feira, dezembro 28, 2009

Missa da aurora

25 de Dezembro, oito e meia da manhã. Lisboa dorme a sono solto, digerindo com esforço os excessos da quadra, o chão da casa pejado de papel rasgado e fitas coloridas. Em frente à igreja de Benfica, a calçada generosa lembra o recato de uma praça de aldeia: com o silêncio deserto que a passagem de uma silhueta atabafada meramente sublinha e o tapete negro da estrada esperando a viatura ocasional que se ouve ainda distante. As lojas, engalanadas, repousam do frenesim dos dias anteriores em que facturaram meio ano à conta do sentimento de obrigação de retribuir. Algumas, ainda iluminadas, pintam de um tom amarelado a cacimba ténue que como um mistério aconchega a cidade enregelada.


Entro, passado tanto tempo, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, onde há quase quatro décadas recebi primeira comunhão pelas mãos da figura severa do padre Proença, hoje perenizado num busto de bronze como um Han Solo de adro. No centro paroquial adjacente fui bom aluno de catequese, ministrada por moças de cabelo apanhado por um gancho e pesados óculos de massa, de trás dos quais contavam com voz doce histórias dos evangelhos que não me fizeram mal nenhum, antes pelo contrário, acho eu. Um dia anunciei em casa que já não valia a pena ir por não acreditar naquelas coisas, para certo desconforto de minha mãe. De repente, Deus ficou sem espaço na minha vida, substituído por fés mais prometedoras (aos doze anos pareciam) como a ciência ou a humanidade, e partiu sereno. Também, não Lhe devo fazer grande falta.



Lá dentro, sou surpreendido pelo burburinho sumido de uma casa cheia, sentada ordeira nos bancos corridos, numa presença humana que contrasta com o vazio da rua e a mudez vertical do templo, um grosso caixote oitocentista, de um barroco modesto, a que o tempo conferiu mais vigor do que beleza. São sobretudo mulheres idosas, envoltas em pesados casacos escuros e cachecóis tricotados, que esperam pacientemente o início das palavras mágicas que, para muitas, encherão algum do vazio criado pelas saudades dos que foram e pela ausência dos que ainda cá estão. A cada minuto, bate a porta de entrada e entra mais uma, que busca um lugar como que guardado para ela, arrastando atrás de si um bichanar de cumprimentos murmurados.


Encosto-me a um pilar de lado e permaneço de pé. Assim faço sempre numa igreja. Não me sento, não me ajoelho, não me benzo: mantenho-me quietinho, o que atrai alguns olhares entre o curioso e o desconfiado. Não poderia ser de outra maneira: aquilo que para outros simboliza o divino, como um sinal da cruz, feito por mim que não creio seria um mero macaquear e uma suma falta de respeito. Ali me quedo em silêncio.


Começa a eucaristia, passo a passo, iguais a cada dia e a cada século, como uma procissão centenária que percorre sempre as mesmas capelas e as mesmas esperanças. A dado momento, o padre cita alguns nomes a que a celebração especialmente se dedica. Um deles o do meu pai, razão da minha presença ali, inicialmente mal referido pelo cura: “Mota”. O velho Mata ter-lhe-á lançado lá de cima algum aperto fulminante porque logo emenda, ajustando os óculos: “Perdão, Mata. Américo Mata”.


Durante o sermão, dedicado ao sentido da celebração natalícia, o padre, recorrendo a uma linguagem jornalística, comenta que o Natal pode estar em alta, mas Jesus está em baixa. E alerta para que não se faça confusão entre a simplicidade, que o Natal deveria inspirar, e a simploriedade que a nossa sociedade transpira e que neste final de Dezembro parece que se amplifica. Por momentos identifico-me com aquele homem de paramentos do qual tudo me separa mas que me traz numa bandeja a palavra que me faltava para perceber as correrias aos centros comerciais e os ramos de azevinho digitais no canto dos ecrãs televisivos: simploriedade.


A missa termina, as portas abrem-se, a luz matinal ofusca, atraindo a romaria bamboleante dos fiéis que, de pé, se vai lentamente libertando dos bancos corridos. Descubro a minha mãe no meio da multidão, surpresa de me ver ali, deixo-a em casa e regresso à minha, onde tudo dorme ainda, onde restos de papel acetinado ainda juncam o soalho e o cheiro dos doces se evapora pela porta da sala.

terça-feira, dezembro 01, 2009

Abdulix entre os helvéticos

« -Alors, Obélix, l’Helvétie c’est comment?

- Plat. »


Goscinny e Uderzo, in « Astérix chez les Helvètes »


Anteontem, a Confederação Helvética decidiu em referendo proibir novos minaretes no seu território. Dos vinte e seis cantões, que são a modos como umas freguesias lá deles entaladas entre penedos e comunicando umas com as outras por túneis onde circulam comboios da Marklin em ponto grande, vinte e dois votaram contra as fusiformes construções.


Quando li a nova no jornal ainda fui traído pela minha crescente falta de vista: admiti, por momentos, que a conhecida paranóia suíça pela limpeza os tivesse levado a interditar certas badalhoquices indignas de tão asseado território. Mas esfregados os olhos e focada a notícia, verifiquei que treslera: era de minaretes que se tratava. Mais grave, portanto.


A ideia partiu de dois partidos tidos como ultra-conservadores, a UDC e a UDF, como não podia deixar de ser tendo ambos a palavra “democrático” no nome, que viam nas torres das mesquitas obstáculos à “manutenção da paz entre os membros das diversas comunidades religiosas”. Não sei bem porque é que a visão dos minaretes haveria de fazer perigar a paz religiosa. Possivelmente, a UDF e a UDC acharão que os católicos e os protestantes suíços são uma horda de selvagens que, irritados com a imagem de um minarete recortada contra os níveos picos alpinos, pegarão em catanas e caçadeiras e sairão pelas ruas de Zug ou Appenzell, decepando mulheres de “chador” ou fuzilando crianças com ar moreno. Eles lá saberão a malta que lá têm.


Tudo isto não augura nada de bom. A facilidade com que se vota na Europa em partidos inapresentáveis e em propostas que só à bofetada preocupa-me seriamente. Significa duas coisas: que estamos a perder a batalha contra a intolerância, atirando os balázios sistematicamente para os nossos próprios pezinhos; e que já nos esquecemos do perigo de brincar com o fogo. De facto, passaram setenta anos.


Poderíamos aliviar as nossas consciências considerando que o suíço é um ser tendencialmente esquisito, entalado no dicionário entre o suicida e o suídeo, na linguística entre o alemão e o francês e na geografia entre todo o tipo de montículos que lhe limitam os horizontes. Que durante séculos aquela terra pedragulhosa só produzia mercenários às riscas e buracos no queijo. Que em 1990 ainda havia um semi-cantão em que as mulheres não podiam votar. Que o suíço tem fama e proveito de tudo regrar e de entrar em parafuso quando as regras se desregram, rodopiando sobre si próprio à procura de uma lei que o sossegue.


Poderíamos, mas não podemos. O parágrafo anterior é meramente anedótico. Na verdade, a confederação tem origem numa das mais antigas associações políticas de homens livres, tão velhinha quanto 1291, a sua divisa diz “um por todos e todos por um” e a democracia directa e o reconhecimento da iniciativa, da contribuição e do valor de cada indivíduo são factos historicamente estruturais da especificidade helvética. A Suíça soube manter-se independente entre vizinhos poderosos e tornar-se um sociedade afluente e educada, com cidades cosmopolitas como Genebra ou Zurique que atraem sedes de organizações internacionais, capitais miscelâneos e bons concertos de “rock”.


Assim sendo, este voto não traduz nem tradição ditatorial, nem ignorância, nem fome, nem nenhum outro estado precário que justifique desvarios. Traduz sobretudo medo e ódio, e um ódio consciente de quão vergonhoso: nas sondagens, tendo do outro lado do telefone uma pessoa, os suíços afirmaram ir votar contra a proibição. No escurinho da cabine de voto, sem ninguém para topar, votaram maciçamente nesse disparate cujo único efeito prático será humilhar a comunidade muçulmana local.


Esse ódio vai fazendo o seu caminho, sufragado aqui e ali pelo voto de muitos europeus que se acham mais clarinhos e civilizados: em Itália, na Áustria, na Holanda, em França, na Polónia, os populismos ignorantes vão crescendo como bolores nas fendas abertas pelos regimes democráticos.


Certamente, o fundamentalismo islâmico é hoje um inimigo das democracias. Queira-se ou não, há um choque ideológico em curso. O que não quer dizer que tenhamos que colocar todos os muçulmanos no mesmo saco. Ter uns milhares de inimigos será chato. Mas ter uns milhões é estúpido. E a melhor maneira de tornar muitos dos muçulmanos que vivem connosco numa vanguarda dos fundamentalistas é humilhá-los gratuitamente, empurrando-os para o lado de lá. Como os suíços, essa cambada de “Einsteins”, acabou de fazer.


Surpreende-me ainda o relativo pouco barulho que o assunto causou na imprensa europeia. Quando os “talibans” no Afeganistão arrebentaram com estátuas de Buda, caíram, para além dos budas, o Carmo e a Trindade, que pior barbárie não havia. E com magotes de razão: os “talibans” representam uma versão caricatural e perigosa do que mais básico a imbecilidade humana é capaz. Ora os suíços acabaram de mandar abaixo com minaretes que ainda não foram construídos. Parca diferença e vitória de Pirro. Por cada voto de um suíço rosadinho contra a altura dos minaretes haverá um “taliban” a cofiar a barba, satisfeito por verificar que a sua intolerância é contagiosa.


No fim do dia, o Ocidente tem que meter este conceito na cabeça: ou ganha usando os seus valores fundamentais como armas ou perde. E os fundamentais deverão ser a tolerância e a liberdade, não a proibição e o sectarismo.


Escreveu o barão de Montesquieu, em 1748, no “Do espírito das leis”, o seguinte: “Quando as leis de um Estado crêem dever sofrer várias religiões, é preciso que elas as obriguem a se tolerar entre elas. É um princípio que toda a religião que é reprimida torna-se ela própria repressora: porque assim que, por qualquer acaso, puder sair da sua opressão, atacará a religião que a reprimiu, não enquanto religião, mas enquanto tirania.”


Na Suíça como na Europa, infelizmente, vai sobrando em leis aquilo que falta em espírito.