sexta-feira, setembro 25, 2009

Bora sondar!

Os leitores mais distraídos ainda não terão reparado que está aberta no Mataspeak uma sondagem sobre a orientação de voto dos “matareaders” para as próximas eleições.


Até agora votaram seis leitores, com os seguintes resultados: três votos no Sócrates, dois que estão a pensar ir à praia nesse dia, faça chuva ou sol, e um apoiante de um dos pequenos partidos extra-parlamentares.


Se esta sondagem correspondesse à realidade, com 33% de abstenção, o PS obteria 75% dos votos expressos e ao exceder os dois terços poderia mudar a seu bel-prazer a constituição da nação.


O que eu não faria com esse poder nas mãos! O Benfica ia logo para a segunda distrital da Associação de Futebol de Lisboa, que é onde devem estar os clubes de bairro. Nomeava o Alberto João palhaço pobre, para variar. Proibia as senhoras que moram para lá da estação de Algés de usar o vocábulo “você”, sob pena de trabalho comunitário na Pedreira dos Húngaros. A licenciatura em filosofia passaria a ser indispensável à obtenção do alvará de taxista. Pelo menos metade da actual quota de um terço de mulheres em posições elegíveis nas listas para a assembleia da república tinha que ser… euh… jeitosa – perguntem como se faz ao Berlusconi; do tipo Ana Drago não chega. Quem ousasse sequer propor outro aldeamento com golfe a menos de novecentos quilómetros da costa portuguesa seria condenado a passar quinze dias na jaula dos gorilas do zoológico, vestido com um saiote cor-de-rosa e decorado com uma peruca com tranças loiras no cimo do coco. O Medina Carreira ver-se-ia intimado a ter um pensamento positivo, sobre assunto à sua escolha. Aquele João Pedro Pais que canta com “voz” de quem está a tentar resolver a maior das prisões-de-ventre calava para sempre o bico, para sossego de todos. A Patrocínio passava a tirar o caroço à própria fruta, dito sem maldade. Nomeava a Manuela Moura Guedes chefe de redacção do Portugal Socialista. E desculpem a “private joke”, quando saíssem ao meu amigo pêbê mais de dois trunfos, as cartas voltariam a ser dadas.


O PS não tem revelado muita imaginação e por isso talvez se atesse a coisas mais miúdas, como uma revolução bolivariana, à imagem do camarada Hugo, com distribuições de Magalhães nas escolas, partidarização do aparelho de Estado, ataques à classe média e outras coisas que sabemos distantes deste cantinho à beira-mar plantado.


Felizmente para todos, a “matassondagem” deve ser um disparate quase tão grande como as outras, até porque com uma amostra de seis unidades a margem de erro andará nos oitenta por cento para o habitual intervalo de confiança de noventa e cinco por cento, assim contas de cabeça.


Preciso pois que o leitor colabore na melhoria da significância destes resultados. Pode votar aí à direita, ou posto de forma mais politicamente neutra, do lado do ecrã que fica do mesmo lado que o Japão no mapa-mundo. Quando vir o mais belo emblema do mundo, desce um bocadinho mais e é aí. Só escolher e clicar: vote!


Com esse simples gesto, pode inclusive ajudar no meu processo de decisão: é que a três dias do dia dê, ainda não sei em que quadrado vou pôr a minha cruz. Sei, por outro lado, em quem não vou votar.



No Portas feirante não pode ser de todo. Por um lado, porque o populismo fácil e as carinhas de suficiência sorridente provocam-me refluxo gástrico. Por outro, porque se fizesse uma coisa dessas o meu velho pai haveria de voltar do além para me chagar a cabeça, com toda a razão. No reino animal, o meu pai só tinha horror a cobras e ao Paulo Portas, não fazendo grandes distinções entre as duas categorias. Certa vez, bateu-lhe à porta uma menina de uma empresa de sondagens e ele prestou-se a responder. Uma das questões prendia-se com a imagem dos políticos. Chegado a Paulo Portas, a moça, de esferográfica em punho, inquiriu:


- Bom, médio ou mau?

- Não tem péssimo? – perguntou ele.

- Não – respondeu ela, surpreendida.

- Então ponha mau – suspirou, resignado.


No Bloco de Esquerda também não dá. As questões fracturantes impressionam pouco e fracturam menos. Por mim, o que um, dois ou meia dúzia de adultos acham por bem fazer livremente no recato de quatro paredes é lá com eles: que lhes faça bom proveito. E nesse aspecto, a sociedade portuguesa moderna é razoavelmente tolerante e evoluiu extraordinariamente em trinta anos, surpreendentemente sem precisar da ajuda do Dr. Louçã. O máximo que poderá ocorrer em Portugal será alguns idiotas soltarem umas bocas. Existem muitos outros sítios, da Rússia ao Sudão, da Arábia aos Estados Unidos, da Guatemala à Nigéria, em que a diferença é corrida à pedrada, perseguida nos empregos e nos tribunais, marcada com chibatadas, etc.


E o referido Louçã soa muito a seminarista para o meu paladar. Ainda gostava de o ver com uma dúvida, só para ficar mais sossegado. Estou sempre à espera de ver aquele peito abrir-se e sair de lá um extraterrestre de superior bitola, peganhento e de olho de mosca, anunciando o domínio dos terráqueos pelos zorgons ou coisa que o valha.


O Bloco foi giro quando era pequenino e fofinho como o são os pintainhos. Agora cresceu, cantou de galo e acordou-nos para a realidade do que se propõe se acaso chegasse ao poder.


O terceiro que não vai certamente ter a minha cruzinha é um tal MMS, “Movimento Mérito e Sociedade”. Fui surpreendido no IC 19 por um cartaz destes senhores apelando à castração química. Ora a última vez que a castração teve honras de questão nacional foi em 1985, durante a exibição da novela portuguesa “Chuva na areia”, quando a personagem Caniço, interpretada pelo actor Nuno Melo, decidiu cortar a gaita em sinal de arrependimento – um pouco extremo, convenhamos – por um mau passo sentimental. Um gesto que à época comocionou a nação, melhor dizendo, metade da nação.


Um quarto de século depois, o assunto mais importante que estes MarMeloS trazem a terreiro é a capadela de pedófilos e violadores. Não há traseiro para tanta latitude política, embora haja um aspecto que não deixa de ser inovador. Existem partidos rurais, na Escandinávia e na Polónia; partidos islâmicos, no mundo muçulmano; partidos étnicos em vários sítios do mundo; partidos católicos ou cristãos; partidos nacionalistas; partidos hebraicos; partidos operários e até um partido dos utilizadores da Internet, na Suécia. Mas só em Portugal é que há um partido de e para betos parvos, que cuida dos seus pequenos fantasmas de burgo, e esse partido é o MMS, se olharem com cuidado.


À frente desta aberração cromática feita movimento político, encontramos um professor universitário, o que acaba por ser uma bonita homenagem ao ecletismo e à pluralidade da Academia, que até imbecis destes consegue abarcar.



Fora estes três, todos os outros estão na corrida, até a Carmelinda Pereira. Domingo decidirei.

domingo, setembro 20, 2009

O baile da tripeça


Acho que este texto não vai adicionar nadinha à minha popularidade, especialmente entre senhoras do sexo feminino de um certo escalão etário, que me guardo de revelar.


A ocorrência em causa foi um evento dançante promovido no “site” cujo “link” flutua aí à direita do texto, dedicado a antigos alunos do meu liceu, cônjuges em enésima núpcia com ene entre zero e ene, e outros acompanhantes e amigos.


O dito “site” congrega mais de três mil ex-estudantes, entre os dezassete e os setenta e sete anos de idade, que a escola já tem uns anitos. O facto notável esteve em que, apesar de a festa ser aberta a todo esse universo, os que apareceram também já tinham uns anitos. Regra geral, com o numeral das dezenas acabado em “enta”.


Nada que a organização não pressentisse, porque instruiu os dijéis para pôr música dos anos oitenta – Olha! Outro “enta”! E tenho a impressão que lá representado por uma ou duas convivas…


E eu que, embora não pareça por – dizem – estar bem conservado, já arrasto também um “enta” como uma canga ao pescoço, lá me dirigi ao Bar do Rio, ao Cais do Sodré, um espaço simpático entalado entre a velha estação e o marulhar do Tejo. À entrada, o porteiro, com o fato preto e o cabedal que caracterizam a classe, explicou-me que o bar estava aberto até às duas da madrugada e que a partir dessa hora deveria utilizar um cartão com dez casas para preencher e pagar à saída. Duplamente optimista, o rapaz. Tendo em conta o tal “enta”, às duas estava eu a contar ir fazer ó-ó e se algum dia bebesse sequer metade do cartão seria levado para casa numa furgoneta amarela com sirenes azuis.


De cartão em punho, penetrei o antro para constatar uma casa bem composta, mas longe das expectativas iniciais. No “site”, só antigos alunos de inscrição confirmada eram muito mais de cem, o que, com os previsíveis acompanhantes, levariam a assistência certamente acima dos duzentos. Na realidade, andaríamos nas oitenta pessoas. Mas ameaçar grandes números que depois não se cumprem na íntegra é outra característica dos “entas”, que as senhoras do sexo feminino de um certo escalão etário, que me guardo de revelar, por amarga experiência decerto saberão.


No entanto, há males que vêm por bem. O número de presentes era o ideal para o espaço e para as características do ar condicionado, permitindo respirar e circular à vontade. Circulei pois, e a outra coisa que logo verifiquei foi a tal predominância de zero vírgula cinco – ou mais – idade: quarentas, cinquentas, sessentas, seten… (acho que me estou a esticar). Via-se uma ou outra de vinte, mas fiquei com a impressão que vinham na condição de filhas, senão mesmo de enfermeiras.


A indumentária dos “entas” revelava duas estratégias diferentes. Eles, quase sem excepção, trajavam calça de ganga e camisa aberta no peito, muitas vezes com a fralda de fora, mocassins, ténis, ou sapatos de vela, para dar um ar casual de garoto, maldosamente contrariado pelas cãs e pelos volumes abdominais. Assim andava eu também, embora, como referi já, um pouco melhor conservado. Elas, mais realistas, aperaltaram-se em maioria como quem vai uma festa (e por acaso até era), com “toilettes” todas refinadas e esforços titânicos para encaixar aquilo tudo, naquela táctica de “entas, mas com muito ainda para dar ao futebol”. Nalguns casos, com certo sucesso.


Houve prodígios de engenharia. Uma amiga “enta”, cujo nome começado por cê não vou divulgar, conseguiu com “wonderbra”, botas pretas com um metro de cano, vigas de madeira, troços de armadura e uma saia que metade era o elástico da cintura, desencantar nela uma boazuda com umas trancas que eu, que já a vi na praia, não suspeitava que existissem.


O escurinho da pista de dança também ajudou um bocado a disfarçar as marcas do tempo. De noite, todos os gatos são pardos. O pior são aquelas luzes estroboscópicas que, potentíssimas, alumiavam as dançantes com uma clareza crua e reveladora, mesmo que durante décimas de segundo. Nesses momentos, a rapaziada, já naquela idade em que o músculo cardíaco tem que ser tratado com carinho, corria o risco de uma síncope quando o “flash” do estroboscópio expunha de surpresa a verdadeira identidade daquela silhueta de menina que dançava ao nosso lado. Um efeito parecido com o saudoso comboio-fantasma da Feira Popular, cujo trajecto se fazia no mais completo negrume e de onde de repente, encostadinhas ao vagão, apareciam umas carantonhas iluminadas que arrancavam gritos de terror à pequenada.


Os “disc-jockeys” não tiveram uma noite feliz. Como dizia um amigo meu, não deve ser fácil a um tipo que nasceu no fim dos anos oitenta pôr música dos anos oitenta. Não me imagino eu, por exemplo – e apesar de estar bem conservado, como não sei se já disse – a pôr música dos anos cinquenta e sessenta. Ia buscar para aí o António Machin ou o Domenico Modugno: volareeeee… Por isso, os dois rapazinhos encarregues do som, postos diante de uma clientela um pouco diferente da habitual, davam uma no cravo e outra na ferradura, com passagens incríveis, de “new wave” para “disco” e vice-versa, saltando do ambiente “cyberpunk” do Billy Idol para o realejo do “Eileen”, das histórias da treta electrónicas dos Human League ao abanar de cabeça ceguinho do Stevie Wonder, num serpentear descontrolado que parecia o de um bêbado à noite na auto-estrada, varrendo as três faixas.


Mas, com brancas ou sem elas, com mais rugas ou menos, melhor arreado ou com ar de balda, o pessoal estava ali para se divertir e acabou por gozar uma noite bem passada, com alegres reencontros (“Há tanto tempo!”) e grandes mentiradas (“Estás na mesma!”).


Esta última só verdade quando dirigida a mim, que estou bem conservado.

sábado, setembro 19, 2009

A liberdade do criador

Aviso: se não viram “Sacanas sem lei/Inglourious basterds” de Quentin Tarantino e se querem ver, não leiam este “post”. Guardem no congelador para mais tarde. É para não saberem o fim do filme.


Como poderão adivinhar se já leram o aviso – e se não leram vão ler – assisti no domingo transacto ao “Inglourious basterds”. Gostei. Valeu o sacrifício de ter que aturar os vinte minutos de anúncios, a projecção daquele vídeo irritante com as recomendações da Lusomundo (deitem os papéis no caixote, lavem as mãos antes de ir para a mesa e outros paternalismos), o desconforto das “soi disant” poltronas e, sobretudo, as manadas de ruminantes que me cercavam com baldes gigantes transbordantes de pipoca, mandibulando como se não houvesse amanhã.

Abrindo um (

Para quando uma sala de cinema para não-pipocadores? Quando poderemos outra vez assistir a um filme num espaço que não se pareça com uma manjedoura, as narinas assaltadas por um cheiro feirante a óleo de enésima fervura, os ouvidos massacrados pelo mastigar simultâneo de centenas de grãos de milho?

E em abono da justiça, se a Lei persegue os fumadores, porque não os pipocadores? A pipoca tem sal e gordura, provoca hipertensão e colesterol e vicia mais que o tabaco. As crianças iniciam-se na pipoca cada vez mais cedo. Deviam colocar nos baldes de pipocas avisos tarjados de preto a prevenir: “a ingestão de pipoca em excesso pode provocar a queda de órgãos que façam falta” ou então “comer esta trampa faz um mal danado à saúde”.

Fechando o )


Falava eu da fita. Ocorre durante a Segunda Guerra e a partir do meio do enredo montam-se não um mas dois “complots” para assassinar, num sessão de cinema em Paris, Hitler, Goering, Goebbels e Bormann, todos de uma só vez. À medida que o filme vai evoluindo, começa-se a verificar que a coisa até pode funcionar. Passei por isso os últimos trinta minutos a interrogar-me como é que o Tarantino ia manobrar para tirar os quatro chefes nazis daquele entalanço, uma vez que obviamente não podiam quinar ali, sabendo-se como se sabe que Goering se suicidou na prisão em 1946 e os outros morreram na queda de Berlim, um ano antes.

Chegados ao fim, Tarantino foi genial e eu fui idiota: o golpe funcionou e Hitler, Goering, Goebbels e Bormann bateram a bota ali, em 1944. Muito simplesmente.

De regresso a casa, dois pensamentos volteavam dentro da minha cabeça. Primeiro, que uma função da arte é dar-nos lições de liberdade. Segundo, que nós, quando queremos, somos muito limitados, para não dizer grandes totós.

Sobre o primeiro: o mundo físico tem regras e fronteiras; a imaginação do criador não. Não há mais razão para que um filme copie a verdade histórica do que para que um pintor se cinja a fazer cópias fotográficas de uma paisagem ou para que um escritor se limite a meras reportagens. Não há mulheres com gavetas no corpo e Dali pintou-as. Nem fadas e Oberon e Titania sempre passaram uma noite de enganos e desenganos a meio do verão – ou terá só sido um sonho? – e regressaram durante a primeira guerra mundial para ajudar Corto Maltese (personagem quase real) a combater os alemães. Para aquele que cria, a regra sobre regras diz que as regras existem para serem criteriosamente quebradas. A arte ensina-nos uma lição simples que podemos aplicar com vantagem nas nossas vidas: onde virmos uma barreira, não fiquemos do lado de cá; perguntemo-nos como podemos e quando devemos passar para o outro lado.

Sobre o segundo: agarramo-nos excessivamente às certezas, que nos confortam, e por isso somos levados ao engano. Quando entrou no mundo de Tarantino, Hitler deixou de morrer no “bunker” e ficou à disposição para se finar onde Tarantino bem quisesse. O artista, o criador, não precisa de perguntar se há mundos paralelos. Se precisar deles, fá-los.

Na vida diária, nós, ao invés, tendemos a ser assim parvos. Preferimos a esterilidade da certeza ao húmus da dúvida. Alapamo-nos a referências como se fossem bíblias. Catalogamo-nos a nós e aos outros consoante critérios que, de tão apertados, não têm espaço para lá caber ninguém. Procuramos pouco o que é diverso. Vemos e queremos ver inimigos onde há apenas diferenças. E quando o artista, no uso da sua liberdade, arrebenta com Hitler um ano antes do devido, ficamos admirados, olhando para o ecrã com cara de mono. Conto voltar em breve a algumas destas nossas fragilidades, que merecem ser esmiuçadas.

domingo, setembro 13, 2009

O beto em férias (exercício de antropologia barata)


A tragédia mental do Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano.


Fernando Pessoa, in “O caso mental português”



Às vezes aparecem-me à frente na rua coisas tão surpreendentes que me fico a perguntar se o edulcorante que pus no café não seria um comprimido de LSD transviado.


Nestas férias, a banhos na costa do Vicente, deparei-me por duas vezes com famílias de ar veraneante a arrastar atrás uma criada de servir com farda preta, avental e gola branca, uma delas com touca e tudo. Após imagem tão jurássica, juro que se tivesse avistado um estegossauro a pastar a erva rala da valeta não ficaria mais admirado. Para enquadrar o leitor no irracional da situação, falta dizer que ferviam para cima de trinta graus à sombra e que mesmo uma “tee-shirt” de algodão sobre o pelo seria àquela hora suficiente para esbrasear qualquer vertebrado de sangue quente.


As coitadas das moças pareciam por isso afogueadas, seguindo com ar contrito as proprietárias famílias, estas frescas que nem alfaces nos seus preparos de verão. E pensei: que raio passará por dentro da corneta desta gente, para além de correntes de ar, que obrigam as desgraçadas a esta figura no pino do verão – e mesmo que fosse no Inverno! Julgava eu que estas manias se tinham extinto nos anos setenta do século passado. Depois olhei melhor e percebi: Ah! São betos e logo dos parvos.


O beto vem proliferando francamente, como uma pestilência, como a processionária do pinheiro ou o vidrinho à Cristiano Ronaldo na orelha da mitragem.


O beto define-se por parâmetros sócio-demográficos, como uma certa capacidade financeira ou o facto de se ter licenciado na Católica, mas mais por valores e atitudes. Uma segura necessidade de ostentação, a adesão a um código de aparências, a pretensão de gozar de uma visão prática da vida que voga acima da política ou da cultura, alguma falta desta última, um cheirinho de marialvismo, com o seu contraste entre um conservadorismo de fachada e a mania que são vivaços, uma proximidade a uma direita mais salazarenta que moderna, uma religiosidade de cerimónia, tudo isto, em proporções variáveis, compõe o beto. Quanto algum destes parâmetros passa das marcas, o beto torna-se parvo.


O beto, parvo ou não, já perturba um bom bocado em meio urbano ou laboral. Em férias tem um efeito devastador, podendo estragar a semana ao imprecatado que caia no meio. Ataca aos magotes, podendo infestar hectares inteiros de praia e campo só pelo mero contacto visual. Perguntará o já assustado leitor: como identificar, de modo a pôr umas milhas prudentes entre a praga e as nossas pessoas?


Analisemos os sinais exteriores.


Na praia vêem-se em bandos que incluem vários núcleos familiares cada qual com pai, mãe, filhos, sobrinhos a cargo, uma ou outra avó desgarrada, eventuais empregadas. Rapidamente a concentração atinge a centena e os trezentos metros quadrados, não incluindo aqui distância de sanidade. Trazem cães que podem ser mirrados do tipo cuidado não pise ou mastins do tipo cuidado não chegue, não sendo frequentes tamanhos intermédios. Os canídeos recebem ordem de soltura ao chegar ao areal e frequentam amiúde as toalhas alheias sob o sorriso despreocupado dos donos que preferem nitidamente que eles vão sujar para longe.


À chegada, os betos, em particular se forem parvos, arrumam os SUVs na duna e estabelecem um acampamento que depressa fica semeado de sombrinhas abertas, toalhas e caixas isotérmicas da “camping gaz”, modelo bisonte. Acartam cadeiras de praia que chegam a colocar na fímbria da água, para que os vejamos melhor. São ruidosos, comportamento normal em quem julga estar em casa.


O macho vem de pólo e mocassins sem meias e fica de calções às flores. Traz agarrado o saco do Expresso, ainda com aqueles quilos de suplementos sobre imobiliário ou com o relatório e contas da Dyrup, que as pessoas normais mandam logo para o papelão. Lê a primeira página. Se puder, usa o cabelo grisalho puxado para trás com pinta brilhantinada e uns caracolitos ao fundo do pescoço e na orla das patilhas. Começa a segunda página do jornal. Joga raquetes sem se mexer muito. Dobra o jornal no saco. Ajusta o elástico do calção à barriguinha sobressaliente. Por regra, é mais hirsuto que a média da população, podendo chegar ao síndrome Tony Ramos.


A fêmea usa mais ou menos o mesmo número de pulseiras e traquitanas que as mulheres Maasai em dia de casamento. A cabeleira é farta, em permanente, com cores que não existem na natureza e madeixas de um tom de liga metálica leve. Ostenta biquini ou fato de banho de corte moderado e motivos garridos. Senta a cultivar-se com a Caras e a Lux e a Hola. Pergunta às filhas se se viram umas às outras. Grita nomes ausentes à hora de ir embora.


Macho e fêmea nunca tiram os óculos escuros, alapados à penca como se colados com Araldite. Mais recentemente adoptaram ambos uns chapéus de palha quase branca, de recorte borsalino e fita negra, que lhes dão um ar patusco e permitem ao resto das pessoas identificá-los a uma distância segura.


As crias são muitas por cabeça, porque o beto procria em número. Os rapazes usam o mesmo calção dos pais e vão para o “body board”, desamparando a loja. As raparigas andam em grupinhos, dizem muitos ais e também arrojam com pulseiras Maasai até ao cotovelo, para além de tererés na cabeça. Frequentam escolas com nomes de santos onde aprendem a pensar como os pais. Avisam ameaçadores que andam nos Salesianos enquanto fogem de putos que lhes vão bater.


Munido desta descrição, pode o leitor desviar-se atempadamente, até porque já percebeu que o recato não é o forte deles. Mas, se ainda assim tiver dúvidas sobre se um grupo é ou não de betos, faça uma coisa: olhe-lhes para as caras e dificilmente se enganará.


Porque o beto e a beta, mau grado a sua pluralidade de formas, de tanto andarem uns com os outros acabam sempre por ter cara de beto. Fatal como o destino! Com aquela carinha tão distinta, poderiam ser facilmente reconhecidos até numa praia de nudistas ou em fotos do tipo passe.


Recordo que referi este facto a um amigo num almoço à beira-Tejo, logo após as férias e ele indignou-se: “Mas tu és parvo! Andas a ler muito Zola. Agora o meio influencia o aspecto físico?” Mas é verdade. É um fenómeno estranho, como as girafas do Lamarck que iam tendo pescoços maiores porque os esticavam para chegar às folhas mais altas e depois passavam essas características aos descendentes, coisa que Darwin demonstrou não acontecer nas girafas mas que parece acontecer nos betos: frequentam-se entre si, acabam por arvorar a mesma tromba e legam-na em herança aos betinhos.