terça-feira, junho 30, 2009

Exposição fotográfica (XV)

Ainda Paris em Outubro de 2007


Mãe estátua seguida pelos filhotes, ao longo do Sena (Quai des Tuileries, se bem me lembro)


Concerto de corneta no telhado do Louvre


Design contra design no Grand Palais


Roda na praça da Concorde


Poesia e arte de parede em St. Germain

Os novos cadafalsos

Leio no jornal, com pesar e vergonha do meu país, que todos os anos em Portugal dez mil cirurgias ao cancro se realizam fora dos prazos máximos previstos na lei e consignados na boa prudência médica.

Revela o mesmo artigo que a situação até tem melhorado, o que não deveria servir de consolo a ninguém. Não servirá, certamente, aos 233 que o ano passado contribuíram para o alívio das estatísticas das listas de espera ao decidir morrer inopinadamente.

Esta é daquelas que devia ser resolvida já, custe o que custar. Gaste-se o que se gastar. Cometam-se loucuras, como emitir dívida pública, ou acertem-se decisões, como proibir os gastos sumptuários com tendas gigantes para inaugurações e gabinetes ministeriais de ligação à comunicação social, mas arranje-se o guito. Se o problema for de falta de médicos, metam-se os doentes no avião e que se operem no estrangeiro.

Não temos o direito, enquanto sociedade, de brincar com este assunto. Desculpar-se, seja com estatísticas, seja com suspiros, é a mais cabra das atitudes. Cada uma daquelas pessoas que se vê numa lista de espera de cirurgia oncológica sofre diariamente, lentamente corroída por dentro, os mais estruturalmente humanos dos medos, aqueles que nos fizeram sobreviver a predadores e glaciações, até aqui chegarmos: o receio da dor e o receio da morte. Não podemos, colectivamente, evitar a maleita ou sossegar-lhes a ânsia. Mas podemos – e devemos – mover mundos e fundos para que não falhe qualquer hipótese de reduzir, por infinitesimalmente que seja, a má probabilidade.

Se quisermos habilitarmo-nos minimamente a fazer parte da espécie humana, não nos passe pela ideia tolerar que doentes que poderiam não ser terminais se tornem, vagueando de corredor em corredor e de guiché em guiché, de requisições na mão, pedinchando como um favor ou uma cunha aquilo que é um direito básico: o direito à vida.

Ao falhar um imperativo categórico tão simples, estamos na prática a proferir uma condenação à morte encapotada, em que o capote tem a forma da nossa crueldade e a cor da nossa preguiça.

Portugal foi o primeiro Estado-nação da Europa a abolir a pena de morte para crimes civis, em 1867, naquela que foi uma das nossas melhores horas, com perdão pelo anglicismo. Antes, em 30 de Novembro de 1786, o grão-duque Leopoldo II de Habsburgo promulgou o fim da pena capital na Toscânia e a destruição de todos os equipamentos destinados a execuções. Seguiram-se a efémera República Romana em 1849, a Venezuela em 1863 e São Marino em 1865. E depois nós, mais de um século antes de países com mania, como o Reino Unido ou a França.

Infelizmente, cento e quarenta e dois anos depois, parece que queremos substituir o garrote e a corda pela incúria e a ganância, e o sombrio dos patíbulos pela luz artificial dos corredores do IPO. Por isso, vale a pena lembrar aqui o nome do homem que tomou a iniciativa de acabar com a pena de morte entre nós: Augusto César Barjona de Freitas, ministro da Justiça pelo Partido Regenerador, jurista, deputado e par do Reino. Que a memória do seu exemplo humanista sirva, pelo menos, para envergonhar as cáfilas que vão assistindo com ar herbívoro ao aumentar e diminuir das filas de espera das operações de oncologia, como se fossem a coisa mais natural deste mundo.

quarta-feira, junho 24, 2009

Uma história muito triste

No último exame nacional de Português do 12º ano, rapaziada que corre o risco de roçar já em Outubro o cu da calça e o cós dos “boxers” nos bancos da Faculdade de Letras recebeu em anexo a um texto que tinham que ler (para os que soubessem) um glossário que esclarecia o nebuloso sentido de palavras como “sumiu-se”, “carregadores”, “fardos”, “grilhetas” ou “temor”. O temor com que fico é que estes meninos, manietados pelas grilhetas de um sistema de ensino que não os prepara, tenham que carregar pela vida fora o fardo da sua ignorância, fazendo sumir-se qualquer hipótese de que este país seja algo mais que o “Inatel da Europa”, como dizia o outro…

Não sei se na prova de matemática os futuros engenheiros receberam uma tabuada para os ajudar nesse passo mais difícil que costuma ser o 7x8 ou se, na de história, uma nota de rodapé lhes lembrava que Afonso Henriques constava como primeiro rei cá da paróquia. Suspeito que alguma magnanimidade deste calibre terá havido.

Porque enfim, “fardo”, não brinquemos. Se falássemos de “diglossia”, “pomologia” ou “testilhar”, ainda se compreendia a urgência do ministério em disponibilizar um dicionáriozito, não fosse a malta pensar que “testilhar” significa pôr os “testilhos” a uso. Mas “carregador”? “Ó mai gode”, como terão provavelmente escrito no teste de inglês.

Vamos por mau caminho. Em 1308, D.Dinis teve que enviar os estudantes de Lisboa para Coimbra, por barulhentos. Se vivesse hoje teria que os mandar para onde houvesse bons pastos, por burros. Melhor dizendo, feitos burros, à sua revelia, numa das maiores sabujices organizadas com que alguma vez uma geração, a que tem agora cinquentas e sessentas, terá afligido a seguinte, a que conta hoje de trintas para baixo.

O decaimento da qualidade do ensino primário e liceal em Portugal é flagrante para quem tenha um mínimo de memória, bom senso e contacto com o sistema. Dou aulas a universitários, vai para dezoito anos. Não realizei nenhum estudo estatístico, mas a capacidade – e a vontade – de raciocinar, de expor ideias oralmente ou por escrito, de resolver problemas abertos, em que há que conjecturar um bocadinho, tem baixado a olho nu de ano para ano. Quando apresento uma resposta na aula, muitos se indignam: “Não tinha dito que se podia assumir isto ou fazer aquilo”. Apetece-me responder: “E quando estiverem com a namorada, não vão ter que pensar nalgumas hipóteses sobre como fazer as coisas? Ou vão ficar a olhar para o problema com essas carinhas?”

Com a agravante que estes meus espécimes fazem parte daquele grupo eleito que acabou o liceu com quinze de média ou mais. Pergunto-me como serão os outros. Mas também, com escolas com os entusiasmantes epítetos “C+S” ou “EB2,3”, do que é que estávamos à espera? De Einsteins, se calhar…

A seguir ao 25 de Abril, o país cresceu economicamente e criou as condições para alargar a oferta de ensino a toda a população. O analfabetismo diminuiu, as populações liceal e universitária aumentaram, o número médio de anos de escolaridade cresceu. Resultados muito positivos, mas insuficientes, sobretudo se quisermos atravessar o século XXI num vagão de primeira classe. Tal porque, ao querer aumentar a quantidade, se descurou a qualidade, presumivelmente por um preconceito de que ser-se minimamente exigente era reaccionário e elitista. Erro! Antes pelo contrário.

Contando uma história: quando o meu irmão se doutorou por uma universidade inglesa, fui assistir à cerimónia, com pompa e fanfarra, em que outorgam lá as togas garridas e aqueles quicos com berloques prá cabeça. Na sua alocução solene, o reitor, do púlpito, dirigindo-se a seiscentos novos bacharéis, licenciados, mestres, doutores e “tutti quanti”, começou por perguntar-lhes:

- Quantos de vocês tiveram os pais na universidade?

Um quinto, talvez um quarto, levantou a mão. Prosseguiu:

- E quantos de vocês tiveram os avós na universidade?

Menos de uma dúzia de dedos se viram.

- Então, posso concluir uma de duas coisas. Ou os vossos pais e os vossos avós eram mais estúpidos que vocês ou então vocês tiveram mais oportunidades do que eles. O papel de uma universidade é o de criar oportunidades. Esta universidade foi fundada no século XIX por socialistas utópicos que acreditavam ser possível que os filhos dos operários fossem para a universidade e não apenas os daqueles mais afortunados que os podiam enviar para Cambridge ou Oxford. Na altura, esses disseram-nos: “Ides baixar o nível”. Nós nunca baixámos o nível, mostrando que qualidade e quantidade podem coexistir, se formos exigentes. Só a exigência é igualitária.

Lembro-me de ter saído de lá a pensar que este discurso deveria ser gravado e repetido continuamente e em volume elevado em todos os gabinetes e corredores da 5 de Outubro, do ministro ao contínuo, do nascer ao pôr-do-sol, na esperança ténue que algum sentido pudesse entrar naquelas cachimónias.

Porque de facto só a exigência é igualitária. O que nós temos tido em Portugal é o contrário: um sistema do mais elitista que há, em que a escola republicana abdicou da sua vocação correctora das desigualdades sociais e, pelo contrário, amplifica-as, permitindo que as elites se criem não pelo mérito e pelo esforço mas sim tendencialmente pela hereditariedade. Por outras palavras, aqueles que recebem a cultura em casa, porque os pais a têm, ou em escolas privadas, porque os pais pagam, ganham uma vantagem competitiva, injusta mas fatal como o destino, no acesso à universidade e, depois, ao longo da vida profissional. As poucas excepções que há confirmam a regra e os únicos que não vêem são o ministro e o ministério que lá vão, alegretes, garantido em panglossianos comunicados e entrevistas que tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos. O Salazar deve estar a gozar o prato…

Esta desigualdade nota-se logo. Na vida empresarial, uma pessoa jovem que saiba não apenas pensar, mas também vender o seu pensamento, falando ou escrevendo, focando-se no essencial, com capacidade de síntese, essa pessoa sobe depressa porque se faz notar. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Hoje, numa companhia, pede-se a alguém de menos de trinta anos que redija um texto, com um certo propósito, com um dado tom. Na enorme maioria dos casos, temos que reescrevê-lo para que se perceba pelo menos o que se pretende escrever. Quando tal não acontece, facto raro, estamos na presença de um provável futuro director. Claro que estas diferenças podem eventualmente resultar de talento. Mas, com maior probabilidade, terão por causa um diferencial de competências, adquiridas por um e não por outro, possivelmente em casa que o liceu não se deu a esse trabalho.


E agora, já vamos tarde: foram muitos anos a tratar os garotos deste país como atrasados mentais, a dar anúncios do Big Brother no lugar do Camilo ou Pessoa, a não ensinar integrais nem probabilidades, a responder em história e filosofia a perguntas curtinhas de saber livresco em vez de escrever boas dissertações com princípio, meio e fim, tese, antítese e síntese. Em resumo, a sabotá-los, a não querer pedir-lhes tudo aquilo que eles têm de bom para dar, que sempre têm. E depois inventou-se muito: alterações permanentes dos programas, mecanotecnias e cenas afins, projectos de “área-escola” e outros excelentes pretextos para não abordar, de forma que se veja, português, matemática, história, física, línguas, enfim, coisas que formem, por chatas que sejam.

Se quisermos pôr isto tudo no são, só com muito choro e ranger de dentes, que já não vamos lá com “soft landings”. Terá que infelizmente ocorrer um choque, com uma subida brusca dos níveis pedidos, chumbos maciços durante uns tempos e umas fornadas de jovens sacrificados à incompetência do actual sistema.

E antes haverá que resolver o problema do ministério da educação e dos seus pedagogos, pedagogias e pedagogismos. Discute-se muito a valia de investir no novo aeroporto de Lisboa ou nas linhas de TGV. Se sobrar algum dinheiro, um investimento de interesse nacional e retorno garantido seria o de pagar àquela malta do ministério para ficar em casa, sem fazer nenhum e sem tocar em nada, tal e qual o macaco da anedota.

segunda-feira, junho 08, 2009

Exposição fotográfica (XIV)

Passeando por Paris, em Outubro de 2007.

Técnicas de arrumação automóvel no Faubourg Saint-Honoré.

Fé milenar em Notre-Dame.

Devoções a 5€, moderna versão electrónica mas com erros de inglês. Notre Dame.

McLenin num alfarrabista à beira do Sena.

Apesar do nome, trata-se meramente de um restaurante.

domingo, junho 07, 2009

Sol ou sombra

O chifrudo anda à solta no tema tauromáquico em Portugal. Li que as câmaras de Viana, Braga, Cascais e Sintra decidiram em plenário “proibir” as touradas. Como as autarquias não riscam nada no licenciamento destes espectáculos, a proibição não passa de uma condenação moral, do tipo “aqui os civilizados não toleram costumes selvagens e não vos querem cá”. Cheirou-me a léguas a mania e a tese dita fracturante, ao estilo daquela esquerda que trocou a ganga operária pela camisa Façonnable ou pelo pólo da Paul and Shark. Consequentemente, eu – que nem sou aficionado – vi-me logo cheio de vontade de correr ao redondel mais próximo a comprar entradas para o sector sol e assistir a uma festa brava.

O debate entre adeptos da tourada e defensores da bicharada é relativamente minoritário em Portugal, mas quando surge ferve muito em água pouca. Habituámo-nos a ver nos frente-a-frente televisivos entre políticos um exercício delicodoce entre pares do mesmo ofício, cheio de “sô doutor” para aqui e para acolá e protestos da mais elevada consideração. Mas se puserem num estúdio lado-a-lado um comentador taurino e um membro de uma qualquer sociedade protectora da bicheza, podem ter a certeza que a coisa não é assim. Em menos de cinco minutos teremos um confronto a sério, com insulto e peixeirada garantidos. Rapidamente os argumentos racionais sairão de cena para dar lugares a ferozes acusações dirigidas pelo defensor dos animais ao fã tauromáquico, do género “bárbaros” e “que maus”, a que este retorquirá com insinuações, mais explícitas do que menos, sobre a falta de masculinidade do opositor. Quem tiver a felicidade de assistir a tal choque de titãs não se arrependerá do preço do bilhete.

Sei que para almas mais sensíveis ou algo analíticas, uma tourada compara com as matanças de bebés-foca à paulada: uma barbaridade indigna do excelente século onde vivemos, século de genomas desnudados e redes planetárias de computador (e em que se mata gente à paulada com visionamento no “Youtube”, mas isso são fenómenos sociologicamente explicáveis que não têm por que ferir as sensibilidades mais ecológicas). Por outro lado, a tal esquerda da moda associa touradas ao latifúndio marialva, de patilha e boné, sapato italiano e camisa aberta no peito, gabiru e reaccionário, pilar do antigo de regime e bem-sucedido no novo, como fielmente o descreveu José Cardoso Pires na “Cartilha” e noutros textos, e por isso acha mal.


Creio que são duas visões algo exageradas. Para começar, e restringindo-nos à corrida à portuguesa, os únicos bichos que correm risco de vida na arena são o toureiro ou o forcado. Não me recordo de nenhum touro que tivesse saído do redondel com mais do que feridas superficiais, mas sei de cavaleiros que foram retirados de maca em estado terminal e primeiros-cabos que passaram a falar fininho após uma pega menos sucedida. Não me recordo, por acaso, de ver os defensores dos animais preocupados com a saúde destes bichos-homem. Se calhar até acham piada, confessem lá!

Retorquirão que os touros vão para matadouro após a corrida. É também esse o destino do boi doméstico e não me parece que o grosso da população portuguesa esteja preparado para deixar de comer bifes. O touro sempre tem uma vida de liberdade e uma oportunidade única de arrumar de vez com um bandarilheiro, tudo muito mais digno que a existência de rações e engorda do seu primo boi. Sem touradas, extinguia-se o touro bravo, o que não abonaria a causa da biodiversidade. Na prática, touro e toureiro constituem um ecossistema e, por isso, a posição de certos ecologistas de repúdio da festa brava não prima pela consistência.

Quanto ao vínculo ao período do Estado Novo, será visão porventura redutora. Muito antes de Salazar andar de fraldas já a tourada unia em Portugal monarcas e governados num mesmo entusiasmo. Segundo se relata, já no século XVIII, D. José assistiu “in loco” à morte do Conde de Arcos após uma faena mal-sucedida, mais um que saiu da praça carregado por quatro. Almeida Garrett contava de Alhandra, a toireira. Fialho de Almeida, em “Os gatos”, descreve-nos o ambiente de uma “ferra” na Azóia: “há uma algazarra alegre em toda a quadra, gargalhadas, apupos, falatório, uma confusão de chapéus e lenços, cintas, saiotes por cima dos poiais, que bole de mistura continuamente os seus mosaicos de cores bárbaras.”

A tourada é uma tradição cultural da civilização do sol que circundou o Mediterrâneo. Já os cretenses a praticavam e com ela ilustraram as paredes de Cnossos. Sintetiza, no umbigo do mundo que é a praça, valores de esforço e coragem, momentos de alguma astúcia e de certa loucura, laivos de petulância e cores de tragédia. Marialva? Sim, sem dúvida. Mas nós, portugueses, somo-lo no melhor sentido que a palavra pode ter. Leiam a “Ilustre casa de Ramires” e percebam: nós somos assim. E, de certo modo, ainda bem.


Repito, regressando ao primeiro parágrafo, que não sou aficionado. Mas sou filho de um filho da Barquinha que, não sendo ele próprio aficionado, sentia a tauromaquia como parte essencial do ser ribatejano, da sua memória e da sua cultura. Por feliz coincidência ou talvez não, a sua última ida a um restaurante foi ao Redondel, sob a bancada da praça de touros de Vila Franca de Xira. Que outros não gostem, tranquilo. Que critiquem, perfeito. Que se achem no direito de impedir, de proibir e, pior, de se achar mais espertos, já me aborrece como protótipo de mentalidade fascistóide.

Este vínculo, umbilical e sanguíneo, entre o Ribatejo e o mundo taurino, encontrem-no em Miguel Torga, num capítulo belíssimo do seu “Portugal”, que assim termina: “Na sua planura fofa e ubérrima, na melodia dos seus chocalhos e na harmonia da sua cor, a terra ribatejana é um grito de felicidade incontida no corpo da tristeza lusa. É uma faixa escarlate e festiva à cinta de Portugal.”

Teoria da relatividade


Era porém justo que houvesse banquete e festa, porque este teu irmão estava morto, e reviveu, tinha-se perdido e foi encontrado. (São Lucas, 15,32)


Quem tem cu tem medo (Adágio popular)



Nestas semanas que passaram, apanhei o susto da vida. Um dos meus filhos doente, análises inconclusivas, alguma preocupação dos médicos num resultado sublinhado a caneta. Havia que esperar. Imprudência minha, coloquei a pergunta errada: pode ser o pior? Levei com a resposta redonda: não espero mas não posso descartar. E o chão fugiu-me debaixo dos pés.


À minha volta, teciam-se considerações estatísticas. Havia que serenar e pensar no frequente, não no raro. No provável e não na improbabilidade funesta. Seguros destes argumentos, todos ao meu redor viam o céu azul. Mas eu olhava e encontrava uma nuvem negra, pequenina, lá ao fundo. Repetiam-me: não te preocupes, fará sol amanhã. E eu: mas a nuvem parece-me preta e a crescer. Que não, que não pensasse em chuva. Porquê olhar para o único canto escuro do céu quando quase todo ele irradiava luz?


Tentei fugir-lhe e a nuvem pôs-se a caminho, sempre por cima da minha cabeça. Mirava por cima do ombro e achava-a mais gorda, espapaçada de chuva, prometendo borrasca. À noite, quando me deitava, olhava para o tecto e lá estava ela, anafando-se, avolumando-se, exagerando o negrume para melhor me estoirar na vida.


Passei mal. Dormi apenas as poucas horas que o cansaço, já próximo da aurora, aceitou conceder-me. Pintei, na tela frágil dos meus medos, os cenários mais sombrios, construídos de dor em carne viva. Perguntava-me: e se for? Que lhe digo quando ele me perguntar? E de cada vez que me decidia a seguir em frente, varrendo este mal da minha cabeça, a nuvem, lesta, contornava-me, barrando-me o caminho, subjugando-me com malícia.


Finalmente, estando em Paris, recebi a melhor das chamadas: confirma-se, está tudo bem. Olhei para cima. A nuvem – que viera comigo de avião, sendo mesmo a única do lado de dentro do aparelho – esfumara-se quase instantaneamente, só sobrando uns farrapos que, vogando, se afastavam, como penugem ao vento.


Quando regressei levei nas orelhas, de todos os quadrantes. “Vês? Era preciso tanto sofrimento? Espero que tenhas aprendido.” Pus a mão na consciência: de facto, aprendera qualquer coisa. Não saíra a mesma pessoa desta experiência, deste mês de convívio com a minha nuvem negra particular.


Tive prova disso dias depois, quando me surgiu um aborrecimento no trabalho. Uma viagem para uma reunião inesperada, que não me parecia de grande utilidade, marcada pela chefia em altura que não dava jeito. Danei-me. Mas, de repente, veio-me a memória da nuvem, balofa e inquietante. Pensei: que preocupação de chacha! Venha a viagem! Não merece que dedique um ião que seja nos meus neurónios a aborrecer-me com isto.


Concluo, de facto, que há infelicidades absolutas, indeléveis, como a perda de um filho, ao lado das quais as pequenas agruras da vida são orvalho que se afasta com a palma da mão. Mais: não sofrer uma infelicidade absoluta é em si uma felicidade absoluta, que deveria ser imbeliscável pelos aborrecimentos mindinhos. Ao lado dela, tudo o mais é relativo.


Eu só andei umas semanas com a chaga da pequenina nuvem a reboque, que se desvaneceu num instante à luz das boas notícias. Mas há pais e filhos que voam permanentemente no meio da tormenta, bem no coração de um “cumulus nimbus”, levando com granizo e trovoada, agitados para cima e para baixo, sem esperança de bom porto. Uns, determinados, de semblante estóico. Outros, de olhos destroçados. Todos, certamente, rasgados por dentro. Que consequências podemos retirar da sua dor?


Várias: éticas, morais, até políticas. Sobre o sentido da felicidade. Sobre o valor único da vida e do Homem. Sobre a fibra daqueles que o defendem. Sobre a barbárie dos que condescendem. E mais sobre as quais, em tempo, aqui conversaremos.


Lembremos, por exemplo, que crianças há que morrem de fatalidade, de acidente, de doença, o que já em si é uma tragédia sem retorno. Mas outras vão-se ao tiro e à bomba, às mãos do mal absoluto em que os homens são férteis. Nestes casos, não há espaço para relativizar.


Da próxima vez que ouvirem algum filho-da-puta de merda, político ou jornalista, referir-se a crianças desfeitas por mísseis de alguma “bem sucedida operação” com a expressão “danos colaterais”, atentem e percebam que os palavrões obscenos são estas últimas palavras e não os vocábulos bem objectivos que alinhavei no início desta frase. A talhe de foice: vocábulos aplicáveis a juízes que mandam crianças apanhar porrada na Rússia, desculpando-se depois do indesculpável e a ministros que tergiversam sobre o assunto, tentando disfarçar o indisfarçável da sua mesquinhez.

Exposição fotográfica (XIII)

Jogo de "pétanque" no jardim do Luxemburgo em Paris. 20 de Outubro de 2007.