segunda-feira, abril 27, 2009

Originalidades portuguesas

A casa onde nasceu Hitler, na cidade de Braunau am Inn, na Áustria, fica numa rua chamada Salzburger Vorstadt. No tempo do “Reich”, havia em Braunau uma Adolf Hitler Strasse, como muitas outras existiam no império dos mil anos – que afinal só durou doze. Hoje, não há nenhuma toponímia local que refira o ditador: nem sequer um becozito. Mas, na escola primária que ele frequentou, uma placa informa o passante do seguinte:

“Aqui aprendeu a ler e a escrever Adolf Hitler, 1895-1897. Não saúdem. “Des-saúdem”. Trouxe morte e destruição a milhões de pessoas.”

Na mesma placa, encontra-se encastrado um pedaço das “escadas da morte” do campo de concentração de Mauthausen.


A morada natal de Mussolini, em Predappio, na Emília-Romana, encontra-se hoje numa Via Varano Costa Nuova. Alberga agora um museu onde se realizam exposições de arte ou de documentação histórica. Na cave desse edifício fica a cripta Mussolini, onde repousam os seus restos mortais, depois de muitas atribulações. Mussolini e a sua amante Clara Petacci morreram executados por “partisans” comunistas na aldeia de Giulino di Mezzegra em 27 de Abril de 1945. No dia seguinte, penduraram os seus corpos de uns ganchos, de cabeça para baixo, numa praça de Milão e a populaça apedrejou-os. O féretro de Mussolini foi enterrado numa campa anónima num cemitério municipal milanês mas, em 1946, um grupo de neo-fascistas encontrou o local e desenterrou-o para lhe prestar sentida homenagem. O cadáver andou depois em bolandas durante uns meses, levado daqui para ali pelos seus admiradores, até ser recuperado numa mala numa aldeia da periferia de Milão. A nova república italiana não sabia bem o que fazer com aquilo, pelo que o que sobrou do “duce” aguardou dez anos em armazém até finalmente regressar à casa de partida para terminar na citada cripta, com uma entrada discreta, uma urna de mármore, um busto e uma decoração com os feixes de vime romanos: os “fasci”.

Em todo o caso, à superfície da cidade que o viu nascer, não há cá “vias” ou “piazzas” Mussolini. Curiosamente, a tal Varano Costa Nuova onde ficam casa e cripta entronca com ironia numa rua Giacomo Matteoti, deputado socialista italiano que denunciou no parlamento, com provas, a violência fascista que originou a falsificação dos resultados das eleições de Abril de 1924, tendo por isso sido assassinado em Roma nesse mesmo ano. Ainda mais ironicamente, segue para a Via Mazzini, republicano e revolucionário, membro da Carbonária.


Francisco Franco nasceu na Galiza, em Ferrol, na rua Maria. Em Espanha ainda se pode percorrer uma ou outra artéria com o nome do caudilho, como por exemplo na conhecidíssima aldeia de Tapia de Casariego – descubram-na no Google Earth– ou na igualmente célebre Zorita de los Canes, seja lá onde isso ficar. Mas não em grandes (e mesmo pequenas) cidades e certamente não na terra do próprio Franco.


Em Portugal, para variar, há várias avenidas homenageando o ditador cá do burgo e Santa Comba Dão, onde o homem viu o dia, denomina orgulhosamente em sua memória o pequeno rectângulo a que chama praça central da vila: largo Oliveira Salazar. Mais: o autarca local, eleito por um partido que até tem a palavra “democrata” no nome, aproveita o dia vinte e cinco de Abril para inaugurar uns trabalhos de cantaria a que chama obras de remodelação da praça. A nova placa com o nome do largo, em azulejo de finíssimo gosto, apresenta eufemisticamente Salazar como professor universitário e estadista, coisas mais polidas e suaves do que aquilo que ele realmente foi.

Na televisão, esse presidente da Câmara afirma que inaugurar a mega-obra no dia em que se celebra a queda do anterior regime não passa de uma coincidência e diz que não percebe a polémica. Enterrando-se ainda mais, recomenda a quem o critica: “O passado é passado. Exorcizem os fantasmas que têm na cabeça.”

Há três tipos de políticos que eu não aprecio: os cínicos, os idiotas e os idiotas cínicos. O presidente de Santa Comba candidata-se com alarde a esta última categoria. Ainda assim talvez alemães e austríacos, italianos e espanhóis lhe consigam explicar porque é que as democracias não dão a ruas ou pracetas nomes de ditadores fascistas.


Recordo-me de uma vez, teria eu dezanove anos, em que recebi em Lisboa uns holandeses que conhecera no “inter-rail”. Levei-os a passear à Baixa e o meu pai deu-nos boleia. Ao passar no Marquês de Pombal, os meus amigos, vendo o monumento enorme, perguntaram de quem se tratava. O meu pai, provavelmente mais sensível ao martelo que quebrou os ossos do duque de Aveiro do que à obra de reconstrução posterior ao terramoto, respondeu: “He was a dictator. In Portugal, we always worship our dictators.”

“We still do, old man. We still do.”

domingo, abril 19, 2009

Exposição fotográfica (XII)

Bilbao, Fevereiro de 2009

As janelas do Hotel Hesperiade.

O gato à entrada do Guggenheim.


Guggenheim, pátio sobre o rio.


Guggenheim, escultura de Jeff Koons.

Ponte pedestre sobre o Nervion.

O guia áspero da boa música

O meu avô materno foi músico de província. Tocou, antes da segunda guerra, na orquestra de um paquete que fazia a ligação às colónias. Depois, dava aulas particulares, por vezes pagas em géneros alimentícios, por vezes não pagas de todo. Dele herdámos inúmeros instrumentos e, só no caso do meu irmão, algum talento. Quanto a mim, diagnosticou-me ele próprio uma grande falta de ouvido. Talvez por isso, safei-me a uma educação formal em música. Não toco, não sei ler partituras e canto quase tão mal como o João Pedro Pais.


Tão ignaro estatuto não me impediu de gostar de música e de nela investir tempo e dinheiro. Possuo uma boa colecção que álbuns que continuo a ampliar, comprando cêdês. Sim, porque eu compro, para desespero dos meus filhos que não param de me lembrar o desperdício que é, agora que está tudo na Internet. Para eles, aquele meu hábito de dedilhar nas prateleiras da FNAC e pagar pela música que vou ouvir é mais um sinal da minha caducidade, a juntar ao facto de usar acentos nas mensagens de telemóvel e de cortar o cabelo num sítio onde se fuma e lê o Diário de Notícias, pelos mãos de um velhote chamado Nogueira, com ar de gajo que é gajo.


A base da minha discoteca é de “pop” e “rock”, o estilo que eu ouvia quando a música serviu de pano de fundo para momentos importantes da minha vida. Nessa altura, gostava dos êxitos, do que animava as pistas, mas também do que aparecia mais lateralmente. Ouvia e ouço com gosto Frank Zappa, Ian Dury, Roxy Music ainda com o Brian Eno, Amon Düul II, Talking Heads, Iggy Pop, Focus, Propaganda, para lembrar alguns que não amarinhavam propriamente pelas tabelas de vendas acima.


Com o tempo, fui alargando o objecto da minha curiosidade, adoptando como mote o belo verso de Fernando Pessoa: sê plural como o universo. Comecei a pescar noutras águas. Comprava por recomendação, por reputação, por gostar da capa. Hoje, tenho bem representados o “jazz” e a “chanson”, “blues” e “motown”, a música dita erudita, de várias épocas, música portuguesa, do fado aos Wraygunn, africana e sul-americana, “house” e “chill” e outras coisas, para além das novas gerações do “pop/rock”. Vou-me divertindo e surpreendendo. De vez em quando, deleito-me com grandes achados. Lembro-me, nessas alturas, das palavras de Ry Cooder no Buena Vista Social Club: que procurar música é como o trabalho do arqueólogo – mexe-se em muito cascalho até encontrar um tesouro.


Ao princípio, ainda tentava partilhar as minhas descobertas com os amigos, mas percebi que estava a ser um chato quando, tendo dado boleia a uma amiga e posto a tocar uma colectânea de intérpretes do Mali e da Guiné, que eu prezava particularmente, ela suspirou, ao aproximarmo-nos do nosso destino: “Porra! Estava a ver que não chegávamos. Que trampa de música!”. Acabei por desistir. Ainda assim, a reputação ficou e se hoje ameaçar escolher a música, dizem logo:


- Lá vem o gajo com “disco sound” argelino!


A tal colectânea que tanto desespero provocou na minha amiga era um “Rough Guide”. A Rough Guide edita guias de viagem, mas começou já há uns anos a publicar excelentes compilações temáticas de “world music”, complementadas com imagens e informações sobre os países em questão. Possuo vários destes “rough guide”, que me têm ajudado a descobrir muito coisa boa que nunca passaria na Rádio Renascença.


Vai daí, deu-me uma inspiração: porque não criar, aqui no Mataspeak, os meus próprios “rough guides”, os meus guias ásperos, em que divulgasse, por estilos ou por temas ou por quaisquer outras similitudes, o que mais aprecio na minha discoteca? Sempre dava para mais uns “posts” e quem não gostasse punha na borda do prato. E quem quisesse poderia partir à descoberta.


É o que começarei a fazer muito em breve, sempre com o título “o guia áspero do/da…”, agora que está publicada esta explicação.

sábado, abril 18, 2009

They ID

Acabei agora de voltar de Washington. À saída, uma hora e tal de auto-estrada até ao aeroporto de Dulles ilustrou-me o bom que vai ser ir apanhar o avião a Alcochete, esperemos que daqui a uns bons e muito largos anos. Lá chegado, com uma fome esganada e três horas de espera pela frente até abrir o balcão do meu voo, sentei-me no único restaurante existente antes da “security”, um daqueles tromba-rijas americanos orientados para o obeso médio, de nome Harry’s ou Tommy’s ou coisa que o valha.

Pendurado na parede por trás do balcão havia um cartaz informando a clientela que “we ID all customers”. Na minha ingenuidade, pensei ser decorativo, como aqueloutros dos anos cinquenta, de anúncios à Coca-cola ou às torradeiras da General Electric, que atapetavam as paredes. Por isso fiquei de cara à banda quando a empregada, estendendo o menu, me pediu a identificação. Também ela tinha, pendurado na lapela, um crachá que afirmava “We ID”.

Vi-me num dilema. Claro que é vergonhoso aceitar sem soltar um basqueiro enorme que um restaurante tenha sequer a lata de me pedir os documentos. Mas, por outro lado, se não mostrasse a papelística, não comia. O meu cérebro acabou pois por se sujeitar à hierarquia de Maslow e pôs a satisfação das necessidades básicas à frente das considerações intelectuais: passei-lhe caninamente o passaporte e mandei vir uma sandes cubana e uma cerveja. Consolei-me com a desculpa de, em países exóticos e terceiro-mundistas, um tipo normalmente fazer umas habilidades que em casa nunca lhe passariam pela tola.

Mas agora, e sem querer ofender ninguém: há coisas em que estes americanos são mesmo atrasados mentais! Anseiam por um mundo tão regrado, tão procedimentado, tão chato que perdem a noção do ridículo.


Como aquelas questões a que há que responder com cruzinhas, nos formulários verdes que distribuem nos aviões, para apresentar à entrada do país: “Pretende vir traficar substâncias ilícitas?” ou “Esteve envolvido em crimes de guerra pelo regime nazi ou seus aliados?”. Eu, para ter sido membro das SS, teria que ter próximo de noventa anos. Só me surpreende não perguntarem também se estive na batalha de Pittsburgh, e se pelos confederados.

Será que as autoridades fronteiriças americanas esperam, genuinamente, que alguém diga que sim a uma interrogação deste calibre: “Vem com intenções de praticar actividades criminosas ou imorais?” Não, não venho torturar presos em Guantanamo, nem ganhar eleições à socapa, podem ficar descansados. E se forem actividades imorais, mas não criminosas, também não se pode? Quem define? De facto, os requisitos daquele formulário emparelham bem, na lista de perguntas que qualquer pessoa com dois dedos de testa não faz, com as clássicas “O peixe é fresco?” e “Foi bom?”.

Passemos sobre o detalhe deste género de números ser mais próprio de regimes fascistas do que de faróis da humanidade. A obsessão com a identificação é um expediente clássico dos governos totalitários para se perpetuar: transmitindo a impressão que se procura um inimigo incerto, legitima-se a própria repressão. Os Estados Unidos não são um regime opressivo, mas foge-lhes muito o pé para a chinela.

O que acho mais relevante é assinalar o que isto significa: medo. Sinto na sociedade norte-americana um cerco, mormente por si própria. Com medo dos estrangeiros, dos gangues dos maus bairros, dos emigrantes de hábitos estranhos. Com medo de um mal estrutural, perverso e gratuito, que abunda nas séries policiais de “prime time”, onde a eficácia dos heróis resolve os problemas, seja por que via for. Um medo, ao qual se responde com armas, que geram tentações e respostas e ainda mais medo. Um medo, sobretudo, inútil: não é a cambiar passaportes por hambúrgueres nos restaurantes nem a fazer perguntas tolas aos turistas que se livram de um novo 11 de Setembro. Para mais segurança, talvez conviesse não armar as Al-Qaedas deste mundo sem pensar nas consequências, como fizeram no Afeganistão dos anos oitenta ou então estabelecer pontes, sacrificando os interesses imediatos em troca de estabilidade futura. E deixarem-se de parvoíces.

sábado, abril 11, 2009

Exposição fotográfica (XI)

Em Odeceixe, um dos meus poisos favoritos no Algarve.





Funny feeling

No outro dia, festa de aniversário, numa discoteca à beira-Tejo. O espaço, amplo, tentava mitigar a opressão que induziam a pouca iluminação e o som pesado, distorcido, excessivo para a potência da aparelhagem.

A dado momento, ouvi, vagamente, um amigo que me berrava ao ouvido, em luta desigual com o “house” que bombeava das colunas:

- Aquele não é o xis? – perguntava, apontando para um homem de pé, junto a um pilar, distraído a olhar os dançantes.
- É capaz! - respondi, gritando.
- Vamos lá falar-lhe?
- Deixa estar.
- Mas vocês não se davam muito no liceu?
- Dávamos. E ele ia a minha casa.

O meu amigo não insistiu. Mas vi que estranhou. E eu também me estranhei a mim próprio, confesso. Fiz, no entanto, aquilo que na altura me apeteceu.

O xis, na época em que terminei o liceu, integrava o grupo dos meus amigos mais próximos. Éramos meia dúzia e durante um ano vivemos tudo juntos, preparando-nos para a universidade: estudámos, bebemos copos, saímos à noite, voltámos a estudar, jogámos à bola e aos matrecos, fomos a festas, entusiasmámo-nos por uma saia (ou por umas calças de ganga mais apertadas), marrámos mais um pouco.

O xis aparecera em Setembro, chegado do estrangeiro. Os restantes, já lá andávamos há anos. Não conhecia ninguém e rapidamente o integrámos. Vinha muito polido: ao princípio, apresentava-se nas aulas de ginástica vestido de branco da camisola ao soquete, contrariando a algazarra de cores das nossas “tee-shirts”.

No início, brincávamos com ele, como daquela vez em que, conjuntamente, o tentámos convencer que a saliva podia provocar gravidezes indesejadas. Ele, claro, suspeitou. Para o fazer ceder, desafiámo-lo a perguntar ao professor de biologia, um tipo bestial, recém-licenciado, com quem os alunos sentiam suficiente confiança para fazer perguntas destas. E que nós já havíamos industriado previamente. Quando abordou o docente, este confirmou-lhe tudo, num discurso recheado de tecnicidades como “amilases” e “ARNs” e recomendou-lhe, paternalmente, que tivesse cautela. Ainda andou uns dias convencido, parece-me. Mas rapidamente, connosco, limou esse excesso de inocência. E não brincámos mais, porque já não era preciso.

Certo dia, a meio do ano, insistiu que fossemos todos almoçar com o pai dele. Encontrámo-nos num restaurante que, para mim, à época, era de um luxo nunca frequentado. Eu sabia que o xis nascera numa das famílias mais ricas de Portugal, embora no nosso quotidiano escolar tal fosse indiferente. Ele apresentou-nos ao pai (“Pai: estes são os meus amigos.”) com o mesmo entusiasmo que no-lo apresentou a nós (“Este é o meu pai!”). O xis tinha grande orgulho no pai, pelo que senti que aquele tratamento biunívoco provava uma grande consideração por nós. Recordo ter ficado contente. Diria, à distância, que grato.

Findo o liceu, deixei de ver o xis, contrariamente ao resto do grupo, com o qual ainda me dou. Fui sabendo algumas coisas dele por terceiros e pelos jornais: licenciara-se, assumira mais tarde a presidência da empresa familiar, frequentava os mais restritos meios económicos e financeiros do país.

Reconheci-o uma vez num centro comercial. Ele pareceu não me ver, seguindo o seu caminho. Eu também estava com pressa. Presumi que nos desencontráramos.

Mais tarde, encontrei-o numa cerimónia inaugural de uma obra da companhia onde eu trabalhava, da qual eu fora responsável. A empresa a que ele presidia participara na construção. Fui cumprimentá-lo. Disse-me apenas, num tom que achei de frieza: “Tás bom? Tás a trabalhar com fulano, não é?” O fulano em questão era o presidente da minha companhia, segundo a imprensa um amigo dele. Ainda esbocei um princípio de conversa, mas percebi que não havia grande resposta e, com o pretexto de ir posar o copo, fui à minha vida.

Recordo, por contraste, que pela mesma altura visitei um clube de “jazz”, com dois antigos companheiros desse grupo de liceu, para ver um concerto de um antigo contemporâneo da mesma escola, o ípsilon, que fizera carreira na América como músico. Fomos pela curiosidade, porque o ípsilon não fora rapaz com quem nos tivéssemos dado muito. Partilháramos o mesmo recreio, as mesmas salas de aula, mas pouco mais. Tínhamos interesses muito diferentes.

Chegámos atrasados, já a banda dele tocava. Pois o ípsilon, quando terminou a primeira parte, saltou do palco, veio à nossa mesa, abraçou-nos, falou da sua família, dos muitos anos da sua vida americana, quis saber de nós, de outros colegas comuns e ainda pediu desculpa porque tinha que regressar para a segunda parte.


Voltando ao xis, acabei por descobrir mais alguma coisa sobre ele num artigo que saiu num revista hebdomadária, num daqueles textos desenhados pelos consultores de imagem, que vendem gestores e depois vão vender lixívias. Mas ainda assim consegui nessa leitura saber dele o que ele em pessoa não me dissera: com quem se casou, onde mora, quantos filhos tem, que “hobbies” pratica, quem são agora os seus influentes amigos.

Provavelmente por isto tudo, não me apeteceu falar-lhe nessa noite. Segui o meu coração, mas, vasculhando os recantos da minha caixa craniana, concluo que a cabeça faria exactamente o mesmo. Admito que possa haver aqui algum ligeiro despeito, mas a minha amizade merece-se. Até por consideração para com aqueles e aquelas que a honram e que são uns quantos – e bons.

Em todo o caso, sinto-me feliz por ter estado presente na existência dele quando ele precisou de amigos. E não esqueço que ele retribuiu bem, na altura. Lá continua, de calças de ganga e ténis Adidas, nas minhas lembranças do que foi um dos tempos mais felizes da minha vida: os meus dezassete anos.

Não deixo de temer que possa estar a ser injusto. Que tenha interpretado mal. Os “quid pro quo” acontecem. Mas se for esse o caso, ele pode falar com fulano e fica a saber logo onde eu estou.


P.S. Este “post” não tem imagens, como normalmente. Não encontrei nenhuma que ilustrasse o meu estado de espírito.

Os eleitos e os danados

Num jornal Público do início deste ano, um artigo de segunda página começava com o seguinte farrapo de horror: “Um caso em particular deixou chocados os trabalhadores do Comité internacional da Cruz Vermelha em Gaza. Numa casa, estavam quatro crianças. Demasiado fracas de fome para se conseguirem pôr de pé. As crianças estavam ao lado dos cadáveres das suas mães. Na casa, havia um total de doze corpos.”


Aproveitando o espírito da quadra de boas festas que então terminava, israelitas e palestinianos haviam iniciado mais um dos useiros e vezeiros conflitos da zona. O movimento Hamas, provavelmente preocupado com a sua perda de popularidade junto da população palestina, não renovou um cessar-fogo e começou a lançar uns “rockets” sobre cidades do sul de Israel. Este achou que não tinha outro remédio senão morder o anzol e decidiu fazer um jeito aos seus supostos inimigos, lançando uma invasão à grande da Faixa de Gaza, com centenas de mortos nas primeiras duas semanas, mais de metade civis, cerca de um terço crianças. Para mim, é óbvio que todos sabiam que desgraças como as do primeiro parágrafo seriam a consequência lógica das suas acções.


Pensei escrever sobre o assunto, mas percebi, nos dias seguintes, que seria perigoso soltar comentários menos abonatórios ao facto da tropa israelita andar a matar crianças com certo à-vontade. A quem, nos jornais, se atreveu a aventar que tal coisa não se fazia, logo levou na volta do correio com o epíteto de anti-semita, num tom rememorador das chamas do inferno nazi, atirado sem pudor pelos seguríssimos escribas do costume, como o director do “Público”. “En passant”, surpreende-me tão razoável jornal se ir aguentando assim bem com tão zeloso zelota ao leme.


Como qualquer português de cepa, terei com alta probabilidade na minha composição sanguínea algumas plaquetas judias como, aliás, restos de hemoglobina árabe. E ainda sueva, latina, visigótica, castelhana, vândala, inglesa, escandinava, berbere e de todos os mais que por cá aproveitaram para foliar entre batalhas.


Talvez por via destes resquícios hebraicos, e também porque não gosto de levar porrada, senti-me um pouco inibido para falar sobre este assunto, não viesse logo aí algum exaltado apodar-me de Himmler das avenidas só por criticar os excessos bélicos de Israel. E deixei passar o tempo. Decidi agora avançar, mas delegando a conversa em quem, por ser judeu de cepa, está melhor posicionado do que eu para dizer o que quer, sem ser insultado. Procurei e encontrei dois que podem substituir-me nesta conversa.


Aproveitei-me , por exemplo, do israelita Yoav Shamir, que em 2003 filmou, no documentário “Checkpoint”, a actuação do exército do seu país nos diversos pontos de controlo que permitem a Israel monitorar os movimentos dos palestinianos. E fê-lo do modo mais perverso: com a câmara quase fixa e sem quaisquer comentários. Nada mais duro e significativo do que uma verdade em bruto, não editada.


O filme mostra-nos, “tal-e-qual-mente”, o que se passa em diversos “checkpoints” na margem ocidental do Jordão e em Gaza. Às vezes as coisas correm bem, outras mal. Nalguns pontos, os soldados, acabados de sair dos pátios de liceu, são simpáticos, apesar do medo. Noutros tratam as pessoas abaixo de cão, com o poder que o gatilho lhes confere: vemos uma ambulância com um doente grave que tem que parlamentar longamente a passagem, exibindo documentos sobre documentos; vemos uma fila à chuva pesada, com velhos e garotos, esperando que o tropa, um rapazote, abrigado na guarita, acabe de mastigar lentamente a sua sandes; vemos muitos tiques de porteiro de discoteca, mas com consequências mais graves na vida de gente.


Que diríamos nós se a nossa avó fosse deixada a encharcar à chuva por um puto magala, a fazer gala do tempo que demorava a almoçar? Éramos capazes de ficar chateados. Se a situação fosse recorrente, talvez achássemos que se aplicaria um certo direito a partir tudo, tal como o definiu Jefferson na declaração de independência americana:


“Mas quando uma longa sequência de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo propósito, evidenciam o desígnio de os reduzir a um despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, deitar fora tal governo e providenciar novos guardas para a sua futura segurança.”


Dirá o lado israelita em sua defesa que há terroristas a movimentar-se por ali. Há certamente, mas isso justifica tudo?


A resposta a esta questão podemos encontrá-la numa segunda e mais definitiva visão: a que nos traz Primo Levi, judeu italiano que sobreviveu ao Holocausto para nos contar no livro “Se isto é um homem”, com uma serenidade que espanta, as suas memórias de Auschwitz. Diz ele, na passagem porventura mais significativa da sua narrativa:


“Um facto, por outro lado, parece-nos digno de atenção: existem nos homens duas categorias particularmente bem distintas, às quais chamaria metaforicamente os eleitos e os danados. Os outros pares de contrários (como por exemplo os bons e os maus, os sábios e os loucos, os sortudos e os azarados) são muito menos nítidos, parece-me que mais artificiais, prestando-se, sobretudo, a uma série de graduações intermédias mais complexas e mais numerosas.”



A avozinha à chuva no ponto de controlo e as crianças abandonadas ao lado dos seus pais mortos são danados, como danados são milhares de milhões por esse planeta fora que vão, como modo de vida, adiando a própria morte. Por outro lado, os governantes israelitas que dão as instruções e eu que escrevo estas linhas e vocês que as lêem, somos eleitos.


E não há considerações políticas, geoestratégicas, militares, religiosas ou ideológicas que relativizem a condição daquelas crianças, absoluta, de danadas. Nem que mitiguem o absoluto direito à revolta que daí resulta.


Foi isto que Levi nos quis dizer, com a autoridade que lhe conferem os anos que deu com os costados no “lager”. E é isto que nós, os eleitos, temos que entender, se por acaso estamos interessados em que a barbárie acabe um dia.