domingo, março 22, 2009

Exposição fotográfica (X)

Neve em Baquera, em Fevereiro do corrente





Errar é humano

Na quarta-feira última, andava tudo nervoso nas notícias porque o bento papa aventara a científica hipótese de o uso do preservativo fomentar a propagação da sida, mais do que preveni-la. Como salta à vista desarmada do mais míope. Aliás, se repararmos bem, durante o dia vemos o sol a andar e a terra parada, como já o seu predecessor Urbano VIII tinha feito notar a um Galileu distraído.

Houve por isso bernarda, com governos e organizações sanitárias a zurzir forte e feio no pobre pontífice. Nessa mesma noite, perante a mocada, um bispo francês acorreu a um telejornal para clarificar o mal-entendido: aquilo a que o papa se referia era que as pessoas iriam usar um mesmo profiláctico muitas vezes seguidas sem trocar (apetece dizer “Ah! Leão!”) ou então poderiam emprestar os venéreos abrigos uns aos outros, assim em segunda mão, para não dizer outra coisa. Perante o conhecimento demonstrado, fico com a impressão que nos encontramos diante de um bispo que cumpriu, “by the book”, os votos de castidade.

Ora tanto o bispo, como os governos em cólera, como as ONG em fúria, andam a lavrar em erro. Valorizam, em excesso, as papais capacidades. Pensam talvez que lá por existir um conceito de infalibilidade papal, o santo pai não pode arrotar umas postas de pescada e soltar umas calinadas gordas, como o comum dos mortais. Claro que pode.


Para começar, a infalibilidade papal não consta dos textos sagrados: foi decretada dogmaticamente no primeiro concílio do Vaticano, em 1870, provavelmente por dar jeito. Para continuar, a dita da infalibilidade só se aplica quando o papa fala “ex cathedra” sobre temas de fé ou situações aparentadas. E da cátedra, só se pronunciou uma vez o Pio XII, para explicar aos fiéis que a Maria tinha subido aos céus e deixava de haver dúvidas sobre o assunto. Fora destas situações, o sumo pontífice pode asnear, meter os pés pelas mãos, pecar, equivocar-se, baralhar-se como qualquer mortal do rebanho ou fora dele. A doutrina assim o diz.

Por isso, quando Bento XVI, num avião, pressentindo o calor de ananases que vai apanhar à chegada e logo de sotaina vestida, possivelmente cansado e com “jet lag”, solta um bitate infeliz sobre um assunto de que não percebe, dê-se o desconto ao senhor: saiu-lhe mais uma argolada, coitado! Como a qualquer de nós pode sair, especialmente se formos mais pró reacionáriozeco.

Sobre a natureza humana do papa, não resisto, aliás, a repetir aqui aquela batida anedota, já a caminhar para velha, que muito bem a ilustra. É uma piada da minha infância, de quando os papas eram todos italianos. Lavra assim:

“O papa encontrava-se muito doente. Depois de várias análises, os médicos da Santa Sé concluíram que após tantos anos a reprimir a sua masculinidade, no cumprimento dos castos votos, o papa tinha desenvolvido um desequilíbrio hormonal do qual poderia morrer. Como único remédio, só viam a possibilidade de o santo padre dar vazão ao tempo em atraso, conhecendo, no sentido bíblico, uma mulher.

A Cúria Romana reuniu-se, com urgência e discrição, e conclui, após debate, que havia que salvar o papa de uma morte certa e que por isso aceitaria uma suspensão temporária da obrigação a que o papa se comprometera. E trataram de organizar a vinda ao Vaticano de uma rapariga. Ao saber isto, o papa, acamado, chamou à beira do seu leito os organizadores, para lhes dar uma instruções.

Fraco de mais para falar, o papa sussurrou ao ouvido do secretário. Este disse:

- Sua Santidade diz que a senhora terá que ser cega.
- Porquê cega? - retorquiram os homens que a iriam procurar.
- Porque não ficaria bem que uma mulher visse as partes “pudenda” do papa.

O papa voltou a puxar para si o secretário e a segredar-lhe algo.

- Sua Santidade pretende também que seja muda e analfabeta.
- Isso torna a selecção mais difícil. Porque deseja Sua Santidade tal característica?
- Não queremos que essa pessoa, a seguir, vá revelar, por palavras ou por escrito, a terapêutica a que o papa se viu obrigado pela funesta doença que o aflige.

O papa, mais uma vez, disse umas frases em voz baixa na orelha do secretário.

- Sua Santidade exige, adicionalmente, que seja surda.
- Surda?
- Sua Santidade não se sente confortável com a possibilidade de ser ouvido a soltar algum ruído menos próprio durante o tratamento.

Pela quarta vez, o sumo pontífice instruiu, baixinho, o secretário.

- Sua Santidade pretende, finalmente, que a moça tenha uns seios grandes.
- Seios quê? – soltaram em coro os organizadores – Porquê?

E aí ouviu-se a voz enfraquecida do papa, naquele italiano matreiro e emotivo:

- Perche me piacce!”

Esta laracha acaba por reflectir, com piada, sobre as nossas motivações mais profundas, sejamos papas ou outra coisa qualquer. E relembra, por outro lado, que existe aquele tratamento natural e muito eficaz sobretudo em estados mentais confusos, com milhares de anos de garantia. Recomenda-se o mesmo ao nosso papa Ratzinger, porque só lhe pode fazer é bem.

Já somos bilionários

Em “Slumdog Millionaire”, há uma cena em que uma criança é propositadamente cegada para a tornar um mendigo mais compassivo, a bem dos adultos que a exploram.

Nesse momento do filme, quando se pressente a barbárie que vai surgir na tela, a minha vizinha de cadeira, uma mulher ainda jovem, baixou a cabeça e pôs as mãos à frente dos olhos, soltando um “meu Deus!”, discreto mas sentido.

Com esse gesto, disse muito sobre o nosso mundo, longe dessoutro em que vive Jamal K. Malik, um servente de chá em Mumbai, a Bombaim de outras eras.


Só quando passou o genérico final percebi que o realizador se chamava Danny Boyle, o autor de um dos meus filmes preferidos, na forma e no conteúdo: “Trainspotting”. O que explica algumas coisas. “Slumdog Millionaire” demonstra como um conto de fadas pode ser uma obra militante. Possui aquela realidade ferina que encontramos na boa caricatura: usa o humor e a verdade. Embora o enredo principal seja o de uma sempre eterna busca do amor e da felicidade, pelo caminho mostra-nos a Índia como ela é: não o tigre tecnológico, com brutos crescimentos económicos, ou a maior democracia do mundo, em número de votantes, mas um atraso de vida feito país.

Nessa Índia, ainda se pode morrer com uma paulada na cara por se praticar a religião errada, ou chafurdar nas lixeiras por se encontrar órfão, ou ser-se torturado pela polícia por mera suspeição. Sobretudo, nessa Índia, é-se o que se nasce. O bairro, a religião, a casta de origem determinam a vida possível e funcionam como barreiras que mantêm cada um no “seu lugar”. Como Jamal não passa de um servente de chá e vive em Juhu, um “slum”, o apresentador do concurso sente-se à vontade para o achincalhar diante de milhões de espectadores. A realidade quotidiana, no entanto, revela-se pior ainda: um intocável pode morrer de sede numa cidade de milhões sem que alguém se proponha à caridade de lhe dar um copo de água.

Desconhecíamos que esta Índia existia? Não, mas habituámo-nos a ouvir falar dela em estatísticas anuais ou notícias de oitava página de jornal, com números de mortes e feridos e palavras vãs como tragédia ou desastre – normalmente, o segundo ou terceiro mais grave dos últimos xis anos. Aqui levamos com ela com imagens em grande plano de gente com nomes e caras e tudo.


Voltando à senhora que comigo partilhava o braço da cadeira. O tapar dos seus olhos simboliza, num gesto simples, toda uma postura do Ocidente para com os deserdados deste mundo. Vivemos – comparativamente – uma existência confortável, de ecrãs de plasma e férias de mar. De automóveis a crédito e velhices octogenárias. Dos quatro cavaleiros do apocalipse, só o da morte ainda nos apoquenta, já que os da peste, da fome e da guerra andam a varejar por outros paragens, mais longínquas, como a Mumbai de Jamal.

Por isso, tapamos, todos ao mesmo tempo e eu incluído, os olhos. Preferimos não acreditar. Julgamos que o que não se vê não existe. Na realidade, apreciamos, nas Índias e nas Áfricas, o exotismo e um certo ideal de inocência perdida mas seríamos incapazes de viver, por um segundo que fosse, o verdadeiro dia-a-dia da maior parte daquela gente. Mais: seríamos, provavelmente, incapazes de sobreviver nas selvas quotidianas, de Bombaim a Caracas, de Joanesburgo a Mogadíscio.


Acomodámo-nos muito. Por um lado, isso é bom: quer dizer que soubemos construir uma sociedade em que nos sentimos melhor do que na caldeirada dos bairros de lata indianos e que já não poderíamos viver sem ela. Na óptica de lá, já nos saiu a sorte grande. Por outro lado, isso é mau: tornámo-nos indiferentes, perdendo a capacidade de nos condoer. O que Danny Boyle pretende, quando nos mostra um plano a cegarem uma criança, é que soframos. E devemos fazê-lo, por duas razões. Porque só assim percebemos. E porque só assim manifestamos compaixão para com aquelas crianças que aquela criança de celulóide representa. O que, na realidade, é o mínimo dos mínimos. Compaixão vem de um vocábulo latino que significa “comunidade de sentimentos” e tem feito alguma falta nos tempos que correm.

Ver. Não tapar os olhos. Condoer-nos. Eis o ponto de partida para que o conforto das nossas vidas não nos aliene e não as torne na descrição vácua narrada em “Trainspotting” pela personagem principal, Mark “Rent-boy” Renton, para justificar a sua toxicodependência:

“Choose Life. Choose a job. Choose a career. Choose a family. Choose a fucking big television, choose washing machines, cars, compact disc players and electrical tin openers. Choose good health, low cholesterol, and dental insurance. Choose fixed interest mortgage repayments. Choose a starter home. Choose your friends. Choose leisurewear and matching luggage. Choose a three-piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics. Choose DIY and wondering who the fuck you are on Sunday morning. Choose sitting on that couch watching mind-numbing, spirit-crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. Choose rotting away at the end of it all, pissing your last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked up brats you spawned to replace yourselves. Choose your future. Choose life... But why would I want to do a thing like that? I chose not to choose life. I chose somethin' else. And the reasons? There are no reasons. Who needs reasons when you've got heroin?”

Terminado este texto, dou comigo a reconhecer que também tenho feito pouco. Vou ter que fazer mais. Até porque, para encontrar os Juhus deste mundo, não preciso de ir à Índia. Basta-me rolar uns quilómetros.


domingo, março 08, 2009

Exposição fotográfica (IX)

Em visita a Bilbao, pernoitámos no Hesperíade, na margem esquerda do Nervion, hotel em que cada quarto tens os vidros da janela de uma cor diferente. Pretexto para esta série mais alargada, que inclui um auto-retrato.