domingo, janeiro 04, 2009

Exposição fotográfica (VIII)

Fotografias de Tavira, ao meio-dia de Julho de 2008. Canon 400D.



O Ginásio Clube de Tavira, um tradicional do ciclismo português.



Casa em restauro


Casa degradada, com vista para o Gilão


Rua Dr. António Cabreira, no enfiamento da ponte romana

Palácio da Galeria

sábado, janeiro 03, 2009

A porra da dieta

As catástrofes chegam a nós nas formas mais diversas: do troar do raio divino que destrói a Gomorra pecadora em que moramos até ao buzinar do camião TIR embalado que nos trucida na passadeira, passando pelo apito estridente e vesgo do juiz-de-linha que assinala erradamente um fora-de-jogo, comprometendo a sempre merecida vitória leonina. No meu preciso caso, a desgraça aterrou em cima da minha mesa num silencioso envelope, remetido pela medicina do trabalho, com o ditame das minhas análises bianuais. No final de uma lista de resultados bem comportados, encaixaditos entre os valores de referência, apareceu um destrambelhado que o médico analista logo assinalou com um círculo nervoso e severo, a esferográfica azul: colestrol total, 234mg/dL, risco moderado. Afundei-me no cadeirão, suando frio e largando, ofegante, um “morri!”.

Aproximadamente uma hora depois, quando recuperei os sentidos, dirigi-me célere a casa, para iniciar as despedidas. Para minha surpresa, ninguém pareceu ligar muito à gravidade do meu caso, malévola e ingratamente. “Não estão assim tão elevadas”, argumentavam, para logo fulminar: “Tens é que fazer uma dieta”. Eu protestava: “Risco moderado!” Retorquiam: “Dieta!” E, em menos de um fósforo, vi-me com um molho de fotocópias na mão, dividido em duas listas: o que comer; o que não comer.

O rol dos nãos continha toda a minha roda alimentar ideal: o bife do lombo e a batata frita, com molhinho de mostarda ou à café, marisco de casca e de carapaça, doçaria conventual ou profana, queijos de pasta gorda e enchidos, o vinho que acalenta nos rigores do Inverno e a cerveja que refresca no pino do Verão. Até os cajus que mastigo distraidamente durante as cartadas com os amigos apareciam referenciados como potenciais assassinos, membros do facínora Gangue dos Frutos Secos, liderados pelo perigosíssimo Amendoim Salgado, com milhares de vítimas no cadastro hediondo. Tudo proibidíssimo, sob pena de morte súbita… Senti-me desolado como um leão mirando uma savana que a seca tivesse deixado sem vida. Lamentei-me: “À falta de morrer com um treco, vou quinar de fome!”

Analisei a lista dos sins. Tinha mais “talvezes” do que sins peremptórios. Carnes brancas, mas poucas vezes por semana. Ovo, um quando o rei festejar o aniversário. Bastante peixe, bicho escamoso e acéfalo que manifestamente não puxa carroça. E vegetais, muitos vegetais. Arrobas de leguminosas. Toneladas de verdura. Soja e alfafa. Comida de ruminante. “A comer disto, vão-me crescer cornos…”, suspirei. E como é que se digeriria este matagal amazónico sem possuir um estômago dividido em quatro como o boi, pança, barrete, folhoso e coalheira?

Na escola, aprendera que o homem se alimentava de tudo, emparelhando com o urso na categoria dos omnívoros. E ali estava eu, feito urso, mas despromovido a herbívoro.

No dia seguinte, a minha cara-metade atulhou o frigorífico de produtos que “não faziam mal”. “Isto é tudo para ti!” Passei a ter a “minha” manteiga, o “meu” queijo, os “meus” pacotes de sumo. Olhando para as embalagens – e para os preços – logo suspeitei de um conluio entre a indústria agro-alimentar e os laboratórios de análises clínicas, em que estes emitiriam relatórios com o colesterol a duzentos e tais para a primeira poder vender produtos desnatados, poli-insaturados, desengordurados, e outros “ados” a um bando de desgraçados, a preços anafados. O leite deixou de vir da vaca e começou a vir da soja, planta da qual se produz também uma manteiga que parece mástique. O fiambre passou a ser de peru, animal pindérico e sensaborão que os americanos trincham naqueles feriados beatos lá deles. O pão escureceu e integrou-se. Um comprimido de edulcorante tomou as vezes do açúcar, com a desvantagem de uma pessoa nunca perceber se aquela porcaria micrométrica caíra realmente dentro do café ou se rebolara para o meio do chão. Até os “croutons” para pôr na sopa eram especiais: um dos meus filhos, quando lhe estendi distraidamente o pacote, disse-me “Não quero desses! Dá-me dos com sabor!”

Nos primeiros dias, ainda dei umas bicadas na dieta, mas tinha uns problemas de consciência terríveis. Deglutia um croquete e imaginava logo a gordura a circular no organismo, aderindo, pesada, às paredes dos meus vasos. Sentia o sangue espessado, lento, e o coração parecia palpitar de modo diferente, num prenúncio fatídico. Acabei por me render à maldita lista dos nãos. Enquanto vivera na ignorância, comia à bruta e era feliz. Agora, a dieta atormentava-me noite e dia, como a visão do olho de Abel que não deixava de perseguir Caim.



Infelizmente, não fazia parte da dieta recomendada

De um dia para o outro, qualquer alimento se tornou perigosíssimo: em cada esquina, um enfarte. Até o inocente Compal de fruta, durante décadas modelo de saúde para as criancinhas beberem, já matava por muitos açúcares e oxidantes que lá boiavam. Estes últimos, os oxidantes, letais e muito de moda, depois de séculos de obscura existência. Os efeitos da presença de oxigénio no ar já aparecem descritos em experiências levadas a cabo no século III a.c. pelo grego Philo de Bizâncio. O vital gás foi descoberto no final do século XVIII, mais ou menos ao mesmo tempo (os correios já não primavam, à época, pela rapidez) pelo farmacêutico sueco Carl Scheele, pelo químico francês Antoine Lavoisier e pelo clérigo inglês Joseph Priestley, sendo que este último devia andar a reinar, a fazer experiências com gases em vez de cuidar do seu rebanho. Mas foi preciso atingir o ocaso do século XX para o mundo cair em si e dar-se conta que se andava para aí a oxidar à maluca que nem varões de aço empilhados à beira-mar. E entrou tudo em pânico, com o pessoal a pagar magotes para ingurgitar bebidas à base de mirtilos e outras bagas, vendidas com parangonas e supostas conter doses maciças de anti-oxidantes.

Eu cá também me inquietei com os sacanas dos oxidantes, mas com a minha lógica mais cartesiana pensei para comigo: para quê andar a anti-oxidantes se uma pessoa pode não se oxidar? E comecei a inalar o mínimo de oxigénio possível, num exercício de disciplina respiratória. Só que, possivelmente por pouca prática da apneia, davam-me umas faltas de ar muito grandes, umas aflições que até ficava azul e acabei por desistir. Mas mais por preguiça do que por a ideia não prestar, porque até fazia sentido.

Se em casa a logística estava controlada e a minha dispensa emanava saúde, almoçar fora era um martírio e um atentado à minha existência. Quando em Lisboa, ainda os menus ostentam alguns pratos tidos como saudáveis, embora por regra intragáveis. Existem mesmo restaurantes só de verdes, autênticas manjedouras dos tempos modernos, frequentadas por sessentonas em busca do tempo perdido e estudantes de rabo-de-cavalo e barba à bode, onde o carácter clorofilino da ementa se disfarça com molhos coloridos e nomes orientais como “seitan” ou “tofu”. Mas experimentem lá alimentar-se dieteticamente no Pimpão, às Caldas do Gerês, no coração da terra minhota, onde as meias-doses chegam para três ou quatro pessoas? Na ementa, rojões, papas de sarrabulho, bacalhau com broa, costeletão de cinquenta centímetros, tudo com a batata frita em azeite. E nem vale a pena tentar:

- To-fu? Esse não é aquele gaijo chinês qu’era pra ser muita bom e qu’o Benfica emprestou ao Bizela?
- Não esse é o Yu Dabao e está no Desportivo das Aves. Tofu é uma espécie de bife de soja.
- Pois, ó amigo, isso nã temos. Temos lombo, bazia e acém, soja não. Posso perguntar ao talhante se sabe chegar à peça e cortar isso qu’o senhor quer, mas só se boltar para a semana.
- Deixe estar, não se mace. O que tem assim de mais levezinho?
- Só se for uma saladita mista. Aquilo é só berdura, se não faz mal às bacas não lhe há-de fazer a si.

E toca de vir para a mesa uma travessa de alface e tomate que pede meças à Estufa Fria.

Percebo agora o drama de um amigo vegetariano, que sempre que saímos em grupo se vê na contingência de parlamentar largos minutos com o empregado de mesa a ver o que inventam lá na cozinha para lhe dar, e que invariavelmente acaba por comer uma sopa e arroz branco, se tiver sorte com algum agrião ao lado. O atendimento que recebe do pessoal de restauração oscila entre o grunhido desagradado e a ameaça física. Tudo somado, acaba por passar fome. Mas ninguém lhe mandou ser vegetariano, para mais com um colesterol próximo do zero. Dá Deus nozes a quem não tem dentes, nozes que por acaso até estão na lista dos alimentos proibidos. Há que sanitizar os provérbios portugueses.


Em todo o negrume, acaba-se sempre por avistar uma luz de esperança. A minha surgiu-me num jantar em Bilbao com um grupo de portugueses que lá trabalha e que se inquietou de eu não atacar no bom presunto que em Espanha nunca falha à mesa. Expliquei que estava de dieta, pelo colesterol. Um colega comensal, quase dez anos mais novo que eu, comentou:

- Eu também tinha. Duzentos e sessenta!
- E está a dar assim no presunto?
- Tomei uns comprimidos que o médico receitou e em dois meses passou para cento e oitenta. Já tenho colesterol a menos, preciso de presunto para repor os níveis – dizendo isto, soltou uma gargalhada.
- E não sofreu efeitos secundários, mal-estar?
- Nada! Uma maravilha!

Observei o presunto a desaparecer do prato e jantei um peixe grelhado, enquanto o resto da mesa se entregava às delícias da carne basca. Assim que aterrei em Lisboa, agarrei nas análises e fui ao médico. Este folheou os resultados com a lentidão estudada de quem cobra uma fortuna pela sua sapiência. E soltou a bomba:

- Não estão muito más.
- Não estão más, doutor? Tenho o colesterol a duzentos e trinta. Risco moderado! Posso patinar a qualquer momento! Quer ter um cadáver aqui no consultório?

O clínico riu-se:

- Acalme-se lá. O colesterol a 234 não é nenhuma doença. É simplesmente um de muitos factores de risco. E você não tem outros. Um factor de risco não se trata, controla-se.
- Doutor! 234 é a distância de Lisboa ao Algarve por auto-estrada. Quase o número de deputados que andam lá pela assembleia. È enorme!
- Aqui há uns anos, 250 era considerado normal. Depois passou-se para 220. Agora, o valor de referência é 200, que eu acho aliás um bom número, para onde deveríamos apontar.
- Excelente, doutor! Estamos a chegar ao ponto. Receite aí os tais comprimidos!
- Quais comprimidos? – inquiriu, algo surpreendido.
- Daqueles que baixam isto em menos de um mês.
- Olhe, eu não lhe vou dar um medicamento que pode provocar efeitos secundários numa situação em que você não tem nada de grave, nem risco sério.
- Não me dá os comprimidos! O doutor quer a minha morte? Que fazemos?
- Fazemos o seguinte…

Preencheu uma requisição para mais umas análises e entregou-ma:

- Daqui a uns quatro ou cinco meses, vai repetir as análises para ver como é que isso está. Até lá – e tirou de uma gaveta um bloquinho com folhas impressas com uns desenhos – até lá vai seguir estas indicações e estou convencido que os números vão melhorar.


E rasgando uma das folhas do bloco, passou-ma para a mão. Em título: dieta para dislipidémias. Com uma coluna dos “nãos” e uma coluna dos “sins”. Agarrei maquinalmente na folha e saí como um “zombie”, apertando a mão ao médico que apresentava os melhores cumprimentos e lembrava que se pagava lá fora. Nunca imaginaria que as dietas agora viessem em blocos pré-impressos, como os recibos verdes, as pontuações do “king” e as matrizes da batalha naval. Reli a página: metade esquerda, com moderação, metade direita, nem cheirar. “Voltei ao princípio!”, pensei. Mas há sempre um lado bom da vida: analisada com atenção, aquela dieta não era tão restritiva como a que me fora imposta em casa. E, consolando-me com esta pequena vitória, subi a avenida, agora oficialmente um dislipidémico, a caminho do lar onde me esperava um creme de espinafres e um bife de peru grelhado.